Uma dos nomes mais reconhecidos da literatura brasileira, a escritora completaria 100 anos de vida e reflexões nesta quinta-feira (10/12)
“E eis que em breve nos separaremos…”, declama Maria Bethânia, envolta em luzes, lapelas e um público arrebatado pela emoção que toma seu show. Desde o final dos anos 1970, a cantora baiana recita os textos de Clarice Lispector entre suas músicas, inclusive levando o hábito às gravações de seus DVDs. Como uma homenagem corriqueira à escritora, que hoje (10/12/2020) completaria seu centenário, Bethânia chama atenção para uma das maiores características das obras de Clarice: a permanência.
“O texto dela permanece”, destaca Teresa Montero, doutora em Letras pela PUC-Rio e biógrafa. Mesmo após o falecimento de Clarice, em 1977, basta uma citação em meio ao show de Bethânia, ou quem sabe um trecho marcante compartilhado nas redes sociais, para notar a atemporalidade cativante presente em suas obras. “Clarice aborda desde suas conversas com a empregada e com o motorista de táxi até sua impressão em um dia na feira. É cotidiano, mas sempre tem um toque muito forte de surpresa”. Para a escritora, o extraordinário estava no ordinário, o que fez de sua obra um legado imortal.
Júlia Braga Neves, professora de literatura em língua inglesa da UFRJ, também reflete a atualidade dos textos pelo olhar do comportamento humano. “As mensagens de Clarice são atemporais porque são existenciais. Por mais que o comportamento do indivíduo seja determinado pela sociedade, pela história e pelas questões políticas que mudam ao longo do tempo, as pessoas sempre terão suas dúvidas de existência humana”, analisa. Dessa forma, seja na busca por uma razão de ser e viver ou na inquietação por respostas sobre a sociedade, Clarice toca na relação do indivíduo com o mundo e alcança um público infinito.
De Chaya a Clarice
Batizada de Chaya na Ucrânia, onde nasceu, a autora chegou ao Brasil ainda bebê, em 1922. Acompanhada da família, que fugia da perseguição aos judeus depois da Revolução Russa, passou por Maceió e Recife, mas se instalou no Rio de Janeiro, onde passou a morar desde 1935. Na mesma época, os parentes decidiram aportuguesar seus nomes e a menina passou a se chamar Clarice.
Lispector se casou com um diplomata brasileiro e morou em países como Itália, Suíça, Inglaterra e Estados Unidos durante mais de dez anos. Frustrada, se separou e retornou ao Brasil para viver sozinha até a sua morte em 9 de dezembro de 1977, um dia antes do seu aniversário de 57 anos, decorrente de um câncer de ovário.
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Linguagem além das palavras
“Para muitos, uma literatura de mulher. O título, entretanto, não deve ser usado para reduzir a experiência de leitura — e nem afastar o público masculino de suas obras. Ela é uma escritora brasileira muito especial, está além da questão de gênero”, explica a professora da UFRJ. Homem ou mulher, o leitor deve estar preparado para entrar de cabeça no debate existencial que perpassa quase todos os textos herméticos. “Quem lê e gosta de Clarice de primeira é porque se identifica com essas questões existenciais. E quem não se identifica pode ler em um contexto de importância nacional”, afirma Júlia Neves.
Não é preciso, entretanto, ser acadêmico ou intelectual para se aventurar pelas páginas redigidas por Lispector. A própria escritora esclarece o assunto durante uma entrevista de 1977 ao repórter Júlio Lerner, da TV Cultura: “O meu livro A Paixão Segundo G.H., um professor de português do Pedro II veio até minha casa e disse que leu quatro vezes e ainda não sabe do que se trata. No dia seguinte, uma jovem de 17 anos, universitária, disse que este é o livro de cabeceira dela. Quer dizer, não dá para entender.”
Hermética e densa, Clarice ainda foi pioneira no uso de algumas técnicas modernistas que estavam borbulhando na Europa daquele período. “Ela chamou a atenção desde o primeiro romance ao usar técnicas que não eram nada comuns no Brasil, como o fluxo de consciência e a narração do eu. A partir da década de 60, ela também passa a ser lida internacionalmente pelo viés feminista”, conclui a professora da UFRJ.
Começando Clarice
Se aventurar na obra da autora pode pedir um pouco de cautela. Para Teresa Montero e Júlia Neves, a melhor forma de começar Clarice é pelos contos e crônicas. Laços de Família, A Descoberta do Mundo e A Legião Estrangeira podem servir como obras de entrada no universo de Lispector. “Livros como A maçã no escuro e Paixão Segundo G.H. são romances mais densos, obras de fôlego que normalmente pedem que o leitor já conheça outras obras mais concisas”, explica Teresa.
“Se você pegar as obras da Clarice dos anos 40, você tem um tipo de narrativa. Quando ela começa a publicar os contos e as crônicas nos jornais, nos anos 70, ela alcança uma linguagem mais próxima. Há críticos que defendem que os livros que ela escreveu depois dessa fase tinham uma linguagem mais colada ao cotidiano”, completa a doutora em Letras, ressaltando a importância de analisar a época da publicação antes de começar a ler a autora.
Elas explicam que, quem já ultrapassou o primeiro degrau, deve partir para os romances mais complexos. A Hora da Estrela é apontada como uma boa novela de entrada, embora as especialistas também indiquem A Paixão Segundo GH e Perto do Coração Selvagem como obras relevantes para serem exploradas pelo leitor – apesar da maior complexidade. “Clarice não perde qualidade, ela vai dissolvendo a densidade”, sintetiza Teresa.
Clarice de canto a canto
A imortalidade de Clarice também é fruto dos desdobramentos paralelos de cada obra; foram quatro filmes, uma novela consagrada, centenas de peças de teatro e incontáveis músicas inspiradas na produção da autora. “A própria família preza muito por manter a obra dela viva, você sempre vê adaptações”, explica Júlia Neves.
E é desse jeito que a autora invade todos os campos. Do sucesso na teledramaturgia durante o horário nobre da maior emissora do País à presença massiva de frases lispectorianas pelas redes sociais, Clarice não deixa seu posto de cânone na literatura brasileira. Simultaneamente, a autora consegue permanecer nas televisões brasileiras e nas salas de pesquisa ao redor do mundo. “Junto com Machado Assis, Clarice é uma das escritoras brasileiras mais estudadas lá fora. A repercussão internacional é muito grande”, esclarece Teresa.
Para a pesquisadora, isso abre oportunidades para uma disseminação ainda maior de Clarice através de outras linguagens, algo essencial para cativar um público mais jovem. Por sua própria experiência, a biógrafa conta que foi depois de assistir um show de Maria Bethânia, em que a cantora declamou a consagrada autora, que decidiu mergulhar de vez no universo Lispectoriano. “Eu fiquei encantada e pensei: eu tenho que ler tudo que ela já produziu”, lembra. “Às vezes, não é só a leitura. Você pode se aproximar do escritor por outras linguagens”. A partir disso, a especialista recomenda novelas, filmes e seriados inspirados na obra da autora, principalmente para um público que não enxerga a leitura de textos densos como um costume. “Assistindo A Hora da Estrela, por exemplo, muitos jovens podem se interessar e sair em busca da obra original.”
Convicta do poder da imersão por outras linguagens, Teresa realizou um passeio turístico no Rio de Janeiro e publicou, em 2018, O Rio de Clarice: passeio afetivo pela cidade, guia que conduz o leitor por sete caminhos claricianos. Da Tijuca ao Leme, um trajeto tradicional da autora, que cresceu e viveu na capital fluminense, a especialista conta a história de Lispector a partir do asfalto e das construções que tanto fizeram parte de sua vida. “Vamos andando, lendo textos, reconhecendo lugares por onde ela passou…a pessoa volta para casa ansiando mais por Clarice.”
Um centenário durável
“Esse centenário em meio à pandemia é significativo. Fomos obrigados a ficar em casa e nos voltarmos para nós mesmos”, explica a biógrafa. Assim como na obra A Paixão Segundo G.H., de 1964, o papel da humanidade na Terra foi contestado em pleno cotidiano e marasmo de um contexto de isolamento – ao menos ainda não comemos nossas baratas.
Com segurança, as especialistas afirmam que os brasileiros continuarão a ler Clarice nos próximos 100 anos. “Ela faleceu em 77 e cada vez mais é descoberta por novos leitores, de todas as idades. Clarice aborda questões de sempre. O que eu faço no mundo? Como eu vivo? Como são as relações humanas? É um texto que não deixa de ser descoberto”, finaliza Teresa.