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Por Carolina Campos, Gustavo Ramos e Marina Lourenço Edição #63

Pancadão além da quebrada

Discriminado no próprio País, funk se profissionaliza e ganha o mundo

Quando não é pela fala que o público é cativado, é pela batida. Com seu ritmo envolvente e despretensioso, o funk arrebata qualquer ouvinte e quebra barreiras. O “som de preto, de favelado”, como diz a música de Amilcka e Chocolate, está em todos os lugares: festas universitárias, ruelas de favelas, boates internacionais, na televisão e internet. Um dos ritmos mais esperados em baladas frequentadas por jovens tem sido requisitado em espaços muitos distantes de seu ponto de origem.

Festas em que o ritmo musical está presente ocupam um cenário longínquo em relação à realidade dos bailes de favela onde surgiram, contando com grandes investimentos, dependendo do público-alvo que se quer atingir. Em conjunto com produtoras de eventos, é criado um conceito sobre a festa e a confecção de uma identidade visual do projeto para servir como propaganda. É pensado o local, a atração, as experiências, o consumo de bebidas e comidas, os pacotes oferecidos e uma infinidade de outros detalhes. Algo que não é era corriqueiro quando se pensa nas raízes do funk.

“Não tem evento no Facebook, acontece em fluxo, você chega na quebrada e tem que conhecer os picos onde tem o fluxo. Você vai vendo”, relata Mariana Vieira, jovem de 21 anos, frequentadora de bailes funk. Normalmente, as festas ocorrem em espaços abertos e quase nunca contam com seguranças e grandes estruturas. Caixas de som empilhadas formam o famoso “paredão” para animar os frequentadores com música. Por mais que esteja longe da realidade das festas elitizadas, a própria base das festas de funk tem sofrido algumas mudanças, contando com alguns estabelecimentos como casas de narguilé, tabacarias e adegas. “O pessoal tem visto que a polícia tem barrado e tem tentado organizar”, completa Vieira.

Solta o grave

O funk surgiu nos Estados Unidos e, no Brasil, ganhou destaque nos bailes do subúrbio carioca na década de 1970. Foi só em 1989 que o funk nacional, após sofrer algumas transformações, surge e entra em evidência com o DJ Marlboro, que lançou na época a coletânea “Funk Brasil 1”, um sucesso de vendas mesmo sem apoio da mídia e não se limita apenas aos bailes, como atesta Silvio Essinger, autor de “Batidão: uma história do funk”.

A produtora Furacão 2000 ganha importância na expansão do funk, preparando shows, CDs e hits. Em paralelo, começa a surgir nos morros um formato do gênero que retrata e exalta a realidade da favela, escancarando a violência, a criminalidade e a pobreza enfrentada nesses locais. Com a chegada do novo milênio, o “pancadão” estoura, atingindo então ouvintes de classe média e alta.

Por volta de 2010, ocorre a descentralização da produção carioca, surgindo em São Paulo o gênero “Ostentação”, que aborda em suas letras o consumo e a crescente aquisição de bens dos MCs, como são conhecidos os cantores desse estilo musical. É nesta fase que ocorre o desenvolvimento em plataformas audiovisuais, lançando nomes como o do diretor e roteirista brasileiro KondZilla, que apostam na produção visual. Para o produtor musical Alexandre Cocciolito, essa expansão no mercado pode ser explicada pelos temas retratados, “Quando chegou em São Paulo, o funk se tornou mais comercial, falando justamente das marcas. Foi um negócio que teve mais aceitação, porque não afrontava alguém ou um sistema, então ficou mais fácil de ser vendido”, aponta.

Se por um lado a voz do funk ganha espaço, por outro, ela incomoda. Em junho de 2017, o empresário Marcelo Alonso lançou um projeto legislativo, com 21.985 assinaturas de apoio, que tinha como objetivo criminalizar o funk, mas foi rejeitado pelo Senado Federal. Evento que revela as contradições envoltas no assunto presente na sociedade brasileira, que consome esse estilo de música ao mesmo tempo que o ataca. Mesmo que em 2009, pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, o funk tenha sido considerado como um movimento cultural histórico e de caráter popular, os MCs, DJs e o próprio público ainda enfrentam a estigmatização.

Muitas vezes o público que frequenta os bailes funks sofre com estereótipos. Um exemplo disso é Hellen Vitória, de 17 anos. Por aderir ao estilo desta cultura, é taxada por termos pejorativos, como “puta” e “drogada”. Mesmo com o preconceito, ela já participou da equipe de dançarinos de shows de funk.

“O crime já está aí há muito mais tempo do que o funk. Cultura é tudo aquilo que o corpo e a alma podem expressar. Se funk não é cultura, o que é cultura então?”, questiona MC Diki, que possui mais de 770 mil visualizações somadas em suas músicas no Youtube. Por ser um gênero musical que expõe o que é visto na realidade das periferias brasileiras, a sexualidade explícita, a criminalidade e a aquisição de bens como forma de superação são temas que incomodam a elite. “Daí vem o preconceito. Por ser um movimento da periferia e por conta das histórias que a gente agrega”, afirma, revelando sua própria experiência como MC. Para Diki, as principais mudanças sentidas com o tempo foram das temáticas abordadas no gênero: as músicas retratavam a realidade das comunidades periféricas, enquanto hoje são colocadas como foco as danças, festas e baladas.

Globalização

A partir do momento em que o funk toma proporções internacionais, como no recente exemplo da cantora Anitta, torna-se impossível colocar essa realidade embaixo do tapete. No que diz respeito ao reconhecimento e à valorização internacional, o Brasil toma consciência que o “batidão” está em vias de se igualar ao samba. Tendo o poder de influenciar e deixar suas marcas em um mundo globalizado. “Ver MCs indo para fora do Brasil, é como se fosse comigo, porque eu vivo o funk 24 horas do meu dia”, afirma com orgulho o DJ RB, de 20 anos, com o trabalho focado na produção musical do estilo desde 2010.

“Estou falando com uns cinco produtores lá de fora, que estão de olho no funk”, revela o produtor Cocciolito com o sorriso no rosto enquanto mostra uma lista de contatos no celular. Ele faz isso de uma casa simples localizada na Vila Esperança, bairro da Zona Leste de São Paulo, onde se pode escutar um som quebrando o sossego da vizinhança. Trata-se da produtora CP9, um estúdio caseiro. No segundo andar da casa existe um quarto que abriga um microfone, um computador e um teclado para habilitar os trabalhos da empresa criada e administrada pelo produtor.

Cocciolito trabalha em um cenário que tem crescido a demanda pelo funk no Brasil, principalmente pelo público jovem. Muitas vezes é requisitado a presença dos próprios MCs para compor o conceito do evento, proporcionado uma experiência maior e mais envolvente. Para o Grupo Toy, responsável pela produção de festas com foco universitário, apesar do funk ter nascido na periferia com o mundo conectado, todos têm acesso fácil a ele. O ritmo agrada diversos públicos, como os das festas que organiza, por ser um estilo musical mais ousado.

Com esse alcance, é gerado um mercado que promove a produção musical e o consumo deste estilo de música. As produtoras têm explorado ao máximo formas de ter lucro. A fácil adaptação aos cenários em que habita possibilitou a expansão do funk. Entretanto, com a chegada desta popularidade e com os olhos do mercado sobre este estilo de música, outros problemas devem ser levantados. Por ser um movimento cultural periférico que vem de lá até hoje, esse estilo carrega consigo os símbolos de uma luta por espaço, por voz e pelo simples direito de existir. “Deve-se criar uma consciência de um tipo de música independente” diz o produtor musical com experiência na área do funk Junior Santos.

Seu desenvolvimento representa a quantia de histórias e de vivências que as periferias possuem. Revela a hipocrisia de um País que está sendo representado culturalmente no mundo por uma população que é constantemente escondida e calada. Para o escritor Silvio Essinger, existem dois aspectos sobre essa expansão: o positivo, mostrando ao Brasil o que ele quer escutar; e o negativo, em que o País não quer ver a sua própria cara no espelho.