A “gourmetização” do funk: “O que é levado para fora do país, ao meu ver, não é a mesma coisa que toca nas favelas” - Revista Esquinas

A “gourmetização” do funk: “O que é levado para fora do país, ao meu ver, não é a mesma coisa que toca nas favelas”

Por Izabella Giannola e Pedro Alvarez : julho 8, 2021

Dos paredões até premiações internacionais, o funk atravessou barreiras atemporais e fez com que um movimento surgido nas periferias movimentasse milhões de reais e passasse a ser visto como um produto cultural

Thiago de Souza, mais conhecido como Thiagson, dedicou seu doutorado ao estudo desse gênero. “O funk mudou completamente. No começo tinha uma batida muito parecida com a do Miami Bass, do funk de Los Angeles e das músicas eletrônicas vindas da cultura do Hip Hop, feitas pela população negra que veio para cá”, conta sobre a origem do gênero.

Mas é fato, dos paredões do Furacão 2000 até as mixagens feitas por DJ´s, o funk está se tornando cada vez mais comercial.

Anos 90

Dj Marlboro fez história no funk. Carioca, foi um dos grandes precursores do ritmo. Presente em músicas como “Rap da Felicidade”, “Um morto muito louco” e outros grandes sucessos da época que repercutem até hoje, o DJ trouxe influências estrangeiras e deu vida e inspiração a uma grande vertente musical.

Thiagson explica que no começo dos anos 90, e no final dos anos 80, o primeiro álbum de funk lançado foi o do DJ Marlboro, e para ele, tal passo foi um dos mais importantes para o ritmo. Antes, o estilo sofria uma forte influência internacional, com traços do Hip-hop e do Rap estadunidenses. O músico foi o grande responsável por dar ao estilo musical traços e características fortes e profundas do Brasil e da periferia brasileira.

Sobre o DJ Marlboro ser considerado o “pai” do estilo, Thiagson acha que talvez não seja o pensamento mais adequado: “Isso é muito problemático, porque a gente sabe que o funk é um gênero de música feito majoritariamente pela população preta. Ele não é preto, então isso influencia nessa hegemonia do Marlboro que precisa ser revista”.

“No começo você encontrava uma batida muito parecida com a do Miami Bass  e um pouco do eletrofunk, de Los Angeles”, conta Thiagson sobre as origens. Porém, no começo dos anos 90, uma mescla foi feita e então nasceu o “tamborzão”, usado até hoje.

“No início dos anos 90, você tem essa mistura do som do tamborzão, do atabaque, do som do berimbau nas bases…  Acredito que a maior mudança tenha sido essa, e a partir daí, tivemos muitos desdobramentos”, diz.

O funk dos anos 90 vem com uma característica forte de letras de mensagem, como o “Rap da Felicidade”, mas também com a presença de grandes nomes como Claudinho e Buchecha, eternizados até hoje, tocando o chamado funk “melody”. Uma batida envolvente, mas com uma grande dose de romantismo.

Há aqueles mais conservadores que insistem em dizer que o funk “não é cultura” ou que “antigamente era bem melhor”. Thiagson explica que desde os anos 90, quando o estilo começou a se popularizar e atingir outras classes, a temática sempre foi muito similar: “Desde o começo, a gente vê que o funk aborda questões que são tratadas até hoje. Por exemplo, a questão da violência nas favelas, onde vemos o funk consciente. Tem aquele um pouco mais ‘safadinho’ que tinha nos ‘melôs’, tem a questão de piada e conteúdo sexual, sobre a criminalidade… Isso sempre existiu no funk.”, explica.

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Anos 2000

Os anos 2000 foram marcados por músicas com letras mais fortes, com uma batida mais pesada e diferentes dos nomes da geração anterior, como Latino e Claudinho e Buchecha. Isso tudo tem a ver com o começo da afirmação feminina no ramo. “Foi o ano no qual se começa a ver a presença feminina muito forte afirmando sua sexualidade. É a partir daí que o funk dos homens começa a ter uma letra mais pesada. É como se fosse uma espécie de resposta masculina a essa afirmação feminina nas letras.”, explica Thiagson.

O estilo começou a explorar segmentos novos, além do surgimento de fenômenos marcantes como o “Furacão 2000”, responsável por lançar nomes de DJs e MCs que são temas de discussões e pesquisas até hoje. A década foi marcada, também, pelo surgimento de nomes como o de Lacraia, MC Serginho e o Bonde do Tigrão.

“A importância do Furacão 2000, salvo algumas questões de exploração de MC ‘s, o que acontece até hoje, foi que eles tiveram um papel de condensar tudo o que estava sendo produzido de maior sucesso e levar para o Brasil, principalmente com as coletâneas de CD, lá nos 2000, e isso teve um papel muito importante na difusão do funk”, ressalta Thiagson.

Anos 2010

A década de 2010 ficou marcada pelo surgimento de movimentos como o Baile da Gaiola e aparição de nomes que têm destaque até mesmo na indústria mundial, como o de Anitta. O gênero refletiu todas as mudanças musicais no que diz respeito à aceitação da mídia e do público. Com a chegada da Kondzilla, uma canal direcionado a música e visto como um dos maiores do mundo, houve o fortalecimento da cena.

O ritmo 150 bpm, original do Rio de Janeiro, a emergência da ostentação em São Paulo, o Brega Funk do Recife… São somente alguns dos exemplos dos nichos popularizados na década.

O funk ostentação, que surgiu em São Paulo, chegou com uma letra carregada de referências ao dinheiro e itens luxuosos, com exaltação de marcas de roupa e carros. Nasce nas periferias, mas com uma visão dos cantores que conquistaram seus sonhos através do funk.

No Rio de Janeiro, o berço do funk, nasce o 150 bpm. Um subgênero que se popularizou com os hits de Kevin o Chris e Rennan da Penha, que criou o Baile da Gaiola. O Baile nasceu na Vila Cruzeiro, no Complexo da Penha. Um som da periferia, mas que invadiu as festas universitárias das faculdades mais caras de São Paulo. De lá, além de Kevin o Chris, ganharam notoriedade também nomes como o de Du Black e o hit “Baile da Gaiola”, que foi remixado por DJ ‘s consagrados, como o Dennis.

Conhecido pelo passo de dança e oriundo de Recife, o Brega Funk surge como uma vertente nordestina do gênero. É uma junção da base do funk com o eletrobrega, um estilo primordialmente adotado nas regiões do Nordeste e do Pará.

Uma vertente mais nova do funk, popularizada em 2019, é o “funk rave”, que mistura ritmos e hits eletrônicos populares de raves e festas do estilo, com letras e batidas típicas do funk.

Umas das características mais marcantes do estilo é a adição das batidas do funk em cima de músicas famosas, ou, ainda, o uso da mixagem dessas músicas e seus “beat drops” para fazer uma espécie de ápice da batida. Para Thiagson, a origem dessas diferentes vertentes chega como uma coincidência da popularização do funk no Brasil. “O funk consegue dialogar muito com as periferias do Brasil, então, cada região assimila seu funk e produz seu funk. Cada região e cada periferia vai fazer do seu modo. O que é interessante ver no funk de BH, no funk de São Paulo e até no do Rio Grande do Sul com o Meno K que estourou agora na Kondzilla. O espalhamento vem dessa profunda identificação das favelas”, explica. Thiagson ressalta que o sucesso dos MC ’s na mídia atualmente não deve se basear somente no fato de cantarem bem. Para ele, o funk é mais que isso, é uma cultura.

Internacionalização do funk

Quando se trata de música nacional, partindo de um ponto de vista vindo do exterior, ritmos como o axé, o samba e a MPB vêm à mente. O estudioso refere-se a tal fenômeno como uma “mania de passado”. “O problema é que muitos ficam presos a música do seu tempo, é muito louco que o funk tem mais de 30 anos, e no movimento funk existe quem defenda o funk de raiz, no fundo a gente vê essa mania de passado”, analisa Thiago.

Thiagson afirma que a tendência para o funk é se tornar um ritmo do Brasil, respeitado e legitimado tanto pelos residentes quanto pelo público estrangeiro.

“Sabe esses estereótipos que um gringo pensa sobre o Brasil? Ele pensa no Pelé, no Ronaldinho… Há bastante tempo o funk está sendo feito em outros países, tenho notícia do funk feito na África, na Alemanha, no Japão (…) O funk já está ganhando espaço no mundo, acho que ele deve ser uma daquelas músicas que quando aparecer o Brasil em um filme gringo, vai aparecer um funk e não um samba”, reflete.

Ao tratar o estilo como algo que está ganhando espaço na grande mídia, há uma “gourmetização”, tanto das letras quanto da imagem de alguns artistas. Thiagson afirma que é preciso ver “com uma certa malícia”.

“Em um primeiro momento parece ser uma coisa muito boa, que está sendo levada do funk para outros países, mas será que é bom?”, questiona. “O funk levado para fora do país, pelo que vejo, não é o tocado nas favelas. Existe essa diferenciação do funk de favela, para um mais comercial. O de favela, muitas vezes, não toca nem nas festas de playboy que vemos aí”, explica sobre a diferença de tratamento dos subgênero.

O estudioso da música define essa “gourmetização” como uma “higienização” e ainda diz que pode até mesmo enquadrar como uma apropriação cultural. “Tem que ver se quem faz isso em espaços muito elitizados está preocupado em reverter o lucro e a visibilidade em campanhas para as favelas. É importante que se leve o funk para fora, mas mais importante ainda, ter esse senso crítico”, finaliza.

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