Pesquisas apontam que, em 2020, houve aumento no uso e abuso de substâncias. Ao mesmo tempo, membros de grupos de apoio subsistem em luta pela sobriedade.
“Concedei-nos, Senhor,” clamam as paredes, “a Serenidade necessária para aceitar as coisas que não podemos modificar, Coragem para modificar aquelas que podemos, e Sabedoria para distinguir umas das outras.”
Esse mantra, conhecido como a “Oração da Serenidade”, habita, ao redor do Brasil, as inúmeras salas de reunião da comunidade dos Alcoólicos Anônimos (A.A.). Salas cujas paredes, juntamente com a dos Narcóticos Anônimos (N.A.) no contexto pandêmico, viraram telas; mas cujos membros, em recuperação da dependência química, continuam seguindo em suas buscas pela sobriedade.
A dependência química na pandemia
“A pandemia da covid-19 atingiu grandes proporções, criando um cenário totalmente novo na vida cotidiana, com grandes repercussões nos padrões de relacionamento interpessoal”, diz Natalia Haddad, médica psiquiatra do Núcleo de Álcool e Drogas do Hospital Sírio Libanês. Abrangendo não só o medo do vírus invisível, mas também o distanciamento social, a quarentena configurou uma conjuntura estressante para a população, especialmente a aqueles que já apresentavam vulnerabilidades em relação à condição psíquica. De acordo com a profissional, mecanismos para amenizar o sofrimento, portanto, passaram a ser buscados ou criados – e, “historicamente, o uso de álcool e drogas vira uma opção”.
“Pesquisas apontam que houve um aumento substancial no uso e abuso de substâncias durante a pandemia da covid-19”, continua. Dados levantados pelo Global Drug Survey no Brasil durante a pandemia ilustram justamente essa alta: o uso de maconha cresceu em 17%; o do álcool e da cocaína, em 13% e 7%, respectivamente. O aumento no uso em si não significa, necessariamente, que o indivíduo é dependente químico. Porém, a tolerância, o desejo intenso de consumo, a dificuldade em controlar o uso, uso persistente apesar de consequências danosas e a abstinência podem ser alguns sinais de dependência.
O maior consumo foi associado, ainda, à tendência de desconsiderar o isolamento social. “A quarentena não influenciou para mim”, relata Leandro*, de 39 anos, que, como muitos outros brasileiros, continuou trabalhando e vivendo normalmente, a despeito do coronavírus.
Recuperação da dependência química: entre recaídas e promessas
Leandro passou os momentos iniciais da pandemia – de maio a junho de 2020 – em uma instituição para a sua recuperação. Após sua saída, voltou a trabalhar e conseguiu se manter longe do consumo, apesar da quarentena: “Nunca me afetou em nada”, revela, “porque muitas coisas continuaram funcionando. Eu ia para o trabalho todos os dias. O ano de 2020 acabou passando por mim tranquilo.”
Contudo, em 2021, após onze meses limpo e ainda durante a pandemia, recaiu. Ao começar a trabalhar em um aplicativo de transporte além de seu emprego em vigilância, pegou corridas e passageiros dentro de comunidades, algo que o “baqueou”. “Comecei a entrar em locais que eu já estive usando drogas enquanto passava de carro”, conta. “Aquilo começou a me fazer achar que eu poderia tomar uma dose, mesmo sabendo que eu não deveria.”
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Leandro foi introduzido ao uso de álcool com doze anos, e o de cocaína, com catorze. “Eu tive a primeira experiência bebendo no copo de cerveja da minha mãe”, lembra. Em um churrasco com seu primo lhe ofereceram cocaína pela primeira vez – e, a partir de então, começou a usar as substâncias esporadicamente. “Meu vício mesmo era cocaína e álcool sempre junto, sempre junto”, relata.
Com seis anos de uso, ele perdeu o controle pela primeira vez: “Estava gastando tudo, só chegava no outro dia em casa. Não tive como esconder isso da minha mãe”. Esse momento, no qual sua mãe “soube de tudo”, marcou o início da busca de Leandro por ajuda. Saiu da capital e se mudou para a casa do seu pai no mesmo ano, mas a mudança foi apenas geográfica. Seu pai, diante de um vício que se intensificava cada vez mais, falou que iria levá-lo em um lugar. Não disse onde.
Levou-o para uma reunião dos Narcóticos Anônimos. “Era uma sala de N.A., mas eu nem sabia o que era”, Leandro relembra. “Eu fiquei foi vibrando, porque tinham umas meninas bonitas e eu fiquei pensando, ‘caraca, elas usam droga, vou chamar elas para saírem, usarem comigo.’ Eu não entendia o que estava acontecendo ali”. Anos depois, sua mãe também o levaria ao N.A., porém, assim como o pai, não teria frutos: “Ainda não tinha em mim o desejo de parar e escutar. Inclusive, eu usei droga dentro de um banheiro de N.A. Eu não queria a recuperação.”
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“Parar de usar eu paro. Eu preciso tratar o que está por trás”
“O processo de reabilitação se dá em várias etapas”, retoma a Dra. Natalia Haddad. Diversos mecanismos de apoio auxiliam na fase de interrupção do uso de substâncias, especialmente após o período de desintoxicação. Um tratamento focado na dependência química, que é uma condição crônica de saúde, também é abordado. Mas a primeira etapa para a reabilitação ainda é, segundo a psiquiatra, a “aceitação do indivíduo de que ele tem uma doença e necessita de ajuda.”
Leandro recorda a última vez de uso, em abril: “Fui trabalhar em uma segunda-feira e fiz duas, três corridas, e não consegui mais. Fui para o uso. Logo no dia seguinte, o meu carro deu problema – e isso me ajudou, sabe por quê? Achei que fosse fácil de resolver, mas o carro ficou um mês parado. Acabei não rodando no aplicativo de transporte. Vinha para o trabalho e comecei a ir às reuniões do N.A.”. Tomou a parada do veículo como um sinal.
O Narcóticos Anônimos, para ele, é importante porque não o ensina apenas a “parar” de usar substâncias. “Parar de usar droga eu paro,” diz, “mas eu preciso tratar o que está por trás disso”. Acima de tudo, o compartilhamento de experiências e o entendimento dos sentimentos por trás do uso são importantes, de acordo com ele. “Eu tenho um amigo do N.A. que antes ele falava comigo: cara, você precisa ir na reunião, mas eu não aceitava que eu precisava ir. Hoje, nós estamos indo juntos”, conta.
39 anos, 499 e 35 dias lutando contra a dependência química
“O N.A. me ajudou demais”, complementa Mariana*, também de 39 anos. Ela começou a usar cocaína aos 17 anos de maneira recreativa; contudo, com o passar do tempo, relata que foi se tornando dependente da substância sem perceber, “até que eu cheguei no fundo do poço, onde ela [que] me usava.”
Em 2019, assumiu a sua dependência química e pediu ajuda. “Quando exatamente eu não sei. Mas busquei ajuda para salvar a minha vida”, conta, ao mesmo tempo que relembra a data específica de sua última recaída: dia 1° de janeiro de 2020.
O isolamento social, para Mariana, está ajudando muito em sua recuperação. “Estou lidando bem”, atesta. “ Ao contrário do que tenho visto por aí, pessoas recaindo por conta dessa fase, e eu estou amando poder ficar em casa, pois sou funcionária pública e tenho esse privilégio. Prefiro estar aqui, onde me sinto segura”. Entretanto, revela que não frequenta mais o N.A. na pandemia por não ter se adaptado às reuniões online.
A adequação do Narcóticos e Alcoólicos Anônimos ao virtual se consolidou especialmente nesses encontros, realizados pela plataforma Zoom várias vezes ao dia, somados a grupos em redes sociais. No Facebook, algumas dessas comunidades somam mais de dez mil membros, que compartilham entre si dicas e palavras de apoio. Esse suporte, segundo a Dra. Haddad, é essencial – ainda que este esteja estabelecido à distância e além do meio físico por conta da pandemia.
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A vida em sobriedade está sendo um desafio, admite Mariana – mas é compensador. “Quando lembro da minha vida antes, me fortaleço para seguir nessa vida de hoje”, declara. No dia da entrevista, comemora estar limpa há 499 dias. Leandro, há um mês e quatro dias.
O lema, cumprimento e incentivo entre membros da comunidade dos Alcoólicos Anônimos e Narcóticos Anônimos é SPJ: “Só Por Hoje”. E, quando os dias se misturam, sejam tingidos pela sombra do vício ou pelas semelhanças das semanas de isolamento social vividas a fio, cultiva-se a serenidade para existir, minuto por minuto, no hoje, por hoje. “Passou um dia”, conta Leandro, “passou dois, passou três, passou quatro e eu fui conseguindo.”