"Descompasso entre ética e política": entenda as implicações do uso da cavalaria pela PM - Revista Esquinas

“Descompasso entre ética e política”: entenda as implicações do uso da cavalaria pela PM

Por Pietra Sábia : julho 14, 2022

A utilização da cavalaria pela Polícia Militar no Brasil prossegue desde o começo do século XX e levanta debates por membros de movimentos anti-especistas, defensores da libertação animal

No estado de São Paulo, a cavalaria da Polícia Militar se institucionalizou em 1892, com a criação do Regimento da Polícia Montada “9 de julho”, no bairro da Luz. Legitimou-se, assim, o uso de cavalos para o auxílio da proteção da propriedade territorial do Estado. Hoje, os cavalos são requeridos para determinados tipos de policiamento, como “em terrenos acidentados, que viaturas motorizadas têm difícil acesso, em aglomeração de pessoas como shows e jogos de futebol” exemplifica o militar aposentado da cavalaria da PMESP, Adilson Santi.

“Os cavalos não estão lá para ter uma boa vida, mas sim porque foi decidido que é importante que a patrulha da PM esteja montada a cavalo”, afirma Karynn Capilé, filósofa, veterinária e doutora em Bioética. Tendo em vista a ética animal e a pesquisa já desenvolvida a respeito da senciência – capacidade de se perceber no mundo e sentir, possuída pelos cavalos -, os defensores dos direitos animais afirmam que, apesar de colocar a disposição tratamento veterinário, alimentação e remédios, a Polícia Militar instrumentaliza, explora e promove o sofrimento animal. “Eles não têm valor por si mesmos, mas porque servem para algo. Esse tipo de atribuição moral e social implica uma grande vulnerabilidade”, completa Capilé.

Para servir à Polícia Militar, os cavalos são submetidos, a partir dos 4 anos, à Doma, um treinamento inicial no qual são adestrados e aprendem a lidar com os policiais. Os animais são numerados, hoje, a frio, utilizando nitrogênio, para identificação. No passado, a numeração era feita a quente, com o uso do ferro.

A partir dos 6 anos, inicia-se o treinamento nas ruas, momento em que os animais são expostos a sons de tiro, de bomba, ao fogo e a armas, cenários com os quais lidam durante as atividades de montaria. Quando os militares os consideram maduros, começam a trabalhar nas patrulhas.

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Cavalaria da Polícia Militar na Av. Paulista. Foto: Pietra Sábia / Revista Esquinas
Pietra Sábia / Revista Esquinas

Renato Almeida, que opera os cavalos da PM nos Estábulos do Parque da Água Branca, na capital paulista, afirma que os animais passam, em média, 30 minutos no “banho de sol” e 4 horas na patrulha policial. No restante do tempo, permanecem nas baias individuais.

Os cavalos utilizados pela PM são da raça Brasileiro de Hipismo e advém do convênio entre a instituição estatal e o Instituto de Zootecnia da cidade de Colina, e a preferência é pela pelagem castanha, alazã ou preta.

O ideal por trás da cavalaria

Na concepção de Kauan Willian, fundador do coletivo antiespecista AntarVegan e doutor em História Social pela USP, o uso dos cavalos pela polícia é a manifestação histórica da prática da dominação estatal: “As primeiras civilizações queriam dominar a natureza e toda a sua extensão. Os estados se legitimaram em cima da dominação de tudo que ele considera mais fraco nesse ideário”.

Karynn Capilé também aponta o significado simbólico que se manifesta por trás da imagem da montaria. “Um dos objetivos da cena é passar a imagem de imponência, força, domínio, combate, formação militar, o que reforça a ideia de animais como instrumentos”, afirma a veterinária.

Acerca do objetivo que se tem no uso dos cavalos, Adilson alega que a Polícia Militar acredita na  “ostensividade e na sensação de segurança passada, visto que é um animal forte e robusto”. É a partir desse valor simbólico, o qual a cavalaria quer comunicar, que o aposentado da PMESP faz a defesa do uso dos animais: “o cavalo é um amigo que não vai te deixar na mão. É muito melhor que estar numa viatura motorizada”.

A Polícia alega, ainda, que a utilização dos cavalos é pensada para aproximar os indivíduos do animal: “faz as pessoas se aproximarem da polícia, às vezes, não querem chegar no policial porque pensam que vai ser ríspido, mas quando veem o cavalo, o pessoal quer passar a mão no animal. Aí conversam, perguntam e veem que o policial não é agressivo ou ignorante”.

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A partir de uma análise histórica, Kauan Willian recapitula a presença de cavalos em quadros como “sinônimo de poder e nobreza”. A exemplo, o historiador menciona as obras Napoleão cruzando os Alpes, de Jacques Louis David, Independência ou morte e Batalha de Avaí, ambos de Pedro Américo e A Batalha dos Guararapes, de Victor Meirelles.

O significado simbólico do uso dos cavalos pela polícia também é explicitado pela doutora Karynn Capilé: “Uma das mensagens que se absorve diante dessa cena é não apenas de que é ok usar os cavalos como instrumentos, como também é bonito e respeitável”.

Hoje, em comparação com a época a qual foi institucionalizada a cavalaria, tem-se um avanço dos estudos no campo da ética animal, desenvolvidos por filósofos, cientistas e pensadores, como  Tom Regan, Carol Adams, Peter Singer e Richard Ryder. Tais estudos não são levados em conta pelo Estado brasileiro, que continua permitindo o uso dos cavalos pela Polícia Militar. Há um “descompasso entre ética e política”, conclui a doutora Karynn Capilé.

Editado por Nathalia Jesus

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