Restaurantes nas comunidades de São Paulo contam com o Guia para se manter visíveis aos olhos do público
“Não existe comida boa na quebrada?” Foi a pergunta que, em 2012, motivou o nascimento do Prato Firmeza, projeto que criou um “guia gastronômico das quebradas de SP”. Durante um debate, Matheus Oliveira, que frequentava oficinas de jornalismo e gastronomia na ONG Casa Zezinho do Capão Redondo, lamentava não poder ser crítico gastronômico por não conseguir pagar os restaurantes do centro, abrindo a discussão sobre a comida na periferia.
A ideia veio de duas voluntárias da ONG e sócias da Escola de Jornalismo da Énois, Amanda Rahra e Nina Weingrill. O projeto iniciou com um orçamento semanal de R$100 para Matheus procurar bons restaurantes na região com preços de até R$20. A sigla PF, conhecida pelos brasileiros como “Prato Feito”, inspirou o garoto a criar o nome Prato Firmeza.
Já são mais de 150 restaurantes mapeados nos quase 10 anos de projeto, divididos em quatro edições. O Guia visa, além de mapear restaurantes da periferia, valorizar a cultura e identidade dos moradores das comunidades. A metodologia seguida é a da Escola de Jornalismo. “Fazer jornalismo como um processo de você se entender em relação ao seu território, você entender seu território, de onde você é, onde você mora. Você encontrar valor no seu território”, afirma Jessica Mota, gerente de RH e Comunicação Institucional do projeto.
Prato Firmeza: Sônego Bistrô
Daniel Neves de Faria, fundador do Sônego Bistrô, localizado na extrema periferia da Zona Sul de São Paulo, comenta a presença do Bistrô no Guia. Para ele, é essencial “a questão da autoestima, de a gente ter um reconhecimento. Olhar e ver que estão vendo as nossas boas práticas”. Além da questão afetiva, Daniel explica a importância da divulgação do restaurante. “Uma questão objetiva é que o Prato Firmeza, além de tudo, divulga e a gente acaba tendo um ou outro cliente que vem pela divulgação.” Para ele, ter seu restaurante catalogado no Guia, também os impulsiona a melhorar cada vez mais sua comida.
Assim como diversos estabelecimentos, o Sônego Bistrô precisou fazer uma contenção de gastos quando viu seu público diminuir em razão da pandemia. Devindo a questões já existentes no funcionamento do restaurante, Daniel já possuía um número reduzido de funcionários, e, por isso, não precisou encerrar o vínculo de trabalho com nenhum deles. “A gente se esforçou para manter esse time. Agora, a gente tem contratado mais pessoas para que num pós pandemia a gente esteja preparado para atender adequadamente às pessoas”, diz.
Quanto ao fluxo de clientes, o proprietário do Bistrô aponta que a diminuição do público causou uma queda de 60% a 70% nas vendas. O restaurante funcionou mesmo durante o período de arrojamento das medidas sanitárias, por ser um trabalho essencial, e Daniel conta que priorizou alguns de seus fregueses, estreitando o relacionamento com eles para manter a operação.
A perda significativa da receita dos estabelecimentos pode muitas vezes levar o negócio à falência, como ocorreu com alguns restaurantes no período pandêmico. Quando se trata de empreender na periferia, a situação pode ficar ainda mais perigosa, mas o dono do Bistrô mostra-se esperançoso, apesar das dificuldades. “Pra gente que é da periferia, da favela, as coisas nunca foram fáceis. E, se diante de algum cenário de crise, como esse da pandemia, a gente recuar e achar que não vai conseguir, nós não estaríamos em lugar nenhum”, desabafa.
Prato firmeza na pandemia
Com a pandemia, as duas frentes do Prato Firmeza foram prejudicadas, tanto as reuniões realizadas pelo Guia quanto o mapeamento dos estabelecimentos. Encontros organizados para replicar a metodologia de apuração criada por eles, embasada na criação de mapas afetivos, não puderam acontecer. A última edição foi em março de 2020, pouco antes do aumento dos casos de covid-19 na cidade de São Paulo.
O mapeamento dos estabelecimentos a serem incluídos e atualizados no site do guia também precisou esperar. Jessica conta que, pela impossibilidade dos voluntários e repórteres se deslocarem, foi necessário encontrar uma saída. “Usou-se principalmente o Google Maps para mapear. Ela [Gabriella Mesquita, analista de Distribuição do PF] via um estabelecimento, jogava no Google Maps o endereço. Se não conseguiu ligar lá, ela via que tinha uma farmácia do lado, ligava na farmácia e falava com a atendente. ‘Tem um restaurante aí perto?'”.
O volume atual do Guia Prato Firmeza, lançado em 2020, o Prato Firmeza Preto, teve apuração completamente online. Os organizadores estruturaram uma logística para os pratos serem enviados aos repórteres por delivery, mas, devido a complicações no mapeamento, os restaurantes ainda não estão catalogados no site. Foi preciso, também, realizar uma seleção mais restrita, adicionando somente restaurantes que atendessem ao formato delivery, o que fez com que alguns estabelecimentos ficassem de fora, já que nem todos conseguiram se adaptar.
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Prato Firmeza: Villa’s Bar Show
O Villa’s Bar Show é um dos restaurantes presentes no Guia que sentiram os impactos da pandemia. O bar tem movimentação noturna, o que não tornou o atendimento por delivery uma opção viável, causando a total pausa das atividades logo no início da pandemia, em 2020. “Quando aconteceu a primeira [onda da] pandemia nós fechamos de vez, nós ficamos sem reação nenhuma”, conta Zezé, proprietário do estabelecimento, sobre os períodos de lockdown.
Outro reflexo sentido no restaurante localizado na Zona Sul de São Paulo foi a dificuldade de manter os funcionários enquanto não havia trabalho para eles. Com dois contratados de carteira assinada e outros freelancers, o dono do Villas’s Bar se viu na necessidade de suspender por um período os contratos de trabalho.
Na contramão do que alguns lugares fizeram no período de lockdown, com o impulsionamento das redes sociais dos estabelecimentos, Zezé revelou que, no caso de seu restaurante, as redes sociais ficaram esquecidas e o funcionário que cuida da atualização das mídias foi dispensado.
Mesmo com o susto causado pelas inúmeras paralisações no período de apenas um ano, Zezé se mostra esperançoso para a retomada do negócio, ainda que o cenário esteja difícil. “Está dando tudo certo. Por enquanto estamos respirando”, diz.
PF continua
No PF, também não houve o medo da necessidade de encerrar as atividades mesmo com a pandemia. “Diferente de outros projetos que não estão tramitando, o Prato Firmeza tem andado. A gente não sabe muito o porquê. Talvez seja um projeto muito bem feitinho. Acho que o Prato Firmeza tem uma coisa que você vê que as pessoas gostam, acham legal, tem um apelo”. Como o projeto já estava inserido nos planos de financiamento cultural do governo, o que estava sendo produzido nesse período já tinha verba captada.
Embora as mudanças nas leis de incentivo não tenham atingido diretamente o PF, Jessica admite que acabou sendo alarmante, já que a demora para permitir a sequência do projeto torna o ambiente apreensivo. “É um grande ponto de interrogação”, comenta. Aproveitando o cenário de profissionalização do Prato Firmeza, a necessidade de entender melhor como funcionam as questões legais resultou na contratação de um profissional para auxiliar a coordenação a cobrar e fortalecer essa captação de verba.
Atualmente, o Guia abrange apenas São Paulo, mas o projeto encontra-se em expansão. Uma frente no Rio de Janeiro será lançada no final do segundo semestre, e a organização visa também mapear outras regiões. “Isso vem muito impulsionado pela possibilidade do trabalho remoto, nessa lógica de coordenar equipes remotamente”, comenta Jessica.
Olhar digital
Essa adequação ao ambiente digital foi essencial ao Prato Firmeza para que o Guia pudesse continuar chegando às pessoas, já que estava impossibilitado de marcar reuniões e encontros presenciais. O “olhar digital” do PF, como chama Jessica, teve início apenas em 2020, quando eles perceberam a necessidade de alimentar as redes sociais com as novidades e atualizar o site, o que nunca tinha sido feito, até então.
Gestão, prestação de contas e comunicação social foram as áreas listadas por Jessica com as maiores mudanças. Nesse contexto de pandemia, diversos projetos culturais na Lei Rouanet foram descontinuados pela secretaria, o que levou o PF a perceber uma necessidade de profissionalizar a equipe para cobrir todas as suas atuações e garantir prestação de contas e comunicação clara.
Essa transparência, somada à presença online do Prato Firmeza, foram os principais aprendizados dos integrantes do projeto nesse período atípico. O PF conseguiu enfrentar confiante a situação da pandemia e deve sair dessa com mudanças significativas para continuar mapeando outros restaurantes de áreas periféricas pelo País, levando novos olhares e valorização para mais estabelecimentos e temperos.