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Por Ana Carolina Prado, Pedro Alvarez e Rafael Lara Edição #65

Lar ou cárcere?

Centros de acolhimento paulistanos destinados a moradores de rua revelam acertos e falhas

Na cidade de São Paulo, os Centros Temporários de Acolhimento (CTAs) foram criados em 2017 pelo então prefeito João Doria (PSDB), atual governador do Estado. Em teoria, trabalham em conjunto com os demais centros de acolhida do município destinados a darem suporte à população de rua. ESQUINAS visitou albergues e ouviu a voz dos funcionários e moradores desses espaços, revelando detalhes do cotidiano da vida dessas pessoas tão presentes na paisagem paulistana.

O Arsenal da Esperança, no bairro da Mooca, é um deles. Recebe 1.200 pessoas diariamente, sendo 1.150 em vagas fixas e as demais em rotativas. É considerado exemplo tanto por líderes de pastorais católicas quanto por moradores de rua que frequentam o local. Originário do Servizio Missionario Giovani (Sermig) – que começou suas ações a partir de 1964, em Turim, na Itália, por iniciativa do casal Ernesto Olivero e Maria Cerrato –, o Arsenal foi aberto em São Paulo em 1996, instalando-se na antiga Hospedaria dos Imigrantes, onde está até hoje.

Todos são orientados a cooperar para o bom convívio interno. Segundo o líder do local, o padre Simone Bernardi, não portar armas é a regra primária da casa. Caso algum frequentador do Arsenal seja denunciado por um de seus pares de estar com qualquer tipo de arma – mesmo tesouras sem ponta –, é convidado a se retirar de lá após uma revista atestando tal situação. “A pessoa que vêm aqui tem que ter a segurança de que está dormindo sem se preocupar com um possível ataque da pessoa ao lado”, explica Bernardi. Caso o abrigado cause problemas, ele é avaliado pelo comitê dos funcionários e diretores do albergue e encaminhado a outras casas de acolhimento.

O albergue criou um sistema monetário próprio para as transações comerciais internas, o Ar$. Cada cinco Ar$ equivale a dez centavos de real. O residente pode trocar essa moeda por itens do brechó comunitário ou para lavar suas roupas na lavanderia. Uma das maneiras de ganhar Ar$ é recolhendo latinhas ou outro tipo de alumínio na rua, trocando-os no Arsenal pela sua quantia interna. “O intuito principal dessa dinâmica é incentivar o morador a trabalhar, ser recompensado pelo seu esforço e melhorar sua autoestima”, diz Bernardi.

Outro assunto que fica evidente no lugar é a política de não uso de drogas e álcool dentro e fora da casa de acolhida. “No Arsenal, se chegar com bafo de cachaça, não entra”, revela o morador Elias da Silva. Contudo, para o padre Bernardi, às vezes a droga não é o pior inimigo dos moradores: não terem o que perder faz a rotina diária deles desanimadora. “Há albergues e albergues. O Arsenal trabalha direitinho, mas isso é raridade aqui em São Paulo. Nos CTAs está cheio de muquirana, pulga, lençol fedido, banheiro horrível. Todos são assim”, complementa Silva, que já passou pelo Arsenal e outros centros da cidade. Atualmente, ele frequenta o CTA Mooca I.

Popularmente conhecido como CTA Água Rasa, o Mooca I foi criticado por praticamente todos os moradores de rua entrevistados. No site da Prefeitura de São Paulo, os centros são descritos de maneira utópica: “Os CTAs têm a finalidade de assegurar atendimento e atividades direcionadas para o desenvolvimento de sociabilidades, na perspectiva de fortalecimento de vínculos que oportunizem a construção de novos projetos de vida”. Um discurso que não condiz, todavia, com a denúncia de alguns acolhidos que não quiseram se identificar à reportagem.

No esforço de manter o bom funcionamento do local, diariamente ocorre o serviço de limpeza de roupas no Arsenal da Esperança
Pedro Alvarez

No Água Rasa, moradores reclamam de um desvio de alimentos por parte de funcionários da casa. Segundo relatos, os próprios abrigados teriam ajudado a descarregar o caminhão com suprimentos como mamão, cereal e manteiga, mas não os viram chegar no refeitório. Além disso, haveria uma distinção na forma de tratamento, privilegiando alguns moradores em detrimento de outros. Por exemplo, na hora da distribuição de comida, existiriam pessoas que receberiam uma porção maior do que outras por terem mais “afinidade” com alguns funcionários do local.

Em resposta, a Prefeitura esclarece que o mamão da doação foi servido como suco para o almoço dos conviventes em vaga fixa. Quanto a alimentos como os cereais matinais, doação do Programa Mesa Brasil, eles foram servidos por duas semanas para os moradores como lanche da tarde até que acabasse o estoque.

Questionada sobre os demais problemas no CTA Mooca I e outros centros de acolhida de São Paulo, a Prefeitura enviou a seguinte nota a ESQUINAS: “A Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) informa que o Centro Temporário de Acolhimento Mooca I recebeu visita técnica em 29 de março de 2019 da qual apontou necessidades de manutenção. Entre elas estão os reparos na pintura em dormitórios e banheiros, instalação de grades nas janelas dos dormitórios e recolocação de forro nos locais faltantes do imóvel. As medidas já estão sendo tomadas”.

Todas as finalidades a serem cumpridas pelos centros de acolhimento mencionadas anteriormente foram retiradas do portal da SMADS. A questão é se essas metas são, de fato, cumpridas. Problemas ligados a saúde, auxílio na recolocação profissional e familiar seguem sendo rotina nesses centros de acolhimento.

A reinserção do morador no mercado de trabalho é outra preocupação que deveria ocorrer nos albergues e CTAs. “Alguns de nossos irmãos já perderam a autoestima, já perderam o vínculo em sociedade por ficarem muito tempo na rua”, diz Antônio Carlos Miranda Ferreira, morador que ganha a vida fazendo malabarismo nos semáforos da metrópole. Existe um preconceito das empresas em geral com esses candidatos às vagas, o que dificulta o reingresso dessa camada da população no mercado de trabalho formal.

Um morador reclama de ter distribuído aproximadamente cem currículos em busca de emprego em quatro empresas de São Paulo e a secretaria do Mooca I não o avisar que o responsável de uma dessas empresas ligou por diversas vezes em busca dele.

Neste contexto, iniciativas auxiliam na recolocação deles no mercado. O Arsenal da Esperança promove oficinas de construção civil e permite que os residentes trabalhem em áreas da cozinha e lavanderia. Os acolhidos ainda podem ser indicados pela diretoria para trabalhar em outros lugares, reinserindo-os com mais facilidade no mercado. “A oportunidade é para poucos. Se você agarrar, você consegue se restabelecer. Tem muitos ali que conseguem uma pensão, um quarto próprio após sair do albergue. Eu mesmo consegui, e olha que foi na década de 1990. Quando eles veem que você está disposto a recomeçar, eles te ajudam. Mas isso não ocorre em outros lugares”, comenta Wilson Vitalinio, que apesar de tudo, encontra-se hoje em situação de rua.

Apenas homens entram é a política do Arsenal. A justificativa, segundo Bernardi, é a falta de recursos suficientes para abrigar mulheres e crianças. Segundo censo da Fundação do Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) de 2015, 82% da população em situação de rua em São Paulo é composta por homens. As mulheres são encaminhadas para outros abrigos, como o Centro de Acolhida Casa Verde ou Casa de Apoio Maria Maria, no Canindé. Não há casas destinadas a elas nas zonas oeste e sul da cidade. Já as crianças são direcionadas pelo serviço social do Arsenal ao Conselho Tutelar de São Paulo. Famílias que moravam em situações de rua têm que ser separadas para receber auxílio. Rogério Ferreira da Silva e Patrícia Santos da Silva moram na rua por não encontrarem albergues que recebam casais sem filhos na cidade. “A gente é casal e não vai se separar”, defendem-se.

Outra reclamação constante por parte dos moradores de rua frequentadores de albergues e CTAs é a da falta de sensibilidade dos locais em relação ao tratamento de saúde oferecido. Um morador que não quis se identificar por medo de represálias afirma que teve uma crise de herpes zóster enquanto estava abrigado no extinto Centro de Acolhimento Emergencial do Brás no inverno de 2018. “Eu gritava de dor e ninguém vinha me ajudar”, relembra.

Os relatos desses moradores de rua de São Paulo evidenciam que as políticas públicas oferecidas pela Prefeitura estão longe de serem eficazes e humanitárias. “O sistema, que já era sucateado, ficou mais ainda. Eles criaram os CTAs mais por uma questão de tirar o cara da rua do que de tratá-lo dignamente. A gente depende de centros de doações como este aqui [Paróquia São Miguel Arcanjo] para termos condições básicas de higiene e alimentação”, desabafa Elias da Silva. A paróquia que Silva comenta fica entre o Arsenal e o Mooca I e recolhe doações de comida, roupa e itens de higiene pessoal, depois destinadas diretamente aos moradores de rua, que vão em busca de bolo, leite, chocolate, sapato, camiseta, meia, escova, pasta de dentes e sabonete. A lista não acaba.

A sensação que fica ao final é que há uma forte semelhança entre o sistema carcerário brasileiro e a logística estrutural dos albergues em São Paulo. Essa comparação pode ser feita por causa do regime disciplinar que os moradores de rua enfrentam quando precisam se utilizar dessas casas de acolhimento. Do mesmo modo, o projeto arquitetônico desses locais remete à disciplina impessoal dos quartéis militares, em que cada indivíduo deve cuidar do seu próprio nariz. Um cenário distante da utopia descrita pela Prefeitura em seus sites e comunicados oficiais.