Com rodas como Samba da Treze e Toca da Capivara, o Bixiga se firma como uma das principais sedes do samba em São Paulo
Nomeado formalmente como bairro da Bela Vista, o Bixiga está localizado na região central de São Paulo e segue sendo um dos mais tradicionais da cidade. O bairro é conhecido por sua ocupação de imigrantes italianos, porém tem raízes históricas para além de sua demografia eurodescendente e, assim, celebra um grupo populacional muito diverso, diretamente ligado à comunidade de origem africana.
O Bixiga é um imenso acervo a céu aberto, histórico, arquitetônico, natural, paisagístico, cultural, plural – de sotaques e etnias – e um território de muita resistência cultural.
Declarou o Dr. Edimilsom Peres Castilho, um dos fundadores e pesquisadores do Instituto Bixiga – Pesquisa, Formação e Cultura Popular.
Bixiga e samba: a origem
Preta batucada
Nossa arte, meu irmão
É madeira mais escura
Até na palma da mão
Salve a cultura, no meio da rua
A tradição que resistiu à luta
“Samba-Enredo 2022” – Sankofa, G.R.C.S Vai-Vai
Durante o período escravocrata brasileiro, a região do Bixiga era ocupada pelo quilombo urbano Saracura – nome derivado do córrego homônimo que abrange a área e que é, atualmente, aterrado. Esse nome foi escolhido como referência a uma espécie de ave comum na área, a saracura. O Saracura recebia escravos fugidos de fazendas localizadas nas proximidades do Vale do Anhangabaú.
Em 1878, a região foi loteada e alguns anos depois, em 1910, foi renomeada de Bela Vista. “‘Bixiga’ é uma denominação que não é oficial. Nos mapas da cartografia da cidade, o território do Bixiga corresponde à Bela Vista. Inclusive, essa já é a primeira tentativa de apagamento da cultura popular do bairro.” – ressaltou o Dr. Edimilsom.
Já na década de 1950, a extensão recebeu um grande fluxo de imigrantes de origem italiana. Naturalmente, com a densidade populacional africana, o Bixiga absorveu muitos elementos da cultura preta, e com isso, intrinsecamente, surgiu o samba na região.
Derivado de uma diversidade de ritmos africanos, o samba nasceu no século XIX no Brasil. O que hoje são conhecidos como rodas de samba, eram na epoca da escravidão, um momento de sociabilidade e convivio, onde escravos celebravam suas raízes musicais e culturais.
Com a promulgação da Lei Áurea – em 1888 – e a integração da população preta na sociedade livre, o samba se tornou um ritmo popular, mas não antes de ser perseguido pela regência da época, por conta de seus vínculos diretos com o entendimento de negritude e as implicações racistas sociais e legais do período. Logo, o ritmo se enquadrava diretamente com o crime de vadiagem na época.
A descriminalização do samba foi efetuada na década de 1940, durante o governo de Getúlio Vargas, que, por meio da valorização de símbolos essencialmente brasileiros, tinha a intenção de ratificar o sentimento de nacionalismo popular. Desde então, o samba se transmutou em diversas maneiras, e vertentes rítmicas nasceram e viajaram o mundo, as principais sendo o pagode e a bossa-nova – que se tornaram intrínsecos à cultura brasileira.
O samba protagoniza até hoje o cenário da música democrática no Brasil. Desde sua origem, o gênero foi para além do desfruto e do lazer musical. Seu cunho de constante resistência se tornou um espaço para denúncias políticas e sociais, trazendo ao ritmo um senso de comunidade ao entendimento de cultura e música. E é no bairro do Bixiga que o samba se vê latente nas matrizes culturais da cidade de São Paulo.
As tradicionais rodas de samba do Bixiga
Eu vou mostrar, eu vou mostrar
Que o povo paulista também sabe sambar
Eu vou mostrar, eu vou mostrar
Que o povo paulista também sabe sambar
“Eu Vou Mostrar” – Geraldo Filme
O samba no Bixiga é célebre por sua ocupação das ruas da região, onde músicos se reúnem em um delineamento de roda – em frente a bares e botecos – e são circundados por apreciadores do gênero. As rodas de samba então se tornam um movimento de reapropriação do espaço público, onde a celebração de um ritmo secular se transforma em um ambiente de comunidade e convergências identitárias.
Para Edimilsom, o Bixiga ainda é um dos poucos bairros de São Paulo que ainda preserva as rodas de samba.
As rodas de samba no Bixiga ajudam muito a preservar a história do território, essa marca cultural negra.
Criada em 2014, a “Toca da Capivara” se tornou referência para os amantes de rodas na região do Bixiga. Localizada na rua Major Diogo, nas proximidades da Av. Brigadeiro Luís Antônio, a Toca surgiu como uma iniciativa de Victor Cavalcante, em um espaço que era utilizado como garagem por seu avô. De terça à sábado, a casa recebe grupos de samba raiz e um público fiel em um ambiente aconchegante.
Ademais, uma das mais populares rodas atua na região há mais de dez anos. Organizada pelo grupo de instrumentistas Madeira de Lei, o Samba da Treze, é situado na Rua Treze de Maio e tem o intuito de preservar as raízes históricas do ritmo da região. Além da notoriedade adquirida pelo público e por grandes nomes do gênero nacional, como Beth Carvalho e Jorge Ben Jor, o grupo é caracterizado por seus trabalhos beneficentes na cidade de São Paulo.
Frequentador do Samba da Treze, o francês Arthur Pillette mora em São Paulo há um ano e meio e é estudante da FGV (Fundação Getúlio Vargas). Ele ressaltou a diferença cultural entre o Brasil e a França:
(A diferença) é o jeito de mostrar a felicidade. Na França não temos essa cultura de dança, de ir em um bar para aproveitar e dançar junto. Aqui (no Brasil), vocês convidam amigos, você vai para o bar para dançar samba. Eu gosto muito disso aqui em São Paulo.
Arthur ainda confessou gostar do ambiente aberto do Samba da Treze:
Eu amo (estar na rua), eu prefiro muito. Porque é um momento em que você pode discutir, falar um portunhol, você vai lá e pega um drink. Então é legal, eu gosto.
A empreendedora e produtora cultural de Natal, Carla Nogueira, estava pela primeira vez em São Paulo e no Bixiga. Ela ressaltou que a cultura e a história do bairro é muito parecida com a do Beco da Lama, localizado no centro histórico de Natal:
Eu vi que tem muita identificação disso aqui (o movimento do samba no Bixiga) com o que eu vivo em Natal.
Para ela, a existência de lugares como esse, que atrai diferentes grupos identitários e regionais, é imprescindível para a manutenção da cultura popular da cidade:
Juntar pessoas para ouvir samba, que é uma música predominantemente negra, em lugares que as pessoas são diversas, é importante para o resgate da cultura e da música.
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Vai-Vai: o samba para além das rodas
O meu Bixiga é encanto e magia
Show de melodias que pairam no ar
Vai-Vai traz no peito as suas estrelas
E vai te emocionar
Samba-Enredo 2020 – De Corpo e Álamo, G.R.C.S Vai-Vai
Além de rodas que abraçam o tradicionalismo musical do bairro, o Bixiga também é casa de um grupo que tem o samba como fator motriz desde sua criação: o Vai-Vai. Com raízes no Quilombo de Saracura, a escola de samba foi criada em 1º de janeiro de 1930, como um cordão carnavalesco.
Ela é originária de um grupo de sambistas que animava os jogos de futebol do time popular na região do Bixiga, o “Cai-Cai”, na década de 1920. Em 1972, se tornou oficialmente uma escola de samba e aderiu ao nome Grêmio Recreativo Cultural e Social Escola de Samba Vai-Vai.
Hoje, o Vai-Vai desfila entre as principais escolas que compõem o Grupo Especial de São Paulo, durante o Carnaval da capital paulista. Com seus 94 anos de existência, é a maior campeã da cidade – com o total de 15 títulos do Grupo Especial, 10 vice-campeonatos e 9 títulos como Cordão.
Durante uma noite agitada pelo Samba da Treze na Av. Treze de Maio, no coração do Bixiga, a produtora Tulia Yamamoto contou sobre sua relação com o samba e o Vai-Vai. Seu pai, Masayoshi Yamamoto, foi o primeiro japonês a entrar em uma Escola de Samba e tocava cuíca com Osvaldinho da Cuíca, considerado uma das grandes personalidades do samba paulista.
Hoje, Tulia faz parte da Velha Guarda do Vai-Vai: “Eu adoro samba, mas minha paixão é o Vai-Vai.”. Para ela, a Escola desperta o senso de comunidade ao seu redor por ser um ambiente acolhedor e tradicional na cidade. O samba do Vai-Vai reverbera a matriz cultural e identitária do bairro, por suas origens.
O diferencial do Bixiga é que o samba (aqui) é um samba raíz.
Assim como Tulia, Mariana Souza – ou então, Mari Vai-Vai – já figurou diversas posições dentro da escola, desde a parte comercial até destaque dos carros alegóricos – que ocupa atualmente. Em meio a debates sobre a presença de rodas de samba perto da igreja da Achiropita, pela sua periodicidade e horário de funcionamento, ela revela uma relação harmônica, que figura a história no Bixiga, entre o Vai-Vai e a instituição sagrada:
Toda vez que a escola ganha, leva o troféu para a igreja. É o profano e o sagrado unidos, só o Bixiga é capaz de promover isso.
Mariana ainda se emociona ao comentar sobre o momento dos desfiles pelo Vai-Vai, multicampeão do carnaval de São Paulo:
No desfile de escola de samba não tem depressão, não tem dívida, não tem doença. A tua dedicação vale ponto para uma comunidade toda. O trabalho de um ano inteiro sendo apresentado em 65 minutos. (…) Quando a sirene apita, o apresentador fala o nome de sua escola, o coração bate mais forte, o corpo arrepia, a lágrima vem.Vem lembranças de todas as pessoas que já se foram e que se dedicaram para que o Vai-Vai se mantenha em pé.
O samba do Bixiga como Patrimônio Cultural
Coração balança na mesma frequência
Vem de Deus esse som que a gente faz
Agradeço a essa santa resistência
Ao pedido do povo eu quero mais
Vai o sol e vem a lua, ôh ôh ôh!
Alegria continua
Nosso povo está em festa
É o pouco que nos resta
Nosso samba tá na rua
Composição do Samba da Treze
Em 2018, o vereador Toninho Vespoli criou um Projeto de Lei (PL 473) que buscava intitular o “Samba de Rua da Treze” como Patrimônio Cultural Imaterial da Cidade de São Paulo. A ideia era desmarginalizar e aprimorar a segurança desses eventos.
Ao explicar a importância dessa patrimonialização, Toninho ressaltou:
Se o samba do Bixiga se tornar um Patrimônio Cultural da cidade de São Paulo, é um jeito de trazer proteção institucional (aos sambistas). Institucionalmente, a relação (tem que acontecer de) forma diferente, pois já aconteceu de irmos lá, – o pessoal do samba, o povo – e a polícia aparecer dizendo ‘não vai rolar samba hoje aqui não’. Pensar em coisas institucionais para trazer segurança é importante, e esta foi uma das medidas que encontramos
A discussão que envolve a garantia do livre movimento do Samba da Treze levantou como pauta o impedimento da circulação de automóveis nas ruas ocupadas e o prejuízo para os comércios da região. Segundo Vespoli, alguns espaços eram comprometidos, mas o fluxo de veículos não era interrompido. Com isto, foram levantados questionamentos sobre essas tentativas de reclusão e repressão ao Samba da Treze.
A questão do preconceito veio à tona já que a região, além honrar o samba como forte identidade brasileira, também é intrínseca à comunidade preta, que segue sendo marginalizada. Vespoli complementa:
O samba em termos de musicalidade tem um valor. O samba é a cara do povo brasileiro (…) Há um sufocamento de tudo que vem de tradições culturais negras. O samba tem esse valor importantíssimo para o Brasil. Onde tem mais pessoas negras no mundo fora da África? Aqui no Brasil. E quem construiu este país? O trabalho braçal quem fez foram negros. Setores da elite brasileira querem apagar esta cultura
As ocupações destes espaços públicos também trouxeram formas de valorização a esses ambientes. No Bixiga, as ruelas estavam em estado de descuido e degradação, com a chegada das rodas e a subsequente circulação de pessoas nas ruas, o comércio local valorizado e uma maior demanda em relação a limpeza tornou-se realidade.
O projeto de Vespoli, além de proteger institucionalmente o Samba da Treze, buscava auxiliar na organização desses eventos para garantir mais segurança para os frequentadores da região. A ocupação popular como incentivo cultural traz um senso de comunidade e revitaliza a região histórica Bixiga. Afinal, segundo Toninho:
É um grande movimento, o pessoal toca mas é sem caixa de som, é no gogó, então o povo canta junto. É uma coisa energizante , todos passam a ser o cantor ali junto.
Hoje, o Samba da Treze segue proibido de acontecer plenamente nas ruas do Bixiga, onde já chegou a juntar mais de 7 mil pessoas em seus encontros. Um dos criadores do Samba da Treze e afilhado do grande sambista Geraldo Filme, Namur Scaldaferri, ressalta que a esperança de voltarem para a rua continua:
A permanência do Samba da Treze é importantíssima, porque é um samba de inclusão.