Especialistas explicam a situação do bioma e reiteram a necessidade de ações de preservação do pantanal pelo Governo Federal
O retrato do Pantanal, como ensinado nas escolas, talvez nunca mais seja o mesmo. Considerado Patrimônio Nacional pela Constituição Federal e Reserva da Biosfera e Patrimônio Natural da Humanidade pela Unesco, o bioma que, abrange quase 2% do território brasileiro, está enfrentando uma crise sem precedentes em decorrência de mudanças climáticas, queimadas e desmatamento.
O ano de 2020 foi determinante para que o Pantanal perdesse grande parte de sua riqueza. Devido à intensa estiagem na região, o rio Paraguai atingiu seu menor nível e as queimadas recorde já haviam alcançado 1.100.000 hectares do bioma no Mato Grosso do Sul até agosto deste ano, segundo o Prevfogo, órgão do Ibama.
O paraíso antes da destruição
O geógrafo e professor Sebastian Fuentes explica a gravidade desses acontecimentos e a importância do bioma. Ele enfatiza que a grande biodiversidade presente na região provém de seu relevo rebaixado em relação ao seu redor. Devido a isso, temos a maior área alagada da América do Sul. “O Pantanal recebe águas da região da Cordilheira dos Andes, do Cerrado brasileiro e uma porção da Amazônia brasileira. É uma região que periodicamente está extremamente alagada”, diz.
Além da biodiversidade promovida pela inundação periódica, o bioma abriga espécies de animais que, muitas vezes, ainda nem foram catalogados, ou seja, descobertos por biólogos. Mas o cenário exuberante da novela Pantanal, que exibia paisagens, jacarés e sucuris amarelas, foi comprometido pelo aumento de 210% dos incêndios na região, de acordo com dados coletados este mês pelo Inpe.
Queimadas em ascensão
Segundo o diretor da ONG SOS Pantanal, Felipe Dias, é natural que o bioma tenha seus períodos de seca e, até mesmo, que surjam pequenos focos de incêndios em decorrência de raios em dias chuvosos. Porém, ele ressalta que os incêndios que têm destruído o bioma “são fruto de uma combinação de vários fatores. Um deles é a extrema seca, já que muitas das áreas antes alagadas, ou no mínimo úmidas, nesse período, secaram”.
Felipe conta que o combate às queimadas é feito pelo corpo de bombeiros, brigadistas contratados – que inclui indígenas para controlar o fogo em áreas de reserva – e muitos voluntários. “Eles ficam na linha de frente trabalhando arduamente no combate. Apesar da perseverança para controlar o fogo, o controle só vai acontecer quando de fato chover porque é a chuva que vai contribuir para que apague de verdade”, afirma.
Ainda que haja fatores climáticos que podem estar relacionados com a tragédia, as provocações são advindas dos humanos. “O que vivemos hoje é uma seca muito mais intensa do que a média histórica, então a probabilidade de estar vinculada diretamente ao aquecimento global provocado pelo ser humano é muito grande”, afirma Sebastian. Além disso, ele diz que especialistas estão considerando uma piora desse cenário com a provável ocorrência do La Niña, fenômeno que provoca uma seca intensa na região centro-oeste e sudeste do Brasil.
Para ambos os especialistas, a maioria dos focos de incêndio no Pantanal são causados pela ação humana, seja por descuido ou para fins de desmatamento e promoção do agronegócio ilegal na região. A hipótese foi confirmada por perícias feitas pelo Centro Integrado Multiagências de Coordenação Operacional (Ciman-MT) e a Polícia Federal e o Ministério Público também abriram investigações.
De acordo com dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), de janeiro a julho deste ano foram registrados 4.218 focos de incêndio em todo o Pantanal, 2.743 a mais do que nos mesmos meses do ano passado. Ainda segundo o Instituto, já foram queimados 2,3 milhões de hectares de vegetação, o que corresponde a uma perda de 15% do bioma. O volume das queimadas só este ano equivale ao dos seis anos anteriores. E as consequências a longo prazo podem ser ainda mais desoladoras do que esperamos.
Para além do Pantanal
Quando há uma faísca na terra, basta o vento para espalhá-la e alguns segundos até que atinja uma proporção incontrolável. É assim que a ambição do agronegócio e o avanço descontrolado do desmatamento contribuem para o cenário atual do Pantanal. Para o geógrafo, há dois anos os focos de incêndio na Amazônia, no Cerrado e no Pantanal têm aumentado vertiginosamente em decorrência da expansão da agricultura.
Sebastian explica que, para ter maior área para pastagem, é preciso apenas desmatar e queimar, já que o pasto não exige que o solo seja rico em nutrientes. Ele ressalta que o desmatamento e os incêndios não começaram na região do Pantanal, mas avançaram contra ela e a prepararam para o dano de forma indireta. Muitas das águas que deságuam no bioma, têm suas nascentes e afluentes no Cerrado, que também é alvo.
Com seu desmatamento, a mata ciliar – vegetação da borda do rio – é destruída, o que faz com que sedimentos se acumulem nas águas, que ficam mais rasas e secam. O Rio Paraguai é um exemplo disso, e quando os rios deságuam no Pantanal, não são capazes de formar as inundações que caracterizam o bioma.
A Floresta Amazônica também exerce um papel fundamental para o bom funcionamento hídrico do Pantanal. Mas com a sua crescente destruição, também motivada pelo agronegócio – muitas vezes com respaldo do governo –, não consegue hidratar a região com os chamados Rios Voadores, provocados pela evapotranspiração da vegetação florestal. O fenômeno, em uma situação ideal, é responsável pelas chuvas no centro-oeste e no sudeste, daí a sua importância para o Pantanal.
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Incineração de animais
Além da destruição da vegetação, os incêndios estão provocando a incineração de animais que habitam a região. De acordo com a ONG Ampara Animal, que trabalha com resgates, em situações de grandes focos, a maior tendência dos animais é a fuga. Por isso, desnorteados, aparecem em áreas urbanas ou estradas.
Nas últimas semanas, o fogo avançou contra a maior concentração de onças-pintadas do mundo, o Parque Estadual Encontro das Águas. Muitas delas não conseguem ser mais velozes do que o espalhamento do fogo e acabam tendo partes de seu corpo queimado – geralmente as patas – ou o corpo inteiro. Voluntários da SOS Pantanal e da UFMT, em conjunto com a polícia ambiental e a ONG Ampara Animal se arriscam para resgatar esses animais ainda com vida.
Turismo, agricultura legal e indígenas
Mato Grosso do Sul, estado brasileiro conhecido por paisagens exuberantes devido à sua vegetação e rios de água cristalina, especialmente em Bonito, teve alguns de seus pontos turísticos destruídos pelos incêndios. “O impacto econômico é gigantesco. Além de as queimadas afastarem as pessoas, também vão afastar novos investimentos e provocar uma crise financeira em pequenas pousadas da região, já que as belezas naturais procuradas, rios de água cristalina, áreas alagadas, vegetação bem verde, vão deixar de existir, pontua Sebastian.
Também são prejudicados os agricultores legais e familiares que cultivam na região. O solo que está sendo muito danificado pelas queimadas dificilmente tem chances de se recuperar sem a utilização de fertilizantes, que representam um grande gasto. Já o gado pode ter fugido ou ter sido incinerado.
A região do Pantanal ainda abriga muitas comunidades quilombolas e indígenas que tiveram de sair às pressas de suas reservas devido ao avanço das queimadas. A Funai precisou resgatar 45 indígenas do fogo na reserva Tereza Cristina, em Santo Antônio de Leverger (MT) no último domingo.
Governo coloca lenha na fogueira
Em dois meses de queimadas no Pantanal, o presidente Jair Bolsonaro e o Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, mantiveram posições negacionistas. Esta semana o governo reconheceu a situação do bioma e decretou estado de emergência, de acordo com o Diário Oficial da União. Para Sebastian “o governo é favorável à exploração da biodiversidade que deveria ser conservada, apoia diversas políticas de anistia a quem comete crimes ambientais e isso provoca um sentimento de impunidade na população criminosa”.
Além disso, durante a gestão Bolsonaro, as verbas destinadas a órgãos de combate e vigilância ambiental, como o Ibama e o ICMBio, foram drasticamente cortadas. “O que tem acontecido é uma desidratação financeira dos órgãos competentes. Sem financiamento, não tem pessoal, não tem funcionários que possam atuar e processar os responsáveis pelos incêndios”, afirma o professor. Mas, para ele, “não adianta financiar o combate se na política e na mídia o governante desmerece a situação. Ainda que o Ibama e ICMBio tivessem financiamento ilimitado, se os representantes e líderes do governo incitam as queimadas, de nada adiantaria ter recursos para o combate”.
Segundo o diretor da SOS Pantanal, o combate é o resultado de uma falta de ação anterior: a prevenção. Sabendo que o Pantanal é uma área de potencial risco de incêndio, seria necessário que o governo fizesse projeções e evitasse o ocorrido. Porém, a política de cortes do atual governo prevê uma redução de 184 bilhões de verba destinada ao combate de incêndios e preservação de florestas. “Mais uma vez a sociedade tem que trabalhar com aspectos que o governo deveria estar lidando”, lamenta Felipe.
A luz no fim do túnel pode ser a pressão por parte de empresas e países europeus, que exigem melhores políticas sustentáveis e de preservação em troca de acordos financeiros. Isso vem desde 2015, com o Acordo de Paris, mas, mais recentemente, as ameaças têm sido mais intensas. Sebastian acredita que o governo só mudará de postura caso seja forçado e pressionado por sanções econômicas.
Possível recuperação ou futuro de cinzas?
O futuro do Pantanal é incerto. Considerando que os incêndios ainda estão acontecendo em grande proporção, especialistas ainda não conseguem dimensionar os danos e planejar ações de recuperação. Porém, Felipe é otimista ao afirmar que “o Pantanal é um ambiente resiliente”. Para o diretor da SOS Pantanal, é possível recompor a vegetação do passado com chuvas. Sua maior preocupação é com a fauna.
Além disso, estudiosos se preocupam com uma possível repetição do passado. Há 47 anos, o Pantanal teve a maior baixa de inundações de sua história e é provável que isso ocorra de forma mais frequente, com intervalos menores. “Esperamos que o próximo ano não seja tão seco como esse, porque mesmo que o Pantanal tenha capacidade de se rejuvenescer, o que nos preocupa é a alteração do clima e a recorrência e intensidade de incêndios. Caminharíamos para um futuro com menores chances de recuperação”, assinala Felipe.
Já para Sebastian, aquilo que foi queimado não será recuperado, ainda que seja possível renovar áreas. “Se continuarmos com a mesma política ambiental negacionista do aquecimento global, desmatamento e das queimadas, o futuro é muito pessimista. Com o agronegócio, principalmente a parte ilegal, as queimadas irão dominar o Cerrado, Amazônia, Pantanal, entre outros, resultando em uma perda também financeira do capital natural brasileiro impossível de ser recuperada”, afirma o geógrafo.
Ele tem esperanças numa mudança de postura do governo com as pressões externas, mas não isenta a população de culpa. Segundo ele, as pessoas, bem como autoridades governamentais e econômicas, não enxergam as consequências das destruições em longo prazo. “Por exemplo, o paulistano só começou a pensar nas queimadas na Floresta Amazônica quando, no ano passado, o céu ficou preto devido à fumaça das queimadas. Mas já se esqueceram. A sociedade também não se importa com essas questões, só quando toca na pele mesmo. Se não afeta diretamente, esquecem o problema”, finaliza.
Saiba como ajudar o Pantanal em http://www.sospantanal.org.br/doacoes e https://amparanimal.colabore.org/oncas/single_step
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