Pandemia da covid-19 foi responsável por paralisar os negócios do octogenário Restaurante Itamarati e de seu fiel escudeiro, o garçom Mirandinha
Importantes histórias foram fechadas junto com as portas da Rua José Bonifácio, 270, no Centro Histórico de São Paulo, inclusive a mais emblemática delas. O salão vazio impossibilitou o trabalho do garçom Miranda, que durante quase meio século tirou as contas das mesas do bar, colocou um sorriso no rosto e não cobrou, com muito gosto, os clientes do Restaurante Itamarati.
No dia 11 de agosto de 2020, as clássicas portas de vidro emolduradas em madeira não mantiveram as celebrações do Dia do Advogado. Pela primeira vez, elas se viram obrigadas a “despendurar” as contas pendentes há mais de 80 anos por alunos e professores de direito do Largo São Francisco.
José Moreira Miranda lembra, aos 71 anos de idade – 40 deles com bandejas nas mãos servindo clientes – as piadas internas e sorrisos que compartilhou com os amigos pessoais. Entre bolinhos de bacalhau e empadas, figuras como Alexandre de Morais, Eros Graus, Paulo Maluf e Dias Toffoli integram o time de testemunhas que presenciou a vida efervescente do tradicional Itamarati.
O rosto por trás das mesas
“Aí o Maluf chegou pra mim e disse ‘Ô Miranda, aquela mesa lá vai ser pendura, mas é o seguinte: eu vou pagar aquela mesa, tá? Não fica preocupado, não, porque eu pago a mesa’.”
Carinhosamente apelidado de Mirandinha, o garçom pareceu estar predestinado à vida dos juízes e advogados que faziam a alegria da sua rotina. Ironicamente nascido em Juiz de Fora, em Minas Gerais, o caminho jurídico não lhe serviu de carreira. Contudo, foi por causa dele que milhares de alunos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo fizeram a fama do Itamarati, que começou com um Miranda ainda bem moço.
“Eu olhei o pessoal com o cabelo tudo curtinho e eu tinha um cabelo grande. Eu era jovem na época, 40 anos atrás eu era jovem”, conta o garçom. Os primeiros passos de Miranda em direção ao balcão que marcaria a parte mais importante de sua vida foram percorridos sempre com muito respeito e elegância, como ele lembra até hoje.
“Cheguei lá no Itamarati, e o proprietário estava no balcão. Falei ‘opa, tudo bem?’ e ele me respondeu ‘tudo bem e o que você vende? Mala 007?’ por causa da minha roupa, meu uniforme”. Determinado e com um sorriso no rosto desde que largou o interior de Minas Gerais para se arriscar na capital paulistana, Miranda seguiu em frente com o sonho de se refazer em São Paulo: “Ele [o patrão] me perguntou ‘e se não der certo?’. Eu falei assim ‘eu vou ficar muito feliz que o senhor me deu uma chance’. Aí, ele respondeu ‘Então você começa segunda-feira’”.
Foi assim que, no dia 3 de março de 1980, José Miranda iniciou a primeira das muitas segundas-feiras em que, com muito orgulho, seria apenas Mirandinha.
Em contradição, o 3 de março de 2020 não seria marcado pela mesma alegria. O que deveria ser o quadragésimo aniversário de Miranda à frente dos balcões marcou o início de tempos sombrios. Por conta da pandemia, o recém reformado restaurante sucumbiu a pressões dos proprietários do edifício e fechou – por tempo indeterminado – o clássico salão para o público.
“Estávamos tentando levar as coisas adiante”, declarou a sócia do Itamarati, Marli, em entrevista ao UOL, “Reformamos a cozinha, e não pudemos preparar um único prato, pois veio a pandemia e a situação ficou inviável”. O quadro do restaurante se encontrava crítico há cinco anos – desde que a equipe foi obrigada a encerrar as atividades no período noturno, devido à insegurança que marca os tempos modernos no centro de São Paulo.
Noites de ouro e contas penduradas no Restaurante Itamarati
Os momentos de glória do Itamarati permitiram, no passado, que os clientes mais queridos do restaurante tivessem o privilégio de passar a régua com nada além de felicidade garantida após as refeições. Até os dias de hoje, os amigos pessoais de Mirandinha são gratos ao garçom.
Dentre os que cruzaram o caminho de Miranda, ele lembra de um dos grandes nomes que passou pelas cadeiras do praticamente refeitório dos alunos de Direito, um estudante da turma de 1987, apelidado de Zidório. “Ele chegava lá e comia um sanduíche. Era rosbife com queijo palmira no pão preto. Era o sanduíche mais caro”.
“Ele falava ‘Miranda, não me traz nada, que a minha mesada acabou, eu não tenho dinheiro, eu sou pobre’ e eu falei ‘hoje você vai comer igual os outros, não interessa se você tem dinheiro ou não tem dinheiro, você vai comer'”. O garçom sempre fez questão de garantir que a satisfação da clientela – ou, como ele diz, família – fosse a prioridade de seu atendimento.
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Os tempos áureos dos salões do Itamarati permitiam que Mirandinha se desse ao luxo de fechar o caixa com buracos no orçamento, que ele mesmo cobria com as caixinhas que recebia. Muito mais que incentivar, o lucro do garçom em uma semana de trabalho só o lembrava da satisfação de ganhar a vida fazendo o que se ama com pessoas queridas.
Nesse cenário, Miranda recusou ofertas de trabalho que deixariam qualquer aventureiro de queixo caído: seis meses em um cruzeiro pelo Brasil, atendente de mesas no Hilton – um dos mais tradicionais hotéis do País – e até mesmo a espirituosa noite paulistana não foram suficientes para afastar Miranda do restaurante central.
A fidelidade do garçom, porém, foi futuramente recompensada. Junto com o Itamarati, ele assistiu aos clientes que se enrolavam com mesadas e salários de estágio pagarem as contas após se formarem, passarem em concursos públicos e ingressarem de vez no mundo jurídico. Segundo ele, até mesmo os mais “pobres” fizeram questão de voltar para cobrir as dívidas do passado.
O “despendurado” 11 de agosto
Os anos se passaram e os bolsos de Miranda esvaziaram junto com as mesas e cadeiras do estabelecimento. Com a pandemia do novo coronavírus e a crise financeira enfrentada pelo Restaurante Itamarati, o garçom foi um dos 20 funcionários dispensados em 2020.
Agora, Miranda se vira como pode com os 700 reais mensais de aposentadoria – fora pequenos trabalhos para complementar a renda – para arcar com os custos e cuidados da ex-esposa. Ele explica que ela está muito debilitada e, sendo grupo de risco, não pode ser assistida por uma cuidadora.
O Itamarati, como que de mãos dadas com o fiel funcionário também lutou – e ainda luta – para manter-se erguido durante a pandemia. Com um aluguel de mais de 20 mil reais, não houve negociações suficientes que mantivessem o espaço físico intacto no coração de São Paulo.
Como resultado, o Largo São Francisco testemunhou o definitivo fechamento das portas do Restaurante no início da quarentena, em março de 2020. No entanto, o que parecia um trágico final recebeu apoio dos antigos frequentadores e, no seu último ato heroico, Miranda protagonizou a campanha do “Despendura”.
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Em uma inversão de valores, o mundo jurídico se reuniu para, com mais de 200 anos de atraso, quitar as contas penduradas no Dia do Advogado. O 11 de agosto de 2020 foi, assim, uma interrupção de uma tradição bicentenária, em que os egressos da Faculdade de Direito da USP não pagavam pelo que consumiam.
Além dos 250 doadores da campanha, aqueles com paladar mais refinado optaram por salvar o restaurante na sua essência e se deliciaram com os kits de empadinhas e bolinhos de bacalhau, que eram protagonistas do cardápio do Itamarati. A demanda de pedidos foi tanta que, como revela a proprietária Marli, a produção dos 1055 kits teve de encerrar um dia mais cedo do que o esperado. “Isso é o que mais nos motivou a continuar. Porque eu não imaginava uma ação tão bonita quanto essa”, desabafou.
Itamarati vai do tradicional ao digital
A vida paulistana assistiu, da Rua José Bonifácio, 270, o fim de mais uma história em 2020. Mesmo distante, o fechamento do espaço físico do Restaurante Itamarati mexeu com quem teve o privilégio de adentrar as clássicas portas de vidro emolduradas em madeira.
O Itamarati, contudo, ainda resiste online, como mais um adepto dos meios digitais para a sobrevivência no comércio pandêmico. Enquanto isso, Miranda segue com um otimismo teimoso de quem assistiu a vida passar com muito carisma e história para contar: “Se o Itamarati reabrir e Deus me der saúde, eu trabalho mais 40 anos lá dentro com a maior felicidade da vida”.