Mortes, remoção de famílias e perdas agrícolas são algumas das consequências da situação crítica tanto na capital quanto no interior do estado
“Fui atender um casal de idosos e a primeira refeição que eles iam fazer no dia era aquela, a sopa que eu estava entregando. Perguntei por que eles não saíam para pegar comida. Me disseram: ‘Mas doutor, se a gente sair daqui, vão deixar nossa casa sozinha e roubar nossas coisas’. Perguntei por que não pediram para alguém trazer comida. E me responderam: ‘Como a gente pede comida se a gente não tem dinheiro para pagar’. Era uma luta pela sobrevivência diária”. O relato é de Rodrigo Damasceno, 37, médico e ex-prefeito de Taraucá, sobre as enchentes no Acre em fevereiro deste ano.
Ele atuou na linha de frente para ajudar os afetados pelo alagamento, dando suporte médico e distribuindo alimentos para os mais vulneráveis. O pequeno município, que abriga cerca de 40 mil habitantes no noroeste do estado, foi severamente atingido pela água, e, pela falta de estrutura, a situação foi ainda mais grave que a da capital.
Rio Branco – Acre
“Já era hora de Rio Branco começar a analisar a hipótese de um plano urbanístico de mudança, de saída”, opina Miguel Scarcello, 61, geógrafo e presidente da ONG SOS Amazônia. A cidade é cortada pelo Igarapé São Francisco, um dos afluentes do Rio Acre. As casas da região são frágeis e geralmente feitas de madeira, quanto mais próximas do leito do rio, mais carentes são as famílias. A distribuição da população no território, mais uma vez, brinca com a estratificação social. Quem está à margem, seja do rio, ou da sociedade, sofre mais os impactos de uma crise.
18 cidades do Acre estão localizadas na margem dos rios. Quando a cheia passou do previsto, atingiu bairros com grande concentração de pessoas. Muitas casas estão instaladas em áreas de preservação permanente e a ocupação histórica se tornou zona de risco para a defesa civil. “Muitas famílias foram transferidas, mas muitas ainda permanecem. No caso de muitas cidades, não há estratégia de desocupação e de transferência ou reestruturação da ocupação para que ocorra menos impacto”, aponta Scarcello.
O Acre possui um longo histórico de alagações. Uma das maiores aconteceu em 2015, quando mais de nove mil pessoas ficaram desabrigadas. Em 2012, o governo do estado havia criado uma estrutura de monitoramento, onde são publicados diariamente dados hidrometeorológicos — incluindo temperatura, índice de chuva e elevação dos níveis dos rios. Os números são analisados para que haja acompanhamento da situação na cabeceira e nas regiões a montante.
Remoção de famílias
João Renato, 36, é cabo do corpo de bombeiros do estado do Acre e atuou ativamente na retirada de famílias em Rio Branco durante as enchentes. Para ele, o trabalho ficou sobrecarregado, já que atuar nas alagações é trabalho da defesa civil. “Nós estamos com um déficit muito grande de efetivo. Faz muito tempo que não temos concurso público para o corpo de bombeiros, um tem que trabalhar por dois, três para poder atender às necessidades da população”, relata.
Este ano, segundo o cabo, foi ainda mais complicado. A presença da pandemia deveria impedir a aglomeração de pessoas, o que na prática não acontece. As pessoas são encaminhadas para os mesmos abrigos, onde dividem banheiros e espaços de alimentação.
Renato conta que os afetados possuem poucos móveis, em geral mais velhos. Apesar disso, “é complicado fazer a remoção, porque a gente sabe que aquilo que para nós é uma besteira, é tudo o que a pessoa tem”, pondera o bombeiro.
Ele ainda afirma que geralmente a mobília é de aglomerado, formada por uma mistura de resíduos de madeira e, portanto, mais frágil e de menor qualidade. “Se você movimenta o móvel dentro da sua casa para limpar, já corre o risco de quebrar. É ainda pior quando faz a remoção, leva para o abrigo, depois volta para a casa”, diz. “É bem triste, a gente que está ali no dia a dia vê que o povo não tem condição”, desabafa.
Perdas com as enchentes
Miguel Scarcello ressalta que a situação vista em Rio Branco não se compara à de outras cidades, como Taraucá. A capital é onde se encontra o maior número de pessoas para dar assistência.
Segundo o geógrafo, a realidade de seu estado deve ser mais bem compreendida. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2017 mostram que quase metade (47,7%) dos acreanos estava à margem da linha da pobreza. Ainda assim, o estado tem suas riquezas, que, para Scarcello, não são reconhecidas. “É o segundo estado que mais produz castanha, mas a castanha é ‘do Pará’. Até nisso a gente perde o mérito”, desabafa.
Na visão dele, o Acre é um estado com formação muito original, diferente de boa parte do País, por ter sido território boliviano. Ainda de acordo com ele, olhos deveriam ter sido voltados para o estado antes da crise. “É preciso atrair olhares para uma etapa posterior, não só na época de dificuldade. É necessária uma combinação de esforços a favor do fortalecimento da economia local, da valorização de proteção da floresta e da produção com a floresta de pé”, afirma o geógrafo.
As enchentes afetaram diferentes grupos apoiados pela ONG SOS Amazônia. Famílias da reserva Chico Mendes tiveram suas plantações alagadas. “A safra deste ano já se perdeu. Temos de retomar os trabalhos e preparar a de 2021, 2022”, afirma Scarcello sobre regiões de produção de cacau nativo, que são protegidas e afastadas da cidade. Ele complementa a respeito das famílias que perderam seu sustento com as enchentes: “As áreas de produção nativa e de roçado foram alagadas, por dois anos consecutivos a produção está perdida”.
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Taraucá – Acre
Segundo o ex-prefeito de Taraucá, Rodrigo Damasceno, a situação no município tomou proporções inimagináveis: “80% da cidade afetada é muita coisa. A Delegacia estava com água, os postos de saúde alagados, o fórum da cidade já tinha sido consumido pela água. É algo que foge da nossa dimensão. As pessoas não entenderam o tamanho do problema. Eu não acredito que alguém em sã consciência menospreze o que passamos”.
De acordo com a medição do corpo de bombeiros, o nível do rio estava em 11,05 metros. A cota de transbordo é de 9,50 metros, ou seja, estava 1,55 acima do nível máximo estipulado para alagar a cidade. A maior cota já registrada é de 11,93, em 2014.
Em fevereiro, o município decretou estado de calamidade pública, com mais de 28 mil moradores afetados. Para Damasceno, a falta de um auxílio do governo federal colocou muitas famílias em situações ainda mais precárias. “A falta de ajuda emergencial faz as pessoas correrem atrás do que comer. As famílias estavam realmente passando fome”.
Bolsonaro no Acre
Para Scarcello, a ida de Bolsonaro ao Acre em fevereiro deste ano foi uma grande irresponsabilidade. O presidente desembarcou em Rio Branco para sobrevoar as regiões mais atingidas pelas enchentes e se encontrou com o governador do estado, Gladson Cameli (PP), que foi diagnosticado com covid-19 três dias após o encontro com a comitiva do chefe de Estado. “São essas situações que nos deixam apreensivos, mais revoltados ainda. Eu não vejo o horizonte, em todos os meus anos de vida, não imaginava passar por isso”, desabafa o presidente da ONG.
Scarcello e sua família fizeram parte dos mais de 17 milhões de brasileiros contaminados pelo coronavírus até o fechamento desta reportagem. Seu sogro foi uma das 474 mil vítimas do vírus no País. “Além da perda e do sofrimento que passamos, é triste e revoltante ver o presidente da República com atitudes como as que ele está tomando”, diz.
Pandemia no Acre
Segundo o médico Damasceno, uma soma de fatores fez Taraucá chegar ao estado de calamidade; o descontrole da pandemia de covid-19 no estado foi uma delas. Uma das mais de mil mortes pela doença no estado foi de uma emblemática figura da cidade. Ele lamenta: “Perdemos um historiador que sabia a história da cidade inteirinha na cabeça. O ex-prefeito acabou pegando covid, agravou e evoluiu a óbito. Estamos perdendo pessoas importantes de Tarauacá de forma trágica e antes do tempo. São perdas que estão virando quase que rotina”.
Damasceno concorda com a visão do geógrafo sobre a má gestão do governo Bolsonaro na pandemia. Para ele, o desprezo pelo vírus é um dos maiores agravantes da falta de conscientização da população. “O problema é a conscientização da população. Quando nosso maior representante despreza o impacto da pandemia, diz que usar máscara é besteira, desacredita o distanciamento social, a população usa isso como desculpa para não seguir as medidas restritivas”, analisa.
Como médico, ele afirma que a impotência é cotidiana: “Estamos tratando demais de números, mas são famílias. O cemitério local precisou de ampliação porque não tem mais espaço para enterrar as pessoas que estão morrendo”, diz. O ex-prefeito ressalta, ainda, que durante a cheia do rio, a sensação foi potencializada: “Fui oferecer sopa para uma família e me disseram que não queriam comida, pediram que eu fizesse a água baixar, algo que eu não posso controlar. Dá um sentimento de impotência”.