Dia de Monteiro Lobato: é possível separar autor e obra? - Revista Esquinas

Dia de Monteiro Lobato: é possível separar autor e obra?

Por André Preturlan Cesar Ribeiro, Lara Vital, Nathalia Fruchi Fuinhas e Rafaela Franco : abril 19, 2023

Monteiro Lobato em meados de 1920. Reprodução: Wikimedia Commons

O Dia Nacional do Livro Infantil, comemorado em 18 de abril, homenageia o já falecido escritor brasileiro Monteiro Lobato

A relação entre fãs e artistas vem sofrendo mudanças ao longo dos últimos anos, o mesmo também pode acontecer com figuras históricas. As pessoas moldam seus interesses de acordo com um alinhamento de personalidade, isto é, o fenômeno atual conhecido como “Cultura do Cancelamento”, de não apenas deixar de consumir, mas também boicotar ou ignorar quem cometeu equívocos. É o caso de Monteiro Lobato e sua literatura.

Apesar de sua contribuição para a cultura nacional, o autor da célebre série de livros “Sítio do Picapau Amarelo”, falecido em 1948, atualmente se encontra a beira do “cancelamento”. O escritor virou pauta de julgamento em 2010, ocasião em que o Conselho Nacional de Educação requisitou que seus livros não fossem mais distribuídos em escolas públicas. Em 2011, o caso chegou ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ). O Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (IARA) enviou um pedido de processo ao Supremo Tribunal Federal (STF) para que retirassem o livro “Caçadas de Pedrinho”, publicado em 1939, da lista de leitura obrigatória de escolas públicas, por estar repleto de “elementos racistas” – exemplificados nos trechos “É guerra e das boas. Não vai escapar ninguém – nem Tia Anastácia, que tem carne preta” e “Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou, que nem uma macaca de carvão.” 

A partir desse caso, muitos debates surgiram. Alguns leitores se revoltaram contra a “censura” e a tal “ditadura do politicamente correto”, e declararam que era um retrocesso da sociedade brasileira. Em contraponto, o assunto também gerou discussões nas redes sociais, especialmente da parte de jovens engajados com o ativismo antirracista.

 

monteiro lobato

Ilustração original do livro “Sítio do Picapau Amarelo”, produzida por Manoel Victor Filho.
Reprodução: Livro "Sítio do Picapau Amarelo"

Divergência a respeito da obra

O professor e editor de Cultura da Revista Cult, Welington Andrade, de 58 anos, afirma não achar que a obra de Monteiro Lobato possa estimular o preconceito. “Não há, a rigor, nenhuma obra literária, artística, cultural, teatral, dramatúrgica que tenha essa capacidade. Se são artísticas de fato, elas são elaborações sobre o real e não propriamente o próprio real. A realidade em si é imediatamente violenta, a obra não. A obra é uma elaboração, é uma estetização. É uma racionalização e uma sentimentalização, que andam ali de mãos dadas.” Em contraponto, o historiador Alan Nicolaev, 35 anos, alerta, “reproduzir falas racistas em materiais didáticos legitima a exclusão histórica” e reforça a importância da reflexão por parte do educador na tentativa de desconstruir uma narrativa preconceituosa.

Entretanto, não se pode esquecer da “qualidade em retratar a vida rural na obra de Lobato”, explica o professor Andrade, destacando que o legado do escritor criou um vínculo sentimental com o folclore brasileiro, principalmente em sua obra mais famosa “Sítio do Picapau Amarelo”, que se estende também à literatura clássica e universal. “É a mitologia grega, o Dom Quixote, Alice, que o próprio Monteiro traduziu também. Ele ajuda a cunhar uma espécie de infância brasileira que é uma infância genuína do interior e pitoresca. O Sítio do Picapau Amarelo nos revela a visão de uma estrutura familiar interiorana com raízes no patriarcalismo e, por conseguinte, na escravidão. Ela é um discurso representado nas ações de personagens em peripécias do mundo infanto-juvenil”.

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Ilustração original do livro Sítio do Picapau Amarelo, produzida por Manoel Victor Filho.
Reprodução: Livro "Sítio do Picapau Amarelo"

Andrade ainda analisa a questão de Tia Nastácia: “Ela aparece na obra como figura secundária que, enquanto ocorrem as tramas, está cozinhando, varrendo a casa, ou seja, está trabalhando numa realidade quase que ‘paralela’ ao universo fantástico e folclórico da obra.”

Para o produtor musical Caio Justino, de 18 anos, o fato da obra de Lobato retratar pessoas pretas em lugares secundárias causa indignação. O produtor relembrou também as críticas feitas ao filme A Pequena Sereia (lançamento previsto para 25 de maio de 2023), sobre a protagonista ser interpretada por uma atriz preta, diferente do desenho clássico, “um branco ver um preto no mesmo lugar que ele pra ele é uma ofensa, é algo ruim, diferente, o racismo faz nós negros pensarmos que não podemos nada, que temos que estar eternamente abaixo deles, nunca estar nos grandes cargos, sermos donos de empresas, imóveis, carros, bens…” Raciocínio que é complementado por Nicolaev: “A proposta da Disney é muito bem-vinda para enriquecer essa desconstrução. O incômodo é importante, pois é o diagnóstico que estamos no caminho certo para buscar a conscientização de uma cultura inclusiva.”

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Desconstrução antirracista

Uma das determinações feitas pelo STF é de que o professor ou a escola deve desconstruir as falas racistas durante o processo educacional. Dito isso, Welignton cita algumas alternativas para seguir com a leitura de livros polêmicos: “A grande contribuição seria problematizar a rigor, as ocorrências que são muito pontuais. Tem que ser contextualizado. Acho que ganha mais o leitor que pegar uma obra bem editada. Um livro em que apareçam considerações, um comentário, uma nota de rodapé, um prefácio belíssimo, em que se discuta isso. Em vez de simplesmente cancelar a obra”.

O historiador Alan ressalta que a literatura deve ser vista como um documento literário, produzido por um contexto histórico em circunstâncias específicas, sempre levando em conta as influências das ideias da época, como o elitismo e a eugenia, e dissecá-las ou desconstrui-las. A literatura não é um documento da simultaneidade, não é instantâneo, como completa Welington, “as pautas que nos antecederam, elas têm que ser contextualizadas. Digamos que não são colocadas nessa grande diacronia, a literatura não é sincronia, mas ela é um documento que é diacrónico, atravessa o tempo.”

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Monteiro Lobato em meados de 1940.
Créditos: Wikimedia Commons.

O produtor musical Caio Justino, comentou sobre um caso polêmico envolvendo principalmente o rapper Baco Exu do Blues, que em seus álbuns Esú (2017) e Bluesman (2018) sintetiza fortemente um ativismo antirracista. “O exemplo como Xamã e Baco que fizeram músicas e andam juntos com a Luísa Sonza, que teve um caso de racismo em 2018, que exemplo fica para os fãs verem um de seus ídolos andando com pessoas acusadas de racismo?” Entretanto, descartar obras que são documentos históricos, pode ser visto como uma grande perda para interpretações artísticas de determinadas épocas, podendo ainda ser estudada e expandida pelo movimento, neste caso, antirracista.

Editado por Mariana Ribeiro

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