Produtores de conteúdo e leitores contam como retomar o hábito de leitura e compartilhar as experiências ajudou a lidar com a crise da covid-19
São por volta de três da tarde. Na tela do computador, uma jovem lê um livro de sua escolha enquanto uma música lenta toca ao fundo. Por 15 minutos, ela interrompe sua leitura e interage com os espectadores através de um chat ao vivo. Em seguida, retorna sua concentração às páginas por outros 40. O ritual se repete por algumas horas, até que tenha completado um tempo satisfatório.
É assim que Lívia Gonçalves, 18 anos, passa boa parte de suas tardes. Os chamados sprints de leitura, realizados na plataforma Twitch, já fazem parte de sua rotina como influenciadora literária. “É bem legal para quem tem dificuldade de foco e para quem é ansioso”, explica ela. As lives têm o objetivo de ajudar seus seguidores a manterem o foco por um tempo específico apenas na leitura. O formato se popularizou em 2020, quando muitos produtores de conteúdo começaram a adotá-lo.
Em julho do mesmo ano, alguns meses após a covid-19 se espalhar pelo Brasil, Lívia criou um perfil no Instagram para compartilhar postagens sobre literatura. “A motivação foi querer falar de uma coisa que eu amava e que me fazia sentir bem comigo mesma”, relata a estudante de Publicidade e Propaganda. Com isso, surgiu o Liv Resenhas, que hoje, pouco mais de um ano depois, conta com mais de 50 mil seguidores.
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“A pandemia foi uma grande questão nisso”, lembra Lívia. Para ela, a crise sanitária e a necessidade do isolamento social a fizeram confrontar suas próprias inseguranças. Segundo a estudante, criar a conta “foi uma grande forma de ajudar com a minha ansiedade e de me descobrir como pessoa”. Hoje, Lívia produz conteúdos para diversas plataformas, como Youtube e TikTok, além das lives na Twitch. “Eu era tão envergonhada que eu tinha pavor de fazer lives no começo e hoje em dia é minha parte favorita.”
De acordo com a jovem, o número de perfis voltados à literatura aumentou muito no último ano: “Lembro que eu comecei a achar algumas contas, mas eram poucas no começo. Cresceu muito”. O Bookstagram, como é apelidada essa comunidade dentro da rede social, tornou-se um espaço de troca e conexões. Em consequência, muitos passaram a acompanhar esse tipo de conteúdo e foram incentivados a adquirirem o hábito da leitura. “Eu fico abismada com a quantidade de gente que voltou a ler na pandemia por conta dos produtores de conteúdo literário”, diz Lívia.
Influenciadas a retomar o hábito de leitura
Uma dessas pessoas foi a estudante de Arquitetura e Urbanismo Mayra Campiteli, de 19 anos. Ela conta que, com a chegada do coronavírus, sua primeira reação foi afastar-se da leitura. “Eu passava o tempo todo na internet e percebi que isso estava me cansando”, lembra. “Eu parei para pensar e falei ‘vou tentar fazer coisas que façam mais sentido pra mim’”. A jovem foi apresentada aos influenciadores literários pela sua irmã e diz que, desde que começou a acompanhá-los, se sente mais incentivada a ler.
“Ver as pessoas com uma paixão literária e gostando tanto do assunto me estimula muito”, explica Mayra. Ela afirma que tem tentado ler sempre algumas páginas por dia e que foi influenciada a adquirir um e-reader, aparelho para leitura de livros digitais. “Acredito que esse conteúdo é muito importante, principalmente na pandemia, porque todo mundo está um pouco quebrado mentalmente e é sempre bom ter um refúgio”, completa.
Assim como Mayra, Fernanda Olaia, estudante de Direito de 19 anos, também foi inspirada a retomar seu hábito de leitura durante a pandemia. Mas, nesse caso, o entusiasmo foi além da experiência individual de leitura. Motivada por perfis literários e por suas professoras de literatura, que já compartilhavam conteúdos nas redes sociais, Fernanda decidiu criar o Blog Fernanda Olaia, um espaço próprio no Instagram para compartilhar suas experiências de leitura e ter contato com diferentes objetos culturais.
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A página surgiu em outubro de 2020. Segundo ela, o cenário pandêmico e a criação do blog tiveram um efeito direto em seu hábito de leitura: “Eu comecei a perceber que eu tinha mais tempo em casa e que eu podia usufruir dele para ler mais livros”, explica a estudante. “A gente acaba pegando dicas, assistindo coisa a respeito e ficando com vontade de ler. Em 2020, eu li 11 livros no total, só esse ano eu já li 20.”
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Das páginas físicas às digitais
Não é incomum encontrar resenhas no feed e destaques nos stories de Fernanda sobre obras de teoria feminista. Para ela, poder compartilhar seus pontos de vista com seus seguidores é mais do que entretenimento. A estudante se sente feliz por poder falar sobre o feminismo teórico na rede, pois percebe que faltavam pessoas ao seu redor que discutem o tema. “Acho positivo que a internet permita que a gente fale também sobre literatura e sobre o movimento das mulheres para que seja um ambiente em que possamos trazer conteúdos relevantes e não só opressivos”, relata.
O Blog Fernanda Olaia já bateu a marca de 900 seguidores, algo que antes não era pensado pela criadora – que apostava, com sorte, no follow de 100 pessoas. Especialmente pelo trabalho de divulgação da teoria feminista e discussão de pautas sociais, Fernanda sente um bom engajamento dos seguidores, mas com uma carga alta de responsabilidade: “Eu me sinto até responsável demais, porque mesmo quando você não atinge milhões de pessoas, o pouco que você alcança já é uma quantidade boa. Várias vêm conversar comigo a respeito das coisas que eu falo. Acho que é uma troca positiva, não só para elas, mas também para mim.”
Esse sentimento de responsabilidade por ter a capacidade direta de influenciar as pessoas também é sentido por Lívia, no @livresenhas. Mas, assim como para Fernanda, ele é interpretado de forma positiva e como uma oportunidade de compartilhar assuntos pouco debatidos no meio. “Por ser ansiosa, ainda é uma coisa que me causa um pouco de insegurança. Mas, hoje em dia, tenho muito mais confiança nisso porque sinto que sou uma criadora de conteúdo que fala sobre livros que precisam ser falados, que as pessoas não conhecem ou com representatividade, algo que muitos não vão atrás. Acho que eu posso usar essa influência que eu acabei adquirindo para uma coisa boa”, aponta.
Literatura e causas sociais
Diversos perfis literários, como o blog de Fernanda, optam por focar em assuntos específicos, muitas vezes trazendo livros que abordam questões sociais. Camilla da Apresentação, 20 anos, analista de marketing e estudante de Direito de Salvador, Bahia, criou o perfil Pretas Letradas com o objetivo de compartilhar leituras que retratam a negritude, a ancestralidade e a decolonização do pensamento. Inicialmente, Camilla fez a conta para ter onde publicar as suas resenhas e dividi-las com amigos e familiares próximos, mas não imaginava a proporção que seu Bookstagram tomaria. Desde sua criação, em agosto de 2020, o perfil já alcançou quase 12 mil seguidores e mudou sua vida completamente.
“A pandemia influenciou 100% na minha decisão de começar o Pretas Letradas. Creio que sem o isolamento social eu nunca teria tido tempo de refletir sobre isso. A reflexão é poderosa”, diz Camilla. Segundo ela, 2020 trouxe muito tempo ocioso, porque havia saído do seu antigo trabalho e suas aulas remotas não estavam bem organizadas e não funcionavam efetivamente.
A influenciadora diz que seu perfil abriu diversas oportunidades para a carreira profissional: “Em 2o20, eu estava sem emprego e hoje trabalho como analista de marketing por causa do Pretas Letradas”. Ela afirma que, por meio da conta, conseguiu consolidar uma rede de apoio com pessoas pretas do mundo todo, da Argentina à África do Sul. “A rede social é incrível se você souber usar direito. Eu acho que o que mais me impactou foram essas conexões que eu consegui estabelecer. A conexão preta é uma luta de resistência e de liberdade”, completa.
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A estudante publica resenhas, indicações e “conteúdos de oportunidade”, que podem envolver questões do contexto político do momento. Para ela, ter esse espaço de divulgação de literatura relacionada às questões raciais e à cultura negra é muito importante. “Quando se é preto e vive no Brasil ou em qualquer outro lugar dos africanos em diáspora, se convive diariamente com o racismo, seja de forma estrutural ou institucional. Por isso, é preciso ler os nossos”, aponta.
Além disso, afirma que, antes de criar a conta, havia passado quase dois anos sem ler um livro. “Eu sempre li muito, desde criança, mas teve esse período que eu descobri que tinha ansiedade, então perdi o interesse em ler e fazer qualquer coisa que realmente me desse prazer”, lembra. Porém, após passar alguns meses confinada em casa, decidiu retomar o hábito de leitura. Assim como Lívia, que também sofre com ansiedade, Camilla encontrou nos livros uma válvula de escape. “Com a pandemia, eu me esforcei para voltar a ler e consegui. Eu realmente vejo o perfil como uma forma de terapia”, finaliza.