Como a pandemia obrigou duas livreiras a reinventarem o seu negócio e provou que o livro é muito mais do que um produto
Você se lembra da última vez que comprou um livro? Mas não pelo seu computador, quando abriu um site de vendas online já com um produto em mente e só clicou em comprar. Quando foi a última vez que você entrou em uma livraria – aquelas de bairro, que você se sente em casa e acolhido – e conversou com o livreiro, teve um momento especial? Se um dia você já foi em uma livraria desse tipo, provavelmente foi antes da pandemia e, com certeza, essa livraria não era como a Mandarina.
Por mais de um ano e chegando de surpresa, o coronavírus interrompeu muitos sonhos. As sócias da livraria Mandarina, Daniela Amendola e Roberta Paixão, são exemplos disso. As livreiras, junto com Dionisius Amendola, primo de Daniela, estão vivendo em uma corda bamba, enquanto tentam manter sua livraria aberta. Em meio a uma cidade movimentada como São Paulo, as sócias comandam as rédeas da Mandarina, a livraria de rua com histórias que extrapolam as páginas dos livros.
A semente da Mandarina
A trajetória delas começou com uma semente plantada na cabeça de Daniela, quando ela ainda era criança. Seu avô, o primeiro livreiro da cidade de Campinas, apresentou a ela um mundo onde ir à livraria significava muito mais do que comprar livros. “Eu gostava do conceito de livraria do meu avô, lá de trás, que é isso de um local onde você tem encontro, faz pontes”, conta a empreendedora.
Durante cinco anos, Daniela semeou conhecimento em seu quintal, onde reunia pessoas de diferentes áreas humanas para falar sobre as engrenagens políticas, sociais e humanas. Foi neste quintal que Daniela conheceu Roberta. As duas conversaram sobre trazer à vida a livraria, que ainda não tinha um nome. Segundo ela, a junção “deu um bom caldo”. Sonhadora e emocional, Daniela foi complementada pela maneira mais focada de Roberta e as duas foram à batalha.
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“Quando a gente pensou na livraria, pensamos justamente em trazer a livraria do meu avô, aquilo dos intelectuais e dos leitores se encontrarem e o livreiro ser um leitor e poder dar dicas”, explica Daniela. “Essa profissão de livreiro era muito valorizada antes, depois passou, porque as livrarias começaram a crescer muito e os livros viraram meras mercadorias”.
Rascunho vai, rascunho vem, elas finalmente decidiram tirar a visão do papel e foi quando surgiu a Mandarina, um nome escolhido para amarrar todas as pontinhas dessa jornada. “O nome Mandarina vem de uma árvore, que tem muito a ver com quintal. Então o solo fertil do quintal fez crescer uma árvore, que é uma livraria. Se você pensar nisso, a imagem seria as palavras soltas no quintal, que viraram uma livraria”, conta Daniela, com orgulho em poder honrar a memória do avô.
Frutos da Mandarina interrompidos
Foi no início de 2019 que o sonho começou a dar frutos e a Mandarina começou a tomar forma. Nesta época, grandes livrarias com a Saraiva e a Livraria Cultura entraram em crise, devendo milhões de reais para editoras. Porém, para Daniela, aquele foi o momento perfeito para abrir uma livraria que ‘voltava às raízes’: “A gente percebeu que com certeza era um momento bom pro negócio em si também, pra trazer de volta o valor do livreiro, pra ter uma curadoria focada em humanidades e em literatura”.
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Na Rua Ferreira de Araújo, que, por ironia do destino, é dedicada a um dos grandes amigos de Machado de Assis, responsável pela publicação das maiores obras do autor, a Mandarina é cercada por restaurantes e faz o papel de alimentar a alma daqueles que a visitam. Seguindo a proposta inicial de ser muito mais que uma livraria, as sócias começaram a sediar um clube de leitura presencial e a proporcionar cursos sobre Clarice Lispector e Virginia Woolf. Daniela conta que as pessoas estavam muito envolvidas com o espaço da livraria: “A livraria, além de ser linda, é uma delícia e um ponto de encontro. É um refúgio nesta cidade de São Paulo, um oásis literário.”
Porém, apenas nove meses depois, tudo isso teve que ser interrompido. Com a chegada da pandemia, elas tiveram que fechar as portas do dia para a noite. Em um contexto em que as pessoas estão privadas do contato humano, parece quase impossível pensar na sobrevivência de uma pequena livraria que tem como essência a troca de conhecimento com o outro dentro de seu espaço físico.
Assustadas com a situação inédita na qual se encontravam e sem nenhuma experiência no ramo online, as sócias tiveram que se reinventar e se adaptar às circunstâncias impostas. Daniela conta que acabou fazendo um site, mas que acelerou demais esse processo. Na realidade, o que de fato salvou a livraria não foram as vendas online, mas sim a mobilização das pessoas que foram cativadas durante estes nove meses de trabalho presencial.
A arte de se reinventar
A pedido do público, que sentia falta de conversar e da troca com a livraria, Daniela e Roberta aumentaram os clubes de leitura, fazendo dois encontros por mês, tudo online. As duas também passaram a dar mais cursos de diversos temas e colhendo frutos plantados por Daniela quando ainda fazia encontros em seu quintal. Foi todo esse engajamento que fez com que as pessoas continuassem na cola da livraria, mesmo de portas fechadas. Mesmo em meio ao caos promovido pela pandemia.
A dona da Mandarina ainda conta que, no primeiro susto da pandemia, mesmo com vendas, cursos e a troca de ideias de maneira virtual, o que elas mais sentiram foi a falta da atividade do livreiro, da essência da livraria. “A diferença básica é a experiência de entrar numa livraria que tem três livreiros que leem e que estão lá e que conhecem”, desabafa.
No entanto, a reviravolta também trouxe um ponto positivo. Como as atividades não podiam ser feitas presencialmente, começou-se a formar uma relação com os clientes por meio do Whatsapp: “Foi onde as pessoas começaram a comprar. Muitas pedem dicas até hoje”. Esse sempre foi o intuito das empreendedoras: criar pontes. “São as que você tem com o livro, a cultura, o conhecimento e com as pessoas que te levam a querer ler e consumir esse tipo de saber”.
Um novo susto na Mandarina
Foi assim que a Mandarina sobreviveu durante a primeira onda da pandemia: com trocas e reinvenções. As coisas começaram a melhorar nos primeiros meses de 2021, uma pequena luz no fim do túnel, quando as sócias puderam voltar às atividades presenciais. Mas isso tudo mudou novamente em março. Com o aumento dos casos de covid-19 e o fechamento do comércio de rua em São Paulo, os cursos e vendas online não foram o suficientes para manter a Mandarina aberta. A situação era diferente e o desespero foi maior. “A gente percebeu uma estafa emocional, todo mundo exaurido. Deu um susto em todo mundo e as pessoas estavam muito cansadas.”
Sem mais nenhuma opção, as sócias lançaram uma campanha de doação pelas redes sociais, com a esperança de que aquilo pudesse ajudá-las. Desta vez, a surpresa foi positiva e o pedido por ajuda teve uma repercussão gigantesca. Em poucos dias, a conta oficial da livraria no Instagram atingiu mais de 17 mil seguidores, e a Mandarina contou com doações de pessoas de todas as regiões do Brasil.
“Algumas pessoas doaram para ajudar a gente a pagar o aluguel e com essa abertura de ligar e falar ‘olha, se esse valor não for o suficiente, se o próximo aluguel você precisar de novo, me liga’. Coisa assim que você fala ‘meu deus’”, lembra Daniela.
Neste período, as duas sócias contaram com ajuda de pessoas que compartilham do sentimento de que “a leitura transforma”. O renomado escritor Milton Hatoum, amigo de longa data de Daniela, fez uma parceria com a dupla que deu muito certo. “Elas fizeram uma promoção de dar desconto sob meus livros e eu faria a dedicatória para cada leitor. Acho que devo ter feito mais de 200 dedicatórias.”, conta Milton.
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O autor também virou padrinho da livraria, como comenta Daniela: “Ele inaugurou a Mandarina e daí para frente, a gente só cresceu nesse sentido de mostrar ao mundo que uma livraria pequena, mas empenhada em sua curadoria, dá muito certo”.
“Todo comércio está passando por uma situação difícil, mas o livro não é um comércio qualquer. Ele é uma espécie de mediador, que instaura esse milagre da comunicação, entre o texto e a solidão do leitor”, completa Milton.
O espírito da Mandarina, diferente de qualquer coisa que se vê nas ruas de São Paulo, e o conhecimento semeado nas estantes e nas obras escolhidas pelos livreiros quase foram arrancados pela raiz. Mas graças ao público, os frutos da árvore ainda poderão ser colhidos por mais tempo.
A situação difícil promovida pela pandemia ensinou muito para as duas sócias, sempre prontas para lutar por seus sonhos. “A gente vai continuar, isso está claro. É difícil, é um desafio nesse momento, porque é um comércio de rua. Mas mesmo fechada, a gente conseguiu continuar, porque teve todo o apoio da sociedade. Vamos retomar cursos e lives”, afirma Daniela.