Evoé, Zé Celso: o último ato do mestre das artes cênicas - Revista Esquinas

Evoé, Zé Celso: o último ato do mestre das artes cênicas

Por Mariana Ribeiro : julho 12, 2023

"Atuar, atuar para poder voar", trecho do espetáculo "Os Sertões". Foto: Mídia Ninja/Flickr.

Morreu na manhã da última quinta-feira (6) o ator, diretor e dramaturgo José Celso Martinez Corrêa, maior nome do teatro brasileiro, aos 86 anos

Considerado o maior nome da dramaturgia brasileira, Zé Celso morreu em decorrência de um incêndio ocorrido no apartamento em que vivia com seu marido, Marcelo Drummond, na última terça-feira (4). O diretor não resistiu às queimaduras, que tomaram mais de 50% de seu corpo.

De acordo com o laudo do Instituto de Criminalística, o incêndio pode ter sido provocado pelo contato entre um aquecedor, que ficava no quarto de Zé, e materiais de fácil combustão, como um tecido. Além do artista, estavam no apartamento, localizado no Paraíso, região central de São Paulo, os atores Marcelo Drummond, viúvo de Zé Celso, Victor Rosa e Ricardo Bittencourt. O cachorrinho do casal, Nagô, também estava no imóvel e foi socorrido, sem ferimentos, pela equipe de bombeiros. 

O dramaturgo, que sofreu queimaduras nos membros superiores, inferiores e no rosto, ficou internado na UTI do Hospital das Clínicas. Zé foi sedado, entubado e posteriormente submetido à hemodiálise, mas infelizmente não resistiu aos ferimentos. 

O corpo do mestre das artes cênicas foi velado em seu lugar preferido, a sede do Teatro Oficina, no Bixiga, centro da capital paulistana. Com as portas abertas para a multidão de admiradores e familiares, o rito de transmutação, despedida de Zé Celso, se alongou por toda a madrugada e foi marcado por homenagens ao dramaturgo. O último adeus do artista ocorreu da forma como ele merecia: cercado de amor e arte. 

“O mundo é mágico. As pessoas não morrem, ficam encantadas”, Guimarães Rosa.

Quem foi (e é) José Celso Martinez Corrêa?

“Eu sou o teatro brasileiro”, samba enredo da Unidos de Vila Isabel (1975). 

No dia 30 março de 1937 em Araraquara, município localizado no interior de São Paulo, nascia José Celso Martinez Corrêa, maior nome da dramaturgia brasileira (e quiçá mundial). Criado em uma família grande e filho de um amante das artes, Zé Celso, como gostava de ser chamado, veio para a capital, São Paulo, cursar Direito. 

Já na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em 1958, o jovem, que participava ativamente das reuniões do Centro Acadêmico XI de Agosto, entidade estudantil que representa os alunos dentro da instituição, teve a ideia de criar um grupo de teatro. Assim surgiu o Teatro Amador Oficina, fundado por José Celso Martinez Corrêa e mais dois amigos, que também frequentavam o Centro Acadêmico, o carioca Renato Borghi e o mineiro Amir Haddad.

Zé então, finalmente, largou a pieguice do terno e da gravata e decidiu seguir sua vocação, as artes cênicas.  

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Zé Celso durante a década de 70.
Foto: Amacio Chiodi

Os primeiros textos do dramaturgo encenados pela companhia, Vento Forte para Papagaio Subir (1958) e A Incubadeira (1959), ambos autobiográficos, foram dirigidos por Amir Haddad e buscavam, assim como o Oficina, criar um movimento como resposta às influências europeias do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e o nacionalismo do Teatro de Arena.

Já em 1963, com a profissionalização do grupo, Zé experimentou o seu primeiro grande sucesso, com a montagem da peça “Pequenos Burgueses”, do dramaturgo russo Máximo Gorki (1868-1936). O texto, que remete à uma Rússia pré-revolucionária, dialoga com o clima do Brasil às vésperas do golpe militar.

A partir da visão de alguns críticos, a montagem de Zé Celso é a mais perfeita encenação encenação stanislavskiana, que consiste em um “conjunto de técnicas e elementos para leitura do texto dramático e construção de personagens, baseado na improvisação, espontaneidade e autenticidade, tirando a interpretação de um lugar de mimetismos e reprodução de clichês”, do teatro nacional.

Em 1964, primeiro ano da ditadura militar no Brasil, o Oficina passou a traduzir suas montagens através de uma perspectiva política. No mesmo ano, o grupo encenou a peça “Andorra”, do escritor suíço Max Frisch (1911-1991), que aborda o tema do antissemitismo no pós Segunda Guerra Mundial. Metaforicamente, Zé e seus atores firmaram posição contra a violência e perseguição do regime ditatorial brasileiro.

A peça marcou a transição dos trabalhos de Zé Celso e do Oficina, que sairam do realismo do dramaturgo russo Stanislavski (1863-1938) e partiram para o teatro épico do dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956).

Em 29 de setembro de 1967, Zé mergulhou no universo antropofágico do escritor brasileiro Oswald de Andrade, com a antológica montagem do espetáculo “O Rei da Vela”. O texto, que alegoricamente representa uma crítica ao capitalismo, serviu como uma resposta aos militares, que, com frieza e violência, endureciam cada vez mais o regime.

A montagem traduziu o período da Tropicália e da Antropofagia para os palcos e estabeleceu o nome de Zé Celso como figura principal do movimento teatral.

No ano seguinte, 1968, o dramaturgo, cada vez mais transgressor, decidiu ir além, através do espetáculo “Roda Viva”, do jovem compositor Chico Buarque. A peça gira em torno de um cantor que, manipulado pela indústria fonográfica e pela imprensa, cai em desgraça. 

O texto de “Roda Viva” não usava de metáforas, como os anteriores, assumindo um tom direto e por vezes agressivo. Durante os espetáculos, o diretor tornava o público parte da encenação, marca registrada de Zé Celso, de forma polêmica e deveras assustadora para quem estava nas poltronas. Um fígado de boi cru era estraçalhado em cena e provocações religiosas escandalizavam o tradicional.

Após alguns atentados, como a ocasião em que homens encapuzados e armados com cassetetes invadiram o Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, e agrediram os atores, Zé Celso foi obrigado a recuar momentaneamente. Durante o período o Oficina produziu os espetáculos Galileu Galilei e Na Selva das Cidades, ambos de Bertold Brecht.

Em 1974, depois de ser preso e torturado, José Celso Martinez Corrêa se exilou em Portugal e em Moçambique, voltando ao Brasil apenas em 1978. Em terras lusitanas, o dramaturgo dirigiu o documentário “O Parto”, que contava a história da Revolução dos Cravos.

Em 1991, Zé retornou à cena de forma brilhante, com a montagem do espetáculo “As Boas”, de Jean Genet (1910-1986), em que atuou ao lado de Raul Cortez e Marcelo Drummond, seu companheiro.

Já em 1996, o Oficina encenou um de seus maiores clássicos, “As Bacantes”, adaptação da obra do poeta trágico grego Eurípedes. Durante uma das sessões do espetáculo, o cantor Caetano Veloso, que estava na plateia, foi despido em cena pelos artistas. 

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Zé Celso durante a montagem de “As Bacantes”, em 2009.
Foto: Teatro Oficina/Flickr

Durante a década de 2000, Zé realizou um de seus mais ambiciosos projetos, a produção para os palcos do épico romance “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. A obra, que foi dividida em três espetáculos, denominados “A Terra”, “O Homem” e “A Luta”, trouxe à tona discussões relacionadas à força predatória e destrutiva do capitalismo. 

Em “Os Sertões”, Zé Celso interpretou o líder religioso Antônio Conselheiro, acompanhado por mais de quarenta atores.

Nos últimos anos, o Teatro Oficina produziu diversas peças, como “Fausto” e “Esperando Godot”, ambas dirigidas por Zé Celso em 2022. A primeira acompanha um médico que, empenhado em obter uma sabedoria cada vez maior, faz um pacto com o diabo. Já a segunda, que contou com a atuação de Alexandre Borges e Marcelo Drummond, explora a história de dois palhaços vagabundos que se encontram no fim do mundo.

Atualmente, as peças em cartaz são “Mutação de Apoteose”, a primeira do Oficina dirigida por uma mulher, e “Go Back Torq4to”, show performático criado a partir das canções e textos do poeta tropicalista Torquato Neto.  

Zé Celso era, e ainda é, o teatro brasileiro. Revolucionário, transgressor e único, o mestre do Teatro foi responsável por transformar a arte de todo um país.

O Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona

“O Teatro Oficina é mutação, ele é vivo.”

Localizada no número 520 da rua Jaceguai, no bairro do Bixiga, região central de São Paulo,  a sede do Teatro Oficina é tombada pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. A companhia de Zé Celso, ao decidir se profissionalizar em 1961, alugou o espaço, que antes pertencera ao grupo artístico “Teatro Novos Comediantes”.

Em uma manhã de 1966, a sede, projetada pelo arquiteto Joaquim Guedes, foi vítima de um incêndio criminoso, atribuído aos militares, que perseguiam o grupo na época. Após o acontecido, nada sobrou do edifício. Assim, a dupla de  arquitetos Flávio Império e Rodrigo Lefèvre projetou um novo e moderno Teatro Oficina, no mesmo local. O espaço, que agora contava com um palco italiano, ganhou também paredes com tijolos e concreto à mostra.

O Teatro Oficina, que é um organismo vivo e clama por transformações, passou por mais uma grande reforma, desta vez projetada pela conceituada arquiteta Lina Bo Bardi. A modernista, que também foi responsável por construções como o MASP e o Sesc Pompeia, iniciou o projeto de um novo Oficina em 1986. 

A inauguração do novo edifício do Teatro, que passou a se chamar Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona e se mantém assim até hoje, se deu em primeiro de outubro de 1993, com a encenação do espetáculo Hamlet. O espaço, inovador como Zé, propunha aproximar ainda mais, e de maneira disruptiva, a relação entre os atores, a plateia e o espaço. 

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Interior do Teatro Oficina.
Foto: Wikimedia Commons

A arquiteta, que, com a saúde debilitada, visitou sua obra apenas uma vez, projetou não um palco, e sim um corredor cênico para o Oficina, ladeado por andaimes. O público, que agora sentava frente a frente, passou a acompanhar os espetáculos sob novas perspectivas. Bo Bardi preservou no interior do edifício elementos das antigas construções que antes ocupavam aquele espaço. 

Uma imensa parede de vidro cobre um dos lados do Oficina, para que assim, o teatro seja visto da rua e de dentro dele, seja vista a cidade que o contém, dialogando arquitetonicamente com a obra “A Selva da Cidade”, tão amada por Zé.

Arte versus Capital

“Vai fazer 40 anos dessa luta sensacional pelo terreno do Oficina, onde eu aprendi o que é o capitalismo”, Zé Celso em entrevista ao portal Jacobin. 

Desde a década de 80, o Oficina e Silvio Santos, empresário e apresentador, travam uma batalha judicial pelo terreno ao lado da sede da companhia de teatro.

O espaço, que atualmente abriga um estacionamento, pertence ao Grupo Silvio Santos e o apresentador planejava construir no local três prédios de mais de cem metros de altura. Segundo Zé Celso, a construção dos apartamentos prejudicaria as atividades culturais de seu teatro e desconfigurariam o projeto arquitetônico de Lina Bo Bardi, que é tombado. 

Paralelamente à disputa, tramitou na Câmara dos Vereadores uma proposta para a criação do Parque do Bixiga. O terreno seria negociado com o apresentador Silvio Santos a partir de uma permuta. O projeto, que chegou a ser aprovado em duas votações, foi vetado em 2020, pelo prefeito em exercício Eduardo Tuma. 

“Antes de ser país, éramos árvore!”, trecho do espetáculo “Mutação de Apoteose”. 

A construção de um parque ao lado do Oficina era o sonho de Zé e agora, após sua morte, a luta por parte de seus amigos e admiradores não irá terminar. O Parque do Bixiga honrará a vida e o legado do dramaturgo, que tantas alegrias proporcionou aos paulistanos e aos brasileiros. 

“Não criem mais nenhum obstáculo para que possa haver, no entorno do Teatro Oficina, uma formidável e linda área verde. Zé Celso, lá do céu, vai estar passeando no parque”, disse o deputado Suplicy durante o velório de seu amigo, Zé Celso. “Eu peço, com todo carinho e respeito ao Silvio Santos, que abrace essa causa”.

O amor de Zé

“União amorosa, criativa e orgiástica”, frase contida no convite de casamento de Zé e Marcelo. 

Além do amor pelo Teatro, Zé nutria mais uma paixão, pelo seu companheiro de vida Marcelo Drummond. O casal, que estava junto desde 1986, formalizou a união em 6 de junho de 2023, um mês antes do falecimento do dramaturgo. 

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Zé Celso e Marcelo Drummond durante a cerimômia de união do casal.
Foto: Divulgação

A cerimônia, descrita por Zé e Marcelo como um “rito artístico-ecumênico”, ocorreu no lugar preferido dos dois artistas, O Teatro Oficina. 

A festa, que foi uma verdadeira celebração da arte e do amor, contou também com apresentações artísticas das cantoras Daniela Mercury, Marina Lima e Mariana de Moraes, além da presença de amigos e admiradores do casal e do teatro.

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Zé, Exu Senhor das Artes Cênicas

“Tudo é tempo e contratempo! E o tempo é eterno. Eu sou uma forma vitoriosa do tempo”, Oswald de Andrade.

José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso, partiu para a ethernidade, mas seu legado pairará para sempre sobre o Teatro, não só sobre o seu amado Oficina, e sim em todo espaço em que se faça arte, em todo artista apaixonado e em todo os admirador das artes cênicas. 

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Iá, Zé! Viva o Teatro!
Foto: Garapa/Coletivo Multimídia

Evoé, Zé Celso!      

Editado por Redação

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