Karina Calandrin, doutora em Relações Internacionais, analisa confronto que já dura décadas
“Todos os povos têm direito à autodeterminação e um Estado nacional próprio e reconhecido. A luta por esse direito é o ponto que os une”, diz Karina Calandrin, doutora em Relações Internacionais e especialista em Israel, sobre o conflito mais recente entre o país e a Palestina. Ela lamenta que a situação fomente o antissemitismo, uma vez que muitos não compreendem que judeus são, antes de tudo, um povo.
Uma trégua entre o grupo palestino Hamas (Movimento de Resistência Islâmica) e as forças armadas israelenses foi anunciada, com um acordo de cessar-fogo mútuo, nesta quinta-feira, 20 de maio. A resolução foi feita após um violento embate de 11 dias, que deixou ao menos 240 mortos. O aval, contudo, não determina os rumos que o conflito poderá tomar no futuro.
Uma série de ataques havia sido iniciada após uma operação policial de Israel, no dia 11 de maio, na Mesquita de Al-Aqsa, na Cidade Velha de Jerusalém, cujo domínio é disputado entre judeus e muçulmanos desde a criação do Estado de Israel, em 1948. O caso teve destaque na mídia internacional, trazendo à tona novamente o debate entre Israel e Palestina e chamando atenção para os conflitos no Oriente Médio.
Nos últimos dias, foram relatados choques, como o de Sheikh Jarrah, bairro em Jerusalém. Um grupo de israelenses invadiu a região e tentou despejar famílias palestinas de suas casas. No final de abril, o clima já havia se acirrado com o adiamento das eleições palestinas.
Esses episódios, no entanto, não se deram de forma isolada — uma sucessão de fatores históricos perpassam confrontos como esse. Ao travar mais um embate, o território retoma uma luta de décadas pela liberdade e reconhecimento da soberania palestina. Com a proporção tomada pelos conflitos da última semana, o movimento #FreePalestine fomentou discussões sobre essa relação histórico-social.
A relação Israel x Palestina
A internacionalista afirma que, hoje, não há relação diplomática entre Israel e Palestina. O atual primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu não reconhece quaisquer entidades palestinas como representações oficiais do território. Segundo Calandrin, Netanyahu entende que a Autoridade Nacional Palestina (ANP) — que, pelos Acordos de Oslo (1993), deveria ser o órgão governante — não é capaz de representar o país.
O desentendimento surgiu em 2005, quando houve uma cisão na regência palestina entre a própria ANP e o Hamas. Atualmente, a primeira é responsável pela Cisjordânia, enquanto o Hamas, que lidera a Faixa de Gaza, é considerado pelos israelenses como um grupo terrorista. Por conta disso, a região não é reconhecida como de soberania palestina.
Sobre a relação de poder territorial que Israel exerce e uma possível associação com o imperialismo estadunidense, Calandrin afirma que, “embora os países demonstrem grande afinidade, a conjuntura atual não é um molde desse sistema: foi apenas nos anos 1970 que se deu a ligação entre eles”. Mas, segundo ela, existem historiografias que compreendem Israel como um Estado colonial e que aproximam o sionismo e a criação da nação com o colonialismo do século XVI.
Para a profissional, a constituição do país não pode ser referida como colonialista, por ter sido, a princípio, igualitarista e mediada pela ONU. Ela não exclui a possibilidade de, no entanto, questionar a legitimidade da organização ao fazê-lo. “As únicas atividades de colonização que podem ser observadas nesse contexto são as ocupações ilegais na Cisjordânia e outros territórios palestinos”, explica a especialista.
A luta árabe-palestina pelo reconhecimento
A criação do Estado de Israel se deu no pós-Segunda Guerra, enquanto a Palestina estava sob comando britânico. Ainda com resquícios do imperialismo do século XIX, a Grã-Bretanha abriu mão da área para a criação dos dois territórios. A decisão, organizada pela ONU, foi potencializada pelo sentimento de culpa das grandes potências após o holocausto.
Entretanto, países árabes que eram contra a formação da nova nação invadiram a área onde ela seria criada, no evento conhecido como Guerra Árabe-Israelense de 1948. Israel apenas saiu vitorioso devido ao apoio que recebeu das maiores potências da época.
Posteriormente, segundo Calandrin, houve o reconhecimento dos palestinos como um povo árabe. “Isso não se deu de forma automática. Os demais povos não lutavam contra Israel por serem a favor da autonomia palestina. O fortalecimento da questão só ocorreu com a criação da Organização para Libertação da Palestina (OLP), quando passaram a discutir amplamente o tópico”, esclarece.
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Quando os palestinos e seus apoiadores começaram a agir a favor de sua libertação, Israel já era um país consolidado. “A luta de um povo sem reconhecimento e com apoio tardio, contra uma nação não apenas fortalecida, mas que também contava com o apoio de grandes potências, torna a situação muito assimétrica e delicada”, comenta a especialista.
Apesar dos desentendimentos de décadas, existem países do Oriente Médio que mantêm tratados de “paz fria”. Esses acordos fizeram uma série de atritos esvaecerem ao longo do tempo. O que ainda se mantém são embates entre grupos que Israel julga terroristas, como Hamas e Hezbollah. Com isso, o primeiro-ministro do país reforça uma percepção de que não há mais conflitos que envolvem a nação, já que, segundo ele, esses oponentes seriam ilegítimos.
Crise e confrontos recentes
Calandrin enfatiza que, “apesar de terem sido divulgados ataques em Gaza, com ofensivas de foguetes disparados pelo Hamas e respostas em ataques aéreos, a crise começou, na verdade, dentro de Israel, com as revoltas e protestos em Jerusalém contra a população árabe”. Com isso, o Hamas declarou apoio aos árabes e só então o conflito foi levado à Gaza e à Cisjordânia.
O grupo é financiado pelo Irã, inimigo declarado de Israel. Apesar do suporte financeiro do país e a invalidação israelense, o movimento foi eleito de forma legítima pela população de Gaza, fomentando a rivalidade entre o Hamas e a ANP.
Na opinião da internacionalista, além dessa polarização contribuir para o risco de guerra no local, ela acredita que Israel não deveria contra-atacar, porque o país tem consciência das táticas do Hamas e das consequências que suas defesas trazem. Segundo ela, isso criaria uma comoção internacional para o Hamas. “O problema é que, com esse fundamento, o governo Netanyahu obtém lucros políticos internos, reforçando o argumento de que só ele seria capaz de proteger sua população, então ele consegue se manter no poder. Ao final, tudo se trata de um jogo político”.