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Por Ana Carolina Idalençio, Íris Chadi e Maria Eloisa Barbosa Edição #65

Acervos pulsantes

Museus brasileiros realizam processos de conservação e restauro para manterem vivos diversos aspectos culturais da sociedade

Em setembro de 2018, o bicentenário Museu Nacional, no Rio de Janeiro, ardeu em chamas. O incêndio transformou em cinzas itens históricos que lá se encontravam. Depois dessa tragédia, holofotes se viraram mais uma vez para a preservação dos museus e a conservação de seus acervos, mesmo que outros desastres tenham ocorrido anteriormente, como o fogo do Museu da Língua Portuguesa, em 2015, e o da Cinemateca Brasileira, em 2016, ambos em São Paulo.

As chamas também levantaram a questão da visitação a esses pontos de cultura, uma das formas de sustento mais importantes dessas instituições. Em 2017, por exemplo, somente o número de brasileiros que visitaram o Museu do Louvre, na França, foi 50% maior que o número total de visitantes do Museu Nacional, segundo a assessoria de imprensa deste. Sob holofotes erguidos após tragédias ou não, a preservação de obras e da estrutura é uma questão constante nos centros culturais do País.

O esquecido Museu do Ipiranga, em São Paulo, é um dos casos que chama atenção. Foi fechado em 2013 devido a problemas estruturais. Paulo Marins, docente da Universidade de São Paulo (USP) e presidente da comissão de pesquisa do museu, relata que existiam atividades de rotina para prevenir catástrofes no edifício, como um possível risco de desabamento. Em uma dessas inspeções, foi revelada uma falha que poderia comprometer a estrutura do museu, demandando obras de recuperação. As paredes do prédio apresentavam diversas rachaduras e estavam se desmanchando.

Alguns museus, como o Paulista, possuem uma equipe própria de restauração de obras danificadas
José Rosael / Museu Paulista

O processo é mais minucioso em relação à conservação de obras. No Ipiranga, há um serviço assim responsável por procedimentos de rotina, que evitam o desgaste das peças do acervo. Além disso, há intervenções mais diretas, como higienizações aprofundadas ou substituições de suportes. Em último caso, há a restauração quando a obra está muito danificada.

No Museu da Imagem e do Som (MIS) de São Paulo, por sua vez, a diversidade de itens no acervo – de fotografias a películas de filmes – requer cuidados específicos, feitos em um laboratório no próprio local. Ali, é realizada a conservação preventiva para evitar que os artigos sofram danos, como rasgos. Após o procedimento, os objetos são armazenados em salas com condições de temperatura e umidade controladas. As películas necessitam atenção redobrada: se forem degradadas, liberam ácido acético, que põe em risco os outros filmes.

Todo cuidado é pouco. “Estamos falando de bens culturais que pertencem a todo mundo”, explica Sofia Hennen, conservadora do Museu de Arte de São Paulo (Masp). “O museu é uma infraestrutura que assegura e faz a conservação desses bens, mas tem como missão que as pessoas possam acessá-los. Porque não é um patrimônio do local, é um patrimônio da humanidade”. Grande parte das instituições museológicas têm um acervo que serve de base para pesquisas. Liberar os acervos para o público é permitir o contato entre pesquisadores atuais e artefatos do passado para compreender a sociedade, a história e a população.

Os materiais utilizados na conservação são de alto custo e, geralmente, importados
Íris Chadi

No MIS, CDs do século passado, por exemplo, falam muito sobre aquela época específica e podem ser um item de estudo. “A importância do nosso trabalho, querendo ou não, é guardar itens históricos e disponibilizá-los para pesquisa”, conclui Jorge D’Angelo, assistente de documentação do MIS.

Alguns museus possuem uma equipe própria de restauração de obras danificadas. Outros, por não terem verba suficiente e por nem sempre terem a necessidade de realizar o processo, contratam empresas especializadas, como acontece no MIS-SP. Apesar de ser um processo científico, a prática pode envolver um trabalho subjetivo. Instituições com visões diferentes acerca da arte trabalham com métodos ímpares para preservarem seus patrimônios.

O Museu do Ipiranga prefere deixar claro nas restaurações que houve uma mudança na obra já que se considera uma instituição com fins históricos. “Se nós perdermos a leitura daquilo que resta de uma determinada obra a partir de uma confusão da restauração, isso começa a perder a possibilidade de se tornar um documento. Então é sempre importante que a gente consiga distinguir entre o tempo histórico e o da restauração”, opina Marins. Já o Masp, que se considera um museu com fins artísticos, opta por não evidenciar as alterações. “A gente valoriza mais a apreciação do objeto de arte do que a história material”, afirma Sofia Hennen.

Em casos como o do incêndio do Museu Nacional – em que 90% do acervo ficou comprometido, segundo a vice-diretora da instituição, Cristiana Serejo –, há uma alternativa. A digitalização de arquivos surge como possibilidade para a conservação da memória do museu. O Nacional tem usado de plataformas como o Google Arts & Culture para reviver por meio de fotos artigos que estavam armazenados ali antes de serem consumidos pelas chamas e de ferramentas de streaming para divulgar áudios imersivos que simulam a experiência do museu e do contato com suas peças.

“A obra é a obra. A digitalização é uma representação de um artefato, a gente não pode substituir uma coisa pela outra. Também não pode substituir um item que se perdeu em um incêndio por uma réplica achando que isso é a mesma coisa”, desabafa Paulo Marins. Acervos online também facilitam a pesquisa e preservação de documentos que não podem ser manuseados por serem antigos e frágeis. “A digitalização serve para a preservação do item nesses dois sentidos. Primeiro para facilitar a questão do pesquisador, que pode pesquisar o item previamente em casa. Segundo para preservar o próprio item em si”, afirma Rodrigo da Silva, assistente de documentação do MIS-SP.

A digitalização de arquivos faz parte da conservação da memória dos museus
Íris Chadi

Instituições esbarram em limitações financeiras mesmo com toda a importância do trabalho que realizam. O Centro Cultural São Paulo (CCSP) se sustenta apenas com financiamentos públicos, o que dificulta a situação econômica do local. “Material de conservação é sempre um material muito caro, quase nada é fabricado no Brasil, praticamente tudo é importado”, explica Cláudia Bianchi, conservadora da coleção de arte do local.

Para contornar esse déficit, algumas instituições têm buscado suporte da iniciativa privada para se  sustentarem economicamente. A saída que o MIS-SP, por exemplo, e outros museus da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo encontraram foi o sistema de organização social. O governo estadual cede a administração a entidades privadas, que recebem uma verba de auxílio do poder público e contratam funcionários, compram materiais e têm a liberdade de fazer uma captação extra de recursos. “A gente faz um malabarismo com verba, procura investimentos e outras coisas”, revela D’Angelo. Museus têm sistemas de parcerias e patrocínios que auxiliam na parte financeira. O Masp, por exemplo, tem o programa de fidelização Amigos do Masp, que arrecada recursos para a instituição e oferece benefícios exclusivos para quem participa, como descontos.

Segundo dados do órgão federal Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), o número de visitantes em museus brasileiros tem aumentado a cada ano. Ainda, para 81% dos entrevistados da pesquisa Narrativas para o Futuro, do grupo Oi Futuro, museus são prédios antigos e de arquitetura clássica e 65% enxergam a função desses lugares como de aprendizagem. Ainda de acordo com o Ibram, no Brasil há hoje 3.793 museus, o equivalente a menos de um museu por município do País.

Para a museóloga do Museu de História Natural do Alagoas, Cíntia Nascimento, os brasileiros sempre estiveram conectados com a arte de todos os tipos, mas essas instituições têm atraído mais o público. “Eu penso que a partir de eventos que se tornaram anuais, como a Semana de Museus ou a Primavera de Museus, eles voltaram a popularizar suas ações e a fazer um esforço para chegar ao público”, considera Nascimento.

Cláudia Bianchi, do CCSP, confirma essa visão. “Eu acredito que não é só na questão de valorizar esses espaços, mas em criarmos uma ponte de comunicação com as pessoas, para que exista um lugar em que elas possam utilizar”, afirma. Essa conexão é importante para conseguir investimentos: onde há mais pessoas, há mais interesses e, consequentemente, sobrevivência para essas instituições tão importantes no cenário cultural do País.