Exposição do Museu de Arte de São Paulo atrai grande público e provoca debate entre especialistas sobre o lugar de Monet na ecologia moderna
A comuna francesa de Giverny está a mais de 9 mil km de distância de São Paulo. O ar bucólico desta primeira, famosa pelos lagos e jardins repletos de ninféias, rosas, tulipas e margaridas, não poderia ser mais distinto do panorama da via símbolo da segunda, a Avenida Paulista, que é bruta, enquanto palco de contradições sociais que são ignoradas, mas também na arquitetura. O asfalto, o concreto e, sobretudo, a natureza confinada em parques são imperativos visuais de que este é um espaço onde a humanidade triunfou sobre o ambiente natural.
Apesar de toda essa dicotomia, o que atrai multidões à dita avenida, desde o dia 16 de maio, são justamente paisagens campestres traduzidas pelas pinceladas do mestre impressionista Claude Monet (1840-1926) que compõe a exposição A Ecologia de Monet apresentada pelo Museu de Arte de São Paulo (MASP).
Desde 2016, a programação anual do museu explora histórias que orbitam um eixo temático – algumas das protagonistas foram as histórias da infância (2016), das mulheres (2019) e brasileiras (2022) – até que chegamos a 2025 tendo como ponto focal as Histórias da Ecologia. A exposição mais midiática deste ano é justamente a de Monet, um sucesso inquestionável de público, foram 14.300 visitantes somente no final de semana de estreia, e uma rica fonte de debates entre críticos e estudiosos.
O MASP recebeu 30 obras de 19 instituições estrangeiras que acompanham as duas obras do artista que integram o acervo permanente do museu paulista. O conjunto forma uma narrativa em cinco atos que apresenta a relação do pintor francês com a natureza conectada ao debate ambientalista contemporâneo.
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Os dois primeiros núcleos da exposição, “Os barcos de Monet” e “O Sena como ecossistema” são dedicados à forma que o artista retratava paisagens fluviais. Um dos temas centrais de suas obras, dado como estavam sempre presentes nas cidades em que Monet viveu.
A ala seguinte da exposição apresenta uma das fases mais célebres do impressionista. “Giverny, natureza domesticada” evidencia a afeição do pintor com a jardinagem, sua residência transformou-se no cenário ideal para suas experimentações artísticas. Como comenta a doutora em história da arte e da cultura, Vanessa Bortulucce, “A casa de Monet em Giverny é um laboratório a céu aberto onde ele pôde fazer seu estudo de observação da natureza. Lá, havia um potencial enorme de captar diferentes modos da luz, da cor e das formas”. Hoje, sede da Fundação Claude Monet, a casa e os jardins do pintor recebem cerca de 500 mil visitantes todos os anos.
Os corredores da mostra criam um efeito virtuoso com suas formas orgânicas que remetem aos campos e às curvas dos rios que são retratados nas obras. Ao seguir por estes meandros, os dois últimos núcleos: “O pintor como caçador” e “Neblina e Fumaça”, investem no cerne do argumento dos curadores. São nessas que os efeitos da modernização tornam-se mais evidentes sobre as paisagens naturais.
No primeiro, é apresentado o momento no qual o pintor retrata paisagens de múltiplas regiões da França e de países próximos. Ainda que a temática similar não aponte de forma imediata, essas pinturas já carregam uma novidade, a consolidação do turismo moderno. Assim, no final do século XIX, Monet pôde viajar de maneira extensa em uma caça do ineditismo de paisagens mais restritas.
A ala final é a mais evidente em seu argumento, desde o nome derivado do fenômeno atmosférico smog (Contração das palavras inglesas smoke, fumaça, e fog, neblina), até a aparição explícita das chaminés de fábricas que tomam a paisagem do rio Tâmisa em Londres. O historiador, filósofo e curador Fabrício Reiner valoriza esse aspecto do pensamento do pintor: “A maior preocupação dele estava nesse efeito visual. A luz era refletida e refratada pela mistura da fumaça com as gotículas de água de uma maneira única e nova”. Em seus retratos da ponte de Waterloo, Monet demonstra o protagonismo que a fumaça ganhou ao tornar os cenários naturais cada vez mais difusos.
A ideia de uma feia fumaça que apaga as belezas que tanto interessavam ao pintor é notória, porém essa metáfora é justamente um dos principais pontos de quem critica a exibição. O argumento é de que estas ideias não passavam pela mente do pintor, que tampouco se posicionou contra a modernização.
Os curadores Adriano Pedrosa e Fernando Oliva, com assistência de Isabela Loures, não ignoravam que esses julgamentos pudessem aparecer. A divulgação da mostra já incluía o alerta de Oliva: “a relação de Monet com a ecologia da época era outra, muito diferente das dimensões atuais do termo, tanto no campo das ciências do clima como no da história da arte. Ainda assim, é possível traçar leituras contemporâneas sobre o seu trabalho, especialmente se considerarmos a força e o impacto que sua obra segue exercendo na sociedade”.
Quanto à escolha dos curadores, Bortulucce enxerga a escolha do impressionista como “uma das escolhas possíveis, uma vez que o impressionismo, majoritariamente, tem como tema a natureza”. Ainda reforça como questões mercadológicas podem impactar em tais decisões. “Monet está muito presente no imaginário do grande público, o que certamente atrai muita gente para qualquer museu. Sem dúvida há também um lado publicitário.”
Reiner prega cautela e lembra também do delicado tópico que representa o anacronismo para os historiadores. “Tratar a ecologia de Monet é algo que deve ser feito de maneira cuidadosa, porque é, evidentemente, um anacronismo. Nós pegamos uma questão que é tão importante para nós hoje e tentamos encaixá-la em alguém lá de trás na história, que não tinha essa preocupação. Isso exige cuidado.” Apesar do receio na fala, ele reforça que “de maneira alguma crítica a escolha de Monet em si”, somente teme que se crie uma visão única onde a importância contemporânea do artista esteja ligada apenas aos temas ambientais.
A relação do pintor com o contexto histórico em que viveu também é tema de ponderação para os pesquisadores. Reiner recorda de movimentos artísticos anteriores e contemporâneos ao impressionismo, “Uma preocupação que já havia na época, antes da ecológica, era com as condições dos operários. O realismo trabalhou isso. Mas é natural que diferentes movimentos tivessem preocupações diferentes”.
Bortulucce complementa a leitura da intencionalidade do movimento, “O interesse dos pintores do impressionismo estava no cromatismo atmosférico, nos efeitos que a luz causa na nossa percepção da imagem. Então a fumaça de um trem chegando na estação, por exemplo, era muito útil para os interesses que eles tinham” e relembra ainda a importância de compreender o espírito da época. “Monet estava inserido em um contexto de industrialização avassaladora na França, no qual havia, por parte da sociedade, uma euforia, uma celebração e até um otimismo com essas primeiras experiências modernas”, comenta a historiadora.
Tais discussões e questionamentos, não desabonam a exposição apresentada pelo MASP. Na opinião dos especialistas, há o contrário, a valorização da mostra em decorrência do debate. “Estarmos discutindo essas questões todas já mostra que a exposição cumpriu, de certa forma, seu papel. É muito positivo mesmo que a arte esteja mobilizando muita gente a ir ao museu e ainda trazendo um debate para a sociedade que vai além das questões estéticas. Isso é excelente para a cultura brasileira”, revela Reiner com entusiasmo.
“Toda obra de arte tem um contributo que muda com o tempo. É inevitável que o olhar do curador seja o olhar atual, e desde que provoque questionamentos e reflexões, é muito produtivo. A leitura do aspecto da natureza é uma leitura possível dentro daquelas obras”, sintetiza Bortulucce, que demonstra ainda seus próprios questionamentos diante das telas. “Onde está, hoje, essa natureza que tanto admiramos nas pinturas? Será que essas paisagens ainda existem? O que fizemos com elas? Nós vamos mesmo nos contentar em ter essa natureza somente nos quadros?”
Monet teria dito a seguinte frase no fim de sua vida, “O que há para dizer sobre mim? O que pode haver para dizer, eu lhe pergunto, de um homem que não está interessado em nada no mundo além de sua pintura – e também de seu jardim e suas flores?” Próximo ao centenário de sua morte – o pintor faleceu em 1926 -, o jardim e as flores das quais o artista falava tão despretensiosamente provam seu engano. Ainda há muito para dizer sobre Claude Monet.