Das duvidosas interpretações à alucinante metalinguagem, Cidade dos Sonhos, um dos mais famosos filmes de David Lynch, completa duas décadas em 2021
Em 2002, Márcia Ramos, doutora em Ciências da Comunicação, assistiu no Cinearte (SP) o filme Cidade dos Sonhos, escrito e dirigido pelo cineasta estadunidense David Lynch, lançado nos Estados Unidos em 2001. Após a sessão, ela recebeu um folheto do cinema para que os espectadores compartilhassem suas interpretações do filme, que está completando 20 anos em 2021.
Cidade dos Sonhos, que, a princípio, conta a história de uma aspirante a atriz que vai a Los Angeles tentar a vida, possibilita diversas compreensões, principalmente por causa da história não linear de caráter onírico. Márcia vê que há múltiplas interpretações válidas para o filme, mas concorda com a mais recorrente: a primeira parte da obra seria um sonho da personagem Diane (Naomi Watts) e a segunda parte, a “realidade”.
Mas a visão não é um consenso, a começar pelo próprio David Lynch, que não aprecia análises fechadas de suas obras. “Temos que tomar cuidado com a análise interpretativa, porque às vezes ela fecha um único sentido e obras do Lynch rompem a interpretação única, colocando outros desafios”, comenta Rogério Ferraraz, doutor em Comunicação e Semiótica.
Henrique Quaioti, mestre em Comunicação Audiovisual, concorda: “Se você quiser interpretações do enredo, há milhares, mas não há uma resposta propriamente dita”. Sem fechar análises, as obras lynchianas podem ser analisadas sem que sejam definidas. Para Márcia, o filme exige um trabalho mental do espectador.
“Nós somos como o sonhador que sonha e vive dentro do sonho. Mas quem é o sonhador?”
A fala é de um sonho do detetive Gordon, personagem de Twin Peaks, série do diretor. Ela abarca um dos principais nortes para pensar o “lynchiano”: o sonho, mas, principalmente, as questões: “O que se vê é sonho de alguém? De quem?”.
Em Cidade dos Sonhos, algumas cenas parecem vir do inconsciente de diferentes personagens, não apenas de Diane. Por exemplo, na cena em que Dan e Herb estão na lanchonete Winkie’s, aparece um vulto. Um momento aparentemente desconexo da trama central se mostra como um sonho de Dan, e é retomado ao longo do filme com elementos sutis.
Afinal, quem é o sonhador?
Mulholland Drive – Diner Scene from Stephen Wiebe on Vimeo.
Rogério enfatiza outra perspectiva: “A instância narradora parece estar contaminada pelo surrealismo, faz mais sentido do que relacionar com somente um personagem”. Henrique complementa que “a forma como o filme é feito traz um onirismo, pois a lógica do sonho está presente na construção da narrativa, por exemplo, pela ausência de causa e consequência”. A tal realidade passa a ser surreal por incorporar esses e outros elementos da vanguarda, como a não-linearidade, o rompimento das fronteiras entre o “real” e o “sonho” e a ausência de temporalidade lógica.
Mesmo assim, os sonhos e os sentimentos são também abordados no enredo e, muitas vezes, se expressam na construção da narrativa. Rogério aponta que “a análise feita em cima do estado emocional da personagem é mais expressionista”. O expressionismo cinematográfico consiste em narrativas contaminadas pelo estado psicológico das personagens.
Para Márcia, essa dualidade entre a instância narradora surreal e a expressão emocional coloca no espectador a dúvida: “Será que o que eu estou vendo é sonho ou realidade?”. Rogério acredita que, “nessa dúvida, Lynch trabalha a junção entre o expressionismo e o surrealismo”.
“Diane Selwyn. Talvez seja meu nome”
Outra característica do cinema de Lynch que também é motivo de confusão para quem assiste é a troca de identidades. Suas personagens funcionam em dinâmicas duais, como, em Cidade dos Sonhos, entre Betty/Diane (Naomi Watts), Rita/Camilla (Laura Harring) e a própria relação ambígua entre as personagens das duas atrizes. Essa ideia se repete em quase todas as obras de David Lynch em níveis diferentes.
“O conceito do duplo é um ponto essencial para pensar Lynch”, afirma Márcia. O duplo, ou doppelgänger, se revela como um outro lado de um mesmo sujeito, um lado oposto, mas complementar, trazendo a ideia de uma identidade fraturada. Sua representação já tomou muitas formas: o reflexo no espelho, a imagem na tela, a sombra, ou se concretizou em uma segunda figura, como ocorre em Twin Peaks entre o agente Cooper e seu explícito doppelgänger, Mr.C.
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O duplo foi tomando forma ao longo da filmografia de Lynch. Henrique indica seus primórdios em Eraserhead (1977), primeiro longa do diretor. “O personagem Henry fica chocado quando seu filho deformado nasce e sofre uma crise de identidade. Mas parece que essa crise vai se tornando mais forte em Estrada Perdida (1997) e, em Cidade dos Sonhos, ela explode”. A crise de identidade se manifesta em diferentes personagens que compartilham faces de um mesmo sujeito.
Além de questionar os limites da identidade, Rogério levanta como o doppelgänger é usado por Lynch para gerar inquietação nos espectadores. Muito caro ao surrealismo e ao expressionismo alemão, o duplo representa um lado sombrio de algo familiar, um fator de estranheza que ocorre quando não se distingue realidade e ficção. As trocas de identidade – ora notadas somente pelo público, ora notadas pelas outros personagens da trama – “acentuam o estranhamento de seus trabalhos”, pontua o pensador. Assim, mesmo não sendo narrativas de horror, os filmes de Lynch estranham ao ponto de causar medo.
“¡No hay banda! É tudo uma gravação”
Estrada Perdida, Cidade dos Sonhos e Império dos Sonhos fazem parte de uma trilogia não oficial que fala de forma metalinguística sobre Hollywood e a indústria cinematográfica. A metalinguagem se dá não apenas na temática, mas, de acordo com Henrique, por “desmascarar mecanismos do cinema e colocar as personagens como espectadoras”.
Isso se evidencia na cena do Club Silencio, em Cidade dos Sonhos. Betty e Rita vão a essa casa de shows e um apresentador, vestido de mágico, brada: “Não há banda! Mas nós escutamos uma banda. É tudo uma gravação. É uma ilusão”. Então, uma cantora dubla uma música e desmaia, mas a canção gravada continua. Henrique aponta que, nessa cena, “Lynch mostra o cinema como produtor de ilusão, como arte do fingimento”. A passagem também lembra Veludo Azul (1986), outro longa de David Lynch, quando algumas personagens assistem Ben dublar a música ‘In Dreams’.
Mulholland Drive from undercaos on Vimeo.
Em outros momentos de Cidade dos Sonhos, o zoom out da câmera revela que o que se vê em tela é uma encenação de um filme dentro do filme. É o que ocorre, por exemplo, na cena da audição da atriz para o próximo filme de Adam Kesher, personagem diretor de cinema na trama.
Assim, a metalinguagem parece questionar ainda mais a realidade fílmica. Não há um interruptor que determina o que é real e o que é sonho ou filme dentro do filme. Os espectadores são jogados numa zona indefinida, em que realidade e ficção se confundem, o que Rogério chama de “zona limítrofe”.
“É um mundo estranho, não é?”
A complexidade de Lynch expressa, para Márcia, uma dualidade. “Uma grande obra é para sentir e analisar, para assistir ao menos 2 vezes”, ela opina. Para Rogério, “o legal é se jogar no ‘entre’ e não tentar definir as obras como uma coisa ou outra”. Já Henrique se encanta com a ideia do ‘cinema pelo cinema’. Como na cena do Club Silencio, “você sabe que o que se sucede é uma ilusão, mas você se emociona mesmo assim, pelo prazer de ver aquilo”.
Os mistérios que Lynch cria não são feitos para uma explicação que os encerre; são feitos para perdurar dentro do espectador. E são impactantes porque deixam uma eterna dúvida do que pensar, do que significar e do que sentir.