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Por Anna Capelli, Isabela Barreiros, Laura Okida e Marina Baldocchi Edição #63

“É preciso tirar a máscara”

A superlotação do sistema carcerário brasileiro revela a falácia de uma estrutura que não sabe mais qual sua real razão de existir

O jogo de baralho na companhia de um amigo foi interrompido para que Alcides Vieira colocasse outras cartas na mesa do bar. Aos 77 anos, impedido de trabalhar devido às dificuldades de locomoção, o homem vive com a ajuda da irmã e do Benefício Assistencial ao Idoso que recebe do Governo. Preso em 1975, enfrentou duas penas e 17 anos atrás das grades. Apesar de considerar que foi privilegiado durante a detenção por não ter cumprido pena em celas superlotadas, ele afirma que o sistema prisional brasileiro é medieval.

Como Vieira admite, sua história pode ser considerada exceção da regra observada nos presídios brasileiros. A realidade é um País que tem a terceira maior população carcerária do mundo, com 726,7 mil pessoas em situação de privação de liberdade ocupando as insuficientes 368 mil vagas oferecidas, segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), feito pelo Ministério da Justiça em junho de 2016. A pesquisa ainda considera 64% da população prisional formada por pessoas negras e pobres. Dados de 2014 do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) apontam que todos os estados brasileiros estão com seus presídios abarrotados: existem praticamente dois detentos para cada vaga.

À superlotação se soma a falta de profissionais da saúde atuando nas penitenciárias – de acordo com o Ministério da Justiça, apenas 1112 dos 8605 profissionais do setor registrados no sistema prisional do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) são médicos. Como consequência, 62% das mortes dentro dos presídios são provocadas por doenças, como HIV, sífilis e tuberculose, conforme apontam dados de 2014 do Ministério. Ricardo Gouvêa, defensor público na capital paulista, afirma que o cárcere em si é o motivo responsável por esses altos índices.

Os fatores que caracterizam a situação do sistema penal estão ligados ao desrespeito aos direitos humanos, ou seja, ao princípio de garantir aos indivíduos direitos que não devem ser invalidados pela sentença aplicada. “A gente não consegue tratar com dignidade essa pessoa presa. Nós realimentamos esse sistema”, afirma Gouvêa.

Confusão generalizada

“Aqui temos uma baderna, não tem sistema nenhum, não tem coisa nenhuma”, foi o que disse a desembargadora aposentada Luzia Galvão, de 73 anos, quando questionada a respeito da atual situação carcerária brasileira. De acordo com a Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo (SAP-SP), apenas seis dos 84 presídios do estado não são superlotados, o que resulta no caso de proliferação de doenças e revoltas prisionais.

Inicialmente, essa problemática parece ser o principal foco das reclamações por parte da população prisional. Segundo um levantamento do Depen, 40% dos 600 mil detentos estavam em prisão provisória, sem julgamento na primeira instância. Prisioneiros que aguardam o julgamento final contribuem para o excedente do limite de pessoas nas celas.

O ex-detento Leonardo Moraes Precioso, de 35 anos, dedicou sua vida ao esporte, chegando a jogar futebol profissionalmente em clubes grandes, como Corinthians e Palmeiras. Ao abandonar os campos, reencontrou alguns amigos da época de escola que estavam ligados ao crime e, por influência, envolveu-se com o tráfico de drogas. Foi preso em 2008 e permaneceu sete anos no cárcere, em sete centros de detenção diferentes.

“Morei em celas com espaço para 12 pessoas, mas vivemos por um tempo em 60”, relembra. A falta de recursos ligados à saúde, saneamento básico, alimentação e qualificação profissional estão entre as piores dificuldades no cotidiano dentro do presídio. Agora, Precioso cursa Educação Física e é coordenador de esporte do Gerando Falcões, franquia social que tem como sonho transformar as favelas do Brasil.

Outro problema é o alto número de casos de doenças infectocontagiosas nos presídios brasileiros. Entre a população brasileira no geral, são 33 casos de tuberculose para cada 100 mil habitantes, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Nas prisões, o número sobe para 932 a cada 100 mil habitantes, como aponta o levantamento de 2015 do Ministério da Saúde. A maioria das ocorrências se dão pela relação entre a doença e problemas com HIV, em consequência das falhas na imunidade das células do indivíduo, minimizando a capacidade de combate e controle da infecção tuberculosa. A combinação de superlotação, pouco espaço e ventilação, falta de higiene básica e medicamentos, assim como a negligência da assistência penitenciária de saúde leva ao que especialistas chamam de “morte silenciosa” no interior das prisões.

O agente de segurança penitenciária Leandro Pelloggia afirma que a lotação é um dos fatores que colaboram para a proliferação de doenças e contágio nas celas. Segundo ele, o que contribui para essa problemática é a falta de incentivos dos governos estaduais para os profissionais da área da saúde, já que o teto salarial desses postos é baixo. Como os presos não estão completamente isolados do mundo exterior, uma contaminação não controlada entre eles também representa um grave risco à saúde pública.

Já o desapoio da sociedade e a falta de iniciativa por parte do Governo são fatores que dificultam a melhora do setor. “Cadeia não dá voto”, alega a desembargadora Luzia Galvão. Assim, o dinheiro público não é aplicado no sistema prisional.

Além disso, a realidade das mulheres dentro dos presídios femininos deve ser considerada no debate. Karine Vieira, ex-detenta de 36 anos, alega que a diferença da realidade dos presídios masculinos e femininos pode ser atribuída à herança machista que persiste na sociedade. Ela acredita que o homem é privilegiado e relata que as carências específicas dos presídios femininos são de necessidades básicas e afetivas. Em uma audiência pública na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, em 2017, Petra Silvia, a coordenadora nacional para a Questão da Mulher Presa da Pastoral Carcerária (CNBB), denunciou a falta de material de higiene íntima nos presídios, como o racionamento de apenas três absorventes por mês para cada presa.

Vieira também é assistente social e fundadora da empresa social Responsa, que tem como foco promover a empregabilidade e capacitação de egressos. Ela conta que uma das dificuldades enfrentadas quando foi presa foi o afastamento dela de seu filho, fato que ilustra a realidade de muitas mulheres presas. Segundo o Infopen Mulher de 2014, 80% das internas são mães.

Desafios dos egressos

Emerson Ferreira, de 29 anos, ex-detento e criador do projeto Reflexões da Liberdade, que transforma pela educação a realidade de comunidades, afirma que ter passado pela prisão foi uma consequência de uma vida cheia de negativas. Condenado a uma sentença de oito anos por associação e crime de tráfico, hoje é psicólogo e atuante na área de Educação. “Resolvi ler todos os livros de Psicologia da prisão, mas foi difícil romper o crime e começar uma nova trajetória fora dele”, relata. Ele se empenha em ensinar os valores que, pela falta, o levaram à criminalidade, incentivando jovens da sua comunidade no município paulista de Embu das Artes a tomarem controle das próprias vidas.

A pesquisa do Infopen revelou que cerca de 75% dos detentos brasileiros não chegaram a cursar o Ensino Médio, 51% não concluíram o Fundamental e apenas 1% chegou a iniciar ou concluir o Superior. “Na prisão, percebi que eu realmente não tinha uma boa base educacional. Nunca tinha escutado sobre valores humanos, nunca tinha lido um livro por completo, não aproveitei e não evoluí muita coisa na escola”, manifesta Ferreira.

Uma vez que a pessoa é presa, suas oportunidades ficam muito mais limitadas. A assistente social Camila Cristina dos Santos afirma que a diminuição do índice de reincidência deve ser responsabilidade do sistema carcerário e da sociedade, que tem uma cultura que não facilita a ressocialização do egresso. Ela defende a necessidade de um ambiente justo e igualitário, de forma que isso seja refletido no sistema penal.

No entanto, para que a prisão possa servir como forma de ressocialização e “reparar” os danos prévios, é necessário apoio e auxílio de uma educação profissionalizante. Em 2010, as Diretrizes Nacionais para a Oferta de Educação para Jovens e Adultos em Situação de Privação de Liberdade nos Estabelecimentos Penais garantiram aos presos o direito à educação escolar. Mesmo assim, o Infopen mostra que apenas um presídio em cada dez tem acesso a esse tipo de atividade no Brasil.

Punições alternativas

“São necessárias maiores ferramentas de despenalização e de cumprimento de penas restritivas de direito em vez de penas privativas de liberdade, especialmente dos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à vítima”, alega o defensor público Ricardo Gouvêa. Tais infrações dizem respeito a furtos, crimes de trânsito e estelionatos, por exemplo.

A Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo informa em seu site que foram inauguradas 27 Centrais de Penas Alternativas entre 2011 e 2016, totalizando 68 em funcionamento no estado. Algumas das penas alternativas aplicadas pelo Governo são a prestação de serviços comunitários, a interdição temporária de direitos, a perda de bens ou valores e a limitação do fim de semana. As medidas podem ser aplicadas pela Justiça quando a pena for inferior a quatro anos, conforme determina o artigo 44 do Código Penal Brasileiro, ou quando o crime for culposo ou apresentar ausência de violência e grave ameaça.

“Essa lei [Lei nº 9.099/1995, que trata das penas alternativas] ajudou muito, só que possui falhas e não é aplicada em alguns casos”, aponta a advogada criminal Paula Vilela. De fato, é possível constatar certa inexatidão em sua aplicação. Em 2011, somente 20% dos casos julgados tiveram como punição as chamadas penas restritivas de direitos, como apontado por pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada).

Ricardo Gouvêa cita ainda que grande parte dos crimes que poderiam receber penas alternativas estão ligados ao tráfico de entorpecentes. Em 2006, a chamada Lei de Drogas (Lei nº 11.343/2006) passou por uma alteração com o intuito de traçar uma linha que diferenciasse usuário de traficante, sem descriminalizar o uso de drogas. Para Camila Cristina, enquanto não houver a legalização das drogas, o tráfico continuará sendo o crime responsável pelo maior número de prisões no Brasil – desde 2006, o aumento de pessoas detidas por essa infração foi de 339%, conforme apontam dados do próprio Ministério da Justiça. A Lei de Drogas, supostamente, colabora com a seletividade penal, visto que a classificação como usuário ou traficante fica a cargo, num primeiro momento, do policial e, então, do juiz.

A aplicação de penas alternativas para estes casos permitiria importantes reduções no número de presos. “É preciso tirar a máscara, assumir que tem muita coisa errada e que somos todos culpados por não termos nos importado antes. Muito pode ser resolvido em quatro ou cinco anos, mas é necessário começar”, diz a desembargadora Luzia Galvão.