Em 2019, o McDonald’s decidiu instalar sua milésima unidade brasileira em um casarão histórico e cultural da cidade de São Paulo
ERRAMOS: texto atualizado em 19/08 às 13h19. Maria e Wagih Hannud se mudaram do casarão na década de 90, não nos anos de 1980 como informado anteriormente.
Uma casa, um banco e um fast-food: todos no mesmo lugar. Localizado na Avenida Paulista, número 1811, o casarão que atualmente acomoda o Méqui 1000 chama a atenção das pessoas pela sua arquitetura e grandiosidade. Porém, para entender a essência do local, é necessário olhar um pouco para o passado e compreender a história dos estrangeiros que moraram ali.
A trajetória do casarão começa com o casal de imigrantes Josefina e Oscar. Ele, sírio e filho de ourives. Ela, italiana e filha de comerciantes. Dois vizinhos que se apaixonaram no Brasil, casaram-se na Itália e voltaram com a sua filha, Maria, em 1913. Chegando aqui, montaram uma loja de tecidos chamada Vila Paris, no bairro Bixiga, em São Paulo. Ele era responsável pelas compras do comércio, e Josefina era encarregada de costurar, bordar e atender os fregueses. Josefina e Oscar tiveram mais cinco filhos, Clélia, Orlando, Iolanda, Lina e Alzira.
Maria, a filha mais velha do casal, era apaixonada por música e se formou no Conservatório Dramático Musical, no centro da cidade. Foi aluna do musicólogo, poeta e escritor Mário de Andrade. Em meio a isso, era braço direito de sua mãe na loja de tecidos e, quando sobrava tempo, a auxiliava na produção de pães italianos para dar aos vizinhos. Além da música e dos pães, Maria também queria comprar uma casa na Avenida Paulista, e para deixar esse sonho vivo, “colecionava almanaques durante sua adolescência pobre, porque sonhava em ficar rica e morar em uma mansão”, conta sua neta.
Muitas vezes, Maria ia com sua mãe até a rua 25 de Março auxiliar na compra dos tecidos para a loja da família. Lá, conheceu o comerciante Wagih Hannud, imigrante que veio ao Brasil e trabalhava como mascate, do mesmo jeito que seu pai, Oscar. O estrangeiro ganhou aprovação imediata de Josefina, e 12 anos mais tarde se tornaria o marido de sua filha.
Logo após o casamento de Maria e Wagih, em 1935, o casal foi morar no bairro Paraíso, e tiveram 4 filhos. Até que, no ano de 1944, surgiu uma grande oportunidade. Com a morte do antigo proprietário, a tão sonhada casa na avenida Paulista foi colocada à venda e o casal conseguiu comprá-la. Originalmente o local era no estilo de um chalé suíço, mas foi demolido e deu espaço para a construção do imóvel no formato que conhecemos hoje.
Para uma das netas do casal Hannud — a qual não quis se identificar —, existe uma passagem que mostra o significado do casarão na história da cidade e da própria família: “Os meus avós foram imigrantes que conseguiram morar num lugar caro, mas essa nossa origem distante se reflete em muitos bairros da cidade, com o mesmo encanto e importância. Os paulistanos não devem esquecer suas raízes, a imigração de pessoas e culturas são a alma de São Paulo.”
O projeto da residência demorou cerca de 5 meses para ser feito, e atendeu todos os desejos de Maria, que ainda tinha todos os recortes guardados. Para decorar a casa, a família contratou o inglês Mr. Ronald Upstone. Apesar da rapidez em desenhar a planta do imóvel, a construção do casarão levou quase 5 anos para ser completada.
Quando as obras terminaram, todos os eventos importantes da família eram comemorados lá. Aniversários, natais, viradas de ano e até reuniões para assistir à corrida de São Silvestre. Tudo era realizado no casarão com a presença de todos os familiares. Segundo a neta do casal, o que mais se destacava nesses encontros era Maria.
“Acho que se você fizer esta pergunta a qualquer familiar a resposta será que a lembrança mais forte é a dona Maria. Sua hospitalidade e generosidade somadas ao seu talento culinário são mais memoráveis do que a casa em si. Os almoços começavam na copa e dona Maria no fogão participava das conversas. Depois disso, seguíamos para a sala de jantar, numa mesa enorme, onde comíamos sem parar até tarde da noite (risos). O quintal era bem gostoso, e alguns almoços eram ao ar livre”, lembra a neta.
Uma das receitas mais tradicionais e que possui uma memória afetiva dentro da família Hannud é o cabrito que Maria aprendeu a fazer com o seu pai. As refeições tinham as raízes italianas e sírias de Josefina e Oscar, que foram se perpetuando ao longo das gerações.
O tempo passou e o casal idoso não conseguia mais se locomover com facilidade pelos ambientes por conta das grandes escadarias, o que os fez mudar casa. Devido a isso, resolveram comprar um apartamento no Morro dos Ingleses, na Bela Vista, onde se mudaram na década de 90 e viveram até meados dos anos 2000.
Após a saída do casal, a casa foi alugada para o banco Boston em 1996 e depois para o Itaú, até 2016, fato que dificultou o acesso da população ao interior do imóvel. Depois do contrato ter acabado, o casarão tornou-se um local requisitado para eventos de grandes empresas, como Nike e Netflix. A residência ainda se destacava na cidade devido as exuberantes decorações natalinas que eram feitas todos os anos. Em 2019, a propriedade foi alugada para o McDonald’s e comporta a milésima unidade da franquia no Brasil, nomeada Méqui 1000.
“Ao contrário de algumas críticas sobre a casa ser ocupada por um restaurante razoavelmente popular, os familiares que herdaram o imóvel só enxergam isso como positivo. Durante 20 anos o espaço foi ocupado por bancos, e a casa era praticamente impenetrável para a maioria da população. No 1º evento, realizado pela Nike, um rapaz da brigada de incêndio, sem saber que eu era uma das proprietárias, veio me falar sobre sua emoção em conhecer o local. Os eventos proporcionaram isto para muita gente, e agora com o restaurante um número muito maior de pessoas poderá ter acesso. Achamos isto o máximo.”, conclui a neta de Maria e Wagih.
Segundo João Branco, líder de marketing do McDonald’s, a escolha do local está relacionada com a história da marca e com a memória afetiva de muitos consumidores e fãs da franquia, já que a primeira unidade brasileira – inaugurada em 1981 – está localizada também na avenida Paulista, mas na esquina com a rua Joaquim Eugênio de Lima.
“É uma unidade muito especial, com todos os detalhes pensados para promover uma experiência marcante. Para isso, respeitamos a icônica arquitetura do imóvel e demos o nosso toque especial com uma decoração lúdica, ‘instagramável’ e com instalações que garantem mais interatividade, comodidade e conveniência”, conta Branco.
Em concordância com o desejo da atual herdeira, de transformar a antiga casa da sua família em um ambiente público e democrático, João Branco assegura que o estabelecimento atua como um ponto de encontro na movimentada Av. Paulista.
“Com o Méqui 1000, democratizamos esse imóvel e criamos um ponto de encontro que oferece experiências memoráveis. Para este projeto consideramos os diferentes públicos que passam pela Paulista, desde executivos e jovens durante a semana; até as famílias que frequentam a Avenida nos sábados e domingos.”
Para não perder a relação com a memória afetiva do imóvel, a empresa optou por manter intacta toda a sua arquitetura. “Nossa equipe de engenharia, junto ao arquiteto australiano que assina o projeto, Mark Landini, fizeram todas as análises e checagens para que pudéssemos manter a estrutura do casarão. A arquitetura externa e interna do imóvel, patrimônio afetivo da cidade, foi preservada, incorporando elementos do passado integrados a um design moderno e conectado com as demandas atuais. Mantivemos a fachada, a escadaria e outras estruturas que trazem a beleza arquitetônica ao local e que fizeram dali um espaço famoso entre os visitantes. Inclusive, o drive-thru do Méqui 1000 foi especialmente projetado, adequando-se à estrutura do imóvel”, conta Branco.
Outra meta importante da companhia é manter a tradição de decorar o estabelecimento durante as festas de fim de ano, especialmente durante o Natal. Branco ainda afirma que eles pretendem trabalhar ainda com comunicações especiais, para diferentes ocasiões. “Quem passa pela avenida Paulista, seja a passeio ou a trabalho, tem uma história afetiva com o local e as decorações natalinas com certeza fazem parte da memória de diversas gerações. Vamos mantê-las e queremos que esta unidade se transforme em um novo ponto de encontro das pessoas”, diz.
Resgata-se, assim, os quase 80 anos de uma narrativa que ilustra a história de SP. O casarão parece apenas outra propriedade, mas seus alicerces vão além disso. A miscigenação e a imigração dos mais diferentes povos e culturas estão inseridas na construção paulistana. Essa memória não se perde no tempo, mas se perpetua, mesmo com uma das mais globalizadas marcas mundiais instaladas no local.