Leitura Sensível: como a revisão transforma o mercado literário - Revista Esquinas

Leitura Sensível: como a revisão transforma o mercado literário

Por Felipe Cavalheiro : março 18, 2025

A leitura sensível identifica e ajusta representações problemáticas, criando uma leitura mais inclusiva e empática. Foto: Rafael Cosquiere/Pexels

Prática editorial que promove inclusão e empatia, corrigindo estereótipos e reconhecendo grupos marginalizados

Antes de ser publicado, um livro passa por uma série de revisões, tanto na gramática quanto na estrutura e coerência do texto. Um modelo relativamente recente no mundo editorial é a leitura sensível, que busca identificar expressões ofensivas, termos datados, contextos problemáticos e representações estereotipadas de determinados grupos ou situações.

No meio acadêmico, a leitura sensível ainda tem pouco espaço. O artigo “Práticas de leitura sensível na revisão de textos literários”, publicado em 2022 pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), foi um dos primeiros no Brasil a tratar do tema e destaca a escassez de estudos na área. Já no mercado editorial, a prática é adotada há alguns anos. Grandes editoras, como a Companhia das Letras, contratam leitores sensíveis para alguns de seus livros desde 2017. No entanto, para um setor que demanda maior representatividade, o avanço nas práticas de inclusão ainda ocorre de forma tímida.

Uma pesquisa do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) revelou que, em 2023, 44% das empresas respondentes não consideram os riscos reputacionais, mercadológicos e regulatórios ligados à diversidade. Além disso, entre os colaboradores terceirizados — grupo que inclui a maioria dos leitores sensíveis contratados —, 80% consideram pouco ou nada decisiva a diversidade étnica na contratação.

Fora das grandes editoras, os livros autopublicados — que há três anos já ultrapassavam a marca de 200 mil títulos na Amazon — encontram outras formas de acesso à leitura sensível. Além de agências como a “Authoria”, que conta com um time de leitores sensíveis trabalhando sob demanda, autores independentes podem recorrer a revisores autônomos. Esses profissionais costumam cobrar por página ou caractere do texto e, mais do que uma formação acadêmica, aliam conhecimento em escrita criativa à experiência e representatividade dentro dos grupos retratados na obra.

Revisão e Inclusão Étnica

Mayara Nascimento seguiu sua paixão pela literatura e, após se formar em Direito, frequentou cursos de escrita criativa. Há um ano, trabalha com leitura crítica e sensível, focando na representação de personagens negros. Embora a revisão seja, por enquanto, uma fonte de renda secundária, ela espera poder se dedicar inteiramente a essa atividade no futuro.

Atuando com autores independentes, Mayara percebe que “o público vem muito das redes sociais, um grupo que cobra diversidade”. Segundo a revisora, “o livro tem maior alcance quando o leitor sente empatia pela obra e não esbarra em temas que o ofendam”. Seu trabalho consiste em identificar estereótipos, como a recorrente representação do personagem negro como alguém a ser salvo, e descrições problemáticas, como comparações do tipo “pele cor de jambo”.

Uma crítica comum à leitura sensível, mencionada no artigo da UFPel, é a suposta restrição à liberdade criativa do autor. Para Nascimento, no entanto, a ausência desse tipo de revisão é justamente um dos fatores que limitam essa liberdade. “Por medo de descrever um personagem de forma equivocada, muitos autores evitam detalhar sua aparência. No entanto, quando não temos uma descrição, a imagem que primeiro vem à mente é a de um homem branco”, explica. Assim, a leitura sensível ajuda os autores a imaginarem e descreverem seus personagens com mais segurança, contando com um olhar analítico para orientá-los.

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Sensibilidade em Temas Psicológicos

Ana Gabriela Martins, estudante de Psicologia em Minas Gerais, decidiu aliar seus estudos à paixão pela literatura e ingressou no ramo da leitura sensível autônoma. Seu trabalho se concentra em textos que abordam traumas, luto, transtornos de personalidade e gatilhos emocionais.

Por atuar em um nicho específico, Martins conquistou clientes por meio de recomendações entre autoras. A maioria de suas clientes escreve romances new adult, um gênero voltado para adolescentes e jovens adultos. “Sinto que nunca vou trabalhar com comédia romântica. Sempre chegam os textos mais difíceis, mas entendo que isso faz parte do meu trabalho”, afirma.

Para reduzir o impacto de temas sensíveis nos leitores, a revisora defende o uso de avisos de gatilho. Esses alertas informam quando um livro ou capítulo contém conteúdo que pode evocar emoções, memórias ou traumas. “A maioria dos leitores que descobrem livros por indicações de influenciadores tem entre 14 e 17 anos. Estudando Psicologia, percebo a importância de ter esse cuidado com os gatilhos e de escrever de uma forma que possa amadurecer o leitor”, complementa.

Durante todo o processo de leitura e revisão, Martins segue o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) para garantir uma abordagem precisa e respeitosa das condições psicológicas retratadas nas obras.

Leitura no Mercado Comercial e Político

Especializada em escrita criativa pela PUCRS, Lis Welch cresceu no mercado editorial e trabalhou em grandes editoras, como Jambô e HarperCollins. Mulher trans, Lis atua principalmente em textos sobre questões de gênero e sexualidade.

Com uma reputação consolidada, Welch observa que a leitura sensível está cada vez mais inserida em iniciativas de Diversidade, Equidade e Inclusão (DEI), expandindo-se para áreas como educação corporativa. Recentemente, colaborou com a Agência Bistrô na criação de um guia de representação minoritária em campanhas publicitárias.

Apesar do crescimento da leitura sensível, a revisora alerta para reações negativas. Como o trabalho está diretamente ligado às cobranças por mudanças sociais, profissionais da área são frequentemente alvos de críticas e perseguição online. No entanto, diante dessas dificuldades, a comunidade de leitores sensíveis tem se fortalecido. Para Welch, “acima das vendas de um livro, o papel da leitura sensível é político. Todo leitor sensível é um ativista”.

Editado por Enzo Cipriano

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