“Faz escuro mas eu canto”: conheça o projeto curatorial da 34ª Bienal Arte de São Paulo - Revista Esquinas

“Faz escuro mas eu canto”: conheça o projeto curatorial da 34ª Bienal Arte de São Paulo

Por Carolina Azevedo : outubro 25, 2021

Pôsteres da 34a Bienal. Foto: Carolina Azevedo/Revista Esquinas

Curadores da mostra explicam processo de escolha das obras da Bienal deste ano e as reflexões propostas pela exposição no contexto pandêmico

“Faz escuro mas eu canto”. Esse é o enunciado da 34ª edição da Bienal de Arte de São Paulo, que acontece desde 4 de setembro no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, do Parque Ibirapuera. Além da mostra, que havia sido adiada para o fim de 2021 por conta da pandemia da covid-19, exposições e performances espalhadas por mais de 25 instituições culturais ocorrem na capital paulista desde 2020.

A Bienal de São Paulo está entre os principais eventos artísticos mundiais e existe desde 1951. A maior exposição de artes do hemisfério sul ocorre a cada dois anos na cidade e contempla obras novas e antigas da arte contemporânea nos mais variados formatos e estilos, reunindo, em média, 500 mil visitantes a cada edição, além de artistas do mundo todo.

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Enunciado da 34a Bienal.
Carolina Azevedo

O enunciado desta edição faz parte de um verso de um poema de Thiago de Mello, poeta amazonense reconhecido como um ícone da literatura regional brasileira, sobretudo durante o período da ditadura militar. Segundo Paulo Miyada, arquiteto formado pela USP e curador do Instituto Tomie Ohtake e da 34ª edição da Bienal, o trecho foi escolhido pelo grupo de curadores como forma de representar a ideia geral da exposição.

Retirado do poema “Madrugada Camponesa”, de 1963, e reproduzido por Nara Leão como canção em 1966, a frase “faz escuro mas eu canto porque a manhã vai chegar” diz respeito à luta em um momento de escuridão e ao sussurro de esperança. A ideia do texto é transposta da década de 1960 para os dias de hoje, questionando qual seria o “escuro” e o “canto” da atualidade.

O projeto curatorial da Bienal

O projeto curatorial desta edição da Bienal teve como objetivo “pensar as obras de arte como algo permeável às relações que estabelece com aquilo que circunda”. Por isso, foi decidido que a mostra seria difusa no tempo e espaço. Isto é, a Bienal, na prática, acontece desde o início de 2020, com exposições e performances isoladas que se encontram na exposição conjunta, no Pavilhão da Bienal, neste fim de ano.

A ideia foi desenvolvida desde 2019 por um grupo de curadores composto por Jacopo Crivelli Visconti, Francesco Stocchi, Ruth Estévez, Paulo Miyada e Carla Zaccagnini. Como explica Paulo, o processo de curadoria da Bienal teve início em 2018, com a eleição da diretoria executiva de José Olympio da Veiga Pereira, responsável pela escolha do projeto proposto por Jacopo Crivelli Visconti, curador geral dessa edição.

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Regina Silveira, Dilatáveis: Os Grandes (1981).
Acervo Pessoal / Carolina Azevedo

Segundo Carla Zaccagnini, artista e curadora convidada desta Bienal, a ideia do projeto surgiu de fato quando os cinco curadores se reuniram pela primeira vez, unidos de acordo com “as diferentes habilidades e pontos de vista” que interessavam Jacopo, cada um com cerca de dez artistas e obras que achavam relevantes hoje. A partir desse conjunto, foram-se levantando “palavras, ideias e preocupações, elencando então os interesses” do grupo.

Paulo lembra que trabalhar “sem um ponto de partida mais objetivo e temático” foi um desafio, mas que essas leituras coletivas do Brasil atual ajudaram na criação de diálogos potenciais entre artistas muito diferentes.

“Talvez se tivéssemos começado por um tema a gente já tendesse a resolvê-lo dentro de certa identificação preestabelecida, porque já existe uma ideia sobre que artistas lidam com esses assuntos. Como a gente não partiu disso, fomos vendo assuntos emergindo das obras e conexões aparecendo entre artistas que nunca foram pensados juntos porque vêm de lugares tão diferentes”, diz.

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Mauro Restiffe, Empossamento (2003).
Acervo Pessoal / Pedro Vidal

Conexão entre as obras

Mas como é possível juntar artistas de origens, lugares, histórias e artes tão diferentes em uma única exposição? Para Carla, a partir dos encontros entre artistas e da elaboração de determinados enunciados coletivos, é criada uma “linguagem em comum”, que comunica “quais eram esses problemas que a Bienal deveria endereçar”.

A forma usada para conectar as obras, no entanto, foram elementos que, segundo Paulo, “transbordam o campo da arte contemporânea: objetos, documentos, filmes e artefatos”. Uma gama variada de objetos carregados de história que condensam os problemas levantados durante as discussões. Para Carla, são eles que funcionam como imãs, “informando a leitura das obras ao seu redor”.

Entre eles, estão três objetos que sobreviveram ao incêndio do Museu Nacional. “De alguma maneira, vão falar sobre como é resistir, sobreviver a um trauma”, diz Carla. Há também o sino de Ouro Preto, que tocou em dois momentos distintos da história, mas que, na mostra, simboliza a ideia de memória. De acordo com a curadora, o sino, ao lado de obras como “Carne” e “Presunto”, de Carmela Gross, que aludem aos mortos da ditadura, recebem uma ressignificação ao refletirem o momento atual.

“O que nós queremos é que cada um desses enunciados possibilite a leitura das obras. Ao invés de escrevermos um texto relacionando as obras, a ideia é que isso seja feito de uma maneira colaborativa entre público e arte, percebendo que o presente não existe separado do passado”, explica Carla.

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Os retratos de Frederick Douglass (1841-1895)
Acervo Pessoal / Carolina Azevedo

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Missão da 34a Bienal de Arte

A partir disso, a 34a Bienal busca se comunicar com o público através de obras que, apesar de não serem sobre a pandemia ou o momento atual, fazem analogias a ele, já que são circundadas por esse contexto. Segundo Paulo, os enunciados funcionam como “pontos de conexão para que as pessoas possam fazer pontes entre o que elas estão vivendo e o que está na exposição”.

Em um contexto de especial incerteza, Paulo diz que a Bienal tem como missão “mostrar que a arte pode se fazer e se apresentar perante o conflito e a ameaça,” além de “afirmar que a arte não se torna menos pertinente nesses contextos, mas até mais, pois ela oferece uma maneira de existir nesse momento desafiador e conflituoso.”

“Há uma ênfase de que é preciso reconhecer onde nós estamos. Mas isso não torna a arte irrelevante, ela continua tendo um papel e ela pode oferecer algo nesse momento”, pontua.

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Paulo Kapela, Sem título.
Acervo Pessoal / Carolina Azevedo

Enfim, Paulo diz que o “canto” que deve ser ouvido nesta Bienal é o dos artistas que escolheram se expressar apesar de forças de silenciamento e ameaça, mas também o do próprio público. Ele enfatiza o valor de espaços que, como a Bienal, promovem o encontro e o compartilhamento de diferentes experiências sobre os mais diversos momentos e lugares.

A entrada para a 34a Bienal de São Paulo é gratuita e exige comprovante de vacinação. Até 5 de dezembro de 2021, além da exposição coletiva, ocorrem eventos e performances cujas datas podem ser encontradas no próprio site da Bienal.

Editado por Julia Queiroz.

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