Músicos do tradicional grupo de percussão de Santo André relatam as dificuldades de manter a existência da Banda Lira durante a pandemia
Há 103 anos, Santo André era o berço do progresso paulista. O capital do café trouxe consigo a capacidade de investimento em indústrias, a guerra, os imigrantes. Italianos, franceses, espanhóis, turcos e portugueses, a Europa toda fazia festa na região do ABC. Muitas famílias vinham com a ideia do regresso e várias nunca voltaram ao Velho Continente.
Uma dessas famílias foi a Madriano, por onde João veio ao mundo em 1942. João Madriano Filho, atualmente na casa dos oitenta, tem o mesmo nome de um dos fundadores da centenária Corporação Musical Lira, uma banda que possui somente instrumentos de percussão, sopro e metal. Este apreciador de gatos simpático e morador antigo da Vila Luzita conta como a Banda Lira é um dos últimos símbolos da época de ouro andreense, e como ela sobreviveu à “guerras, doenças, pandemias e instabilidades políticas”.
Construindo o legado
João é o integrante mais antigo da banda, está lá desde 1953, influenciado pelo pai. Atualmente, ele integra a tesouraria da corporação. Como membro de uma família italiana, o tesoureiro foi contando os hábitos dos mediterrâneos em Santo André. De acordo com ele, a Banda Lira começou justamente por causa dos imigrantes europeus: “Aqueles que ficavam na cidade, como sapateiros, advogados, médicos, sempre se encontravam nos domingos e faziam aqueles grandes almoços em conjunto; uns traziam macarrão, outros arroz, feijão e alguns traziam o conhecimento musical da Europa”.
João também lembra que a fama da banda começou da forma mais tradicional possível, através de apresentações gratuitas em batizados, aniversários e festas de casamento na região. Porém, foi com a chegada dos circos itinerantes que a banda se popularizou de vez na cultura andreense. E, em 1930, foi quando eles receberam um estatuto da prefeitura da cidade reconhecendo suas atividades.
João refaz na cabeça o mapa das diversas mudanças de locais de ensaio, que inicialmente era na Rua dos Napolitanos (atual Rua Santo André) e depois na Rua Coronel Oliveira Lima, onde ainda passavam carros – atualmente, essa rua se tornou um calçadão de comércio popular. Em ambos os locais, a banda foi expulsa por conta do barulho dos instrumentos. Foi só na década de 70 que os músicos se instalaram definitivamente no Parque Antônio Fláquer, o Ipiranguinha, possuindo uma construção feita propriamente para eles, onde são realizados os ensaios até hoje.
Para João, a longevidade da banda vem do companheirismo entre os membros e o tratamento igualitário a todos. O maestro, que estava presente na conversa, demonstrou tom de concordância com a fala do tesoureiro. Como tocador de trombone em São Bernardo, Claurício Cypriano, 85 anos, só foi integrar definitivamente a Banda Lira em 1993, e diz não se arrepender. Segundo ele, todos os integrantes são como uma família; implicando as relações tortuosas que envolvem o meio familiar, que nem sempre é feito apenas de sentimentos positivos.
João relembra de várias histórias relacionadas as brigas, que são necessárias dentro de um ambiente fraternal. Depois de brevemente se distrair com a presença de gatos na sala (era possível ver cinco: três siameses, um “tigrinho” e um preto), o senhor começou a falar de diversos nomes como se estivessem próximos do nosso tempo: Fioravante Zampol, Pedro Dell’Antonia, Lincoln Grillo; todos prefeitos de Santo André que tiveram muito envolvimento com a banda. Dell’Antonia, inclusive, chegou a integrar a Companhia antes de ser prefeito, mas foi expulso depois de roubar um travesseiro em uma estalagem de São Paulo, quando os músicos iam para o interior do estado fazer uma apresentação.
A pandemia
Porém, essa história teve que mudar no último ano. O símbolo andreense viu suas fontes de renda sumirem com a restrição dos eventos presenciais. Além do mais, por terem métodos extremamente tradicionais, a maioria dos membros dependia quase que exclusivamente das apresentações contratadas pelas prefeituras de Santo André e cidades do interior. Por mais que o grupo fosse reconhecido no país pela sua excelência, inclusive pelo cineasta Amácio Mazzaropi, que convidou a banda para uma aparição em um de seus filmes, a pandemia abriu precedentes para a precarização da situação dos músicos.
Caio Augusto de Carvalho, 49 anos, atual secretário de cultura de Santo André, recebeu constantes ligações de Seu João durante os dois semestres de 2020. A maioria eram para entender a situação da liberação de verba pela Lei Aldir Blanc de apoio à cultura. As ligações tinham frequência quase que diária, mas Caio diz que nunca se sentiu incomodado pela quantidade de chamados.
Durante o ano de 2020, Seu João conseguiu articular junto à prefeitura uma forma de sustento dos músicos mais necessitados enquanto a verba da Aldir Blanc não era liberada. Foi assim que todo mês, até outubro, cestas básicas foram entregues para que os membros tivessem o mínimo de dignidade necessária.
Apesar das dificuldades, o tesoureiro vê o ocorrido de forma positiva. Como grande parte dos membros regulares da banda são aposentados com, em média, 75 anos, as cestas básicas fizeram com que esses senhores fossem valorizados por suas famílias. De acordo com ele, “muita gente perdeu o emprego na pandemia. Essas cestas foram vitais para o sustento de filhos e netos”. João ainda lembra que muitos dos músicos iam buscar as doações com lágrimas nos olhos.
No fim do ano passado, a banda só pôde se enquadrar nos requisitos da lei ao se adaptar para o online, assim como outros setores tiveram que fazer. Apesar de nunca terem tido essa experiência com o mundo virtual antes, os músicos tiveram de começar a fazer apresentações virtuais e gravadas, além de treinos em conjunto por telefone.
O próprio maestro Claurício ficava três dias por semana disposto a ajudá-los com qualquer coisa que precisassem. Apesar dele não estar acostumado com esse formato de treino, conformado, disse que não tinha outra saída. “Fazer o que? Era isso ou nada”, desabafa o maestro.
Antes da pandemia, a Banda Lira tinha um projeto social que levava música para as áreas mais carentes da cidade, algo introduzido por Claurício quando se integrou a banda e que ele pretende dar continuidade quando a crise passar. “Nós íamos para as escolas e tocávamos instrumento por instrumento. As crianças falavam ‘Ah, quero ouvir esse’ ou ‘Ah, quero ouvir aquele’. Nós passávamos o dia todo em uma escola, porque as crianças se interessavam”, apesar de coberto pela máscara, o maestro se curva e diz com uma expressão alegre.
Maestro Claurício também lembra das apresentações que fazia no parque todo último domingo do mês, bem como àquelas em que eram convidados pela prefeitura. Apesar do trabalho para o preparo, ele diz que “todos continuam animados” para quando tudo isso puder ser feito novamente.
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A resiliência da Banda Lira
Mesmo com os obstáculos impostos pela pandemia, não é como se a banda estivesse desacostumada a passar por momentos difíceis. Na sede da corporação, a queda dos relógios de energia fez com que os banheiros, o almoxarifado e a sala da administração estejam, atualmente, sem luz. Contudo, ninguém é pago para realizar a manutenção da construção, já que esse trabalho é incorporado pelo maestro.
“Eu sempre chego às três da tarde aqui. Tenho que limpar a calha e ajeitar as coisas”, diz Claurício que, apesar dos seus 85 anos, olha o trabalho com uma realização singular: “Sabe, as vezes eu acho que fazer essas coisas me ajuda a me manter bem”.
Apesar de todas as dificuldades de ter que cuidar da manutenção do local da banda, no caso de Claurício, e com todo o estresse de arranjar verba para os músicos, no caso de João, para eles, a música traz o conforto da alma, e não é difícil entender o porquê.
Em meio à pandemia, 20 pessoas dentro de uma sala pode parecer um universo alternativo. Mais da metade dos presentes já está vacinada e apenas quatro pareciam ter menos do que 40 anos. Haviam pessoas de todos os formatos, cores e tamanhos, o que mostrava o clima inclusivo da localidade. A música era afinadíssima, com trompetes dançando gentilmente sob a melodia construída pela bateria, saxofones, clarinetes e trombones. Os que tocavam passeavam por diversas localidades musicais: jazz, clássico, bossa e o pop. Tudo sob o comando do maestro, que indicava o número da página para todos: “56”, “103”, “69”, sempre com um tom de alegria ímpar.
Todos pareciam muito inclusivos; Anselmo, mestre com 20 anos de experiência no saxofone, exibia suas habilidades enquanto se preparava para o treino. Alândio, morador da Vila Humaitá conhecido como Bahia, é encarregado de um dos solos da ala dos trompetistas, mas nem por isso deixa de notar o interesse das visitas pelos instrumentos ou se sente pressionado. Não demora muito para que quem esteja lá já se sinta parte da família e queira voltar para ver tudo aquilo mais uma vez.
A pandemia pode ter parado diversas vidas, mas não o show. A Banda Lira continua treinando para viver em um futuro distante, que ninguém sabe quando chegará. Porém, essa fé inabalável é o que movimentou o grupo por 103 anos, atravessou guerras, epidemias, regimes antidemocráticos e, mesmo assim, manteve-se firme e forte.
Em bom tom, as oito e meia da noite, antes de declarar encerrado os treinos do dia, maestro Claurício apaga as luzes que ainda funcionam do local e vai fechando as portas. “Eu vejo o dia que as lâmpadas do prédio vão todas apagar e a gente vai ter que treinar ali, embaixo das árvores. Mas, fazer o quê? O que importa é que não podemos parar”, conclui o maestro.