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Por Letícia Furlan, Mariana Marvao e Ana Clara Muner, Bárbara Muniz, Claudia Ratti, Luisa Panza, Thaís Torres e Ana Clara Muner Edição #59

Lar, violento lar


No Brasil, a cada dois minutos cinco mulheres são vítimas no ambiente doméstico

A primeira impressão que a 2ª Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) da cidade de São Paulo passa é de intimidação e falta de acolhimento. Perto da porta de entrada há um balcão grande onde vários funcionários atendem as vítimas. O local, com pouca iluminação, é dividido em setores: a primeira parte é um espaço comum, destinado a todos os tipos de crime. Somente passando pelo corredor é que chegamos à DDM, separada por salas de atendimento. Também encontramos uma área com diversos brinquedos para crianças — as Delegacias da Mulher também atendem crianças e adolescentes de até 18 anos — a maior parte filhos que acompanham suas mães para prestar queixa ou, em alguns casos, também vítimas da violência doméstica.

Após fazerem denúncias, as mulheres esperam em um assento de concreto junto à parede. Em nossa visita ao local, durante a semana,  no período da tarde, presenciamos uma mulher aos prantos que aguardava, sem qualquer tipo de amparo ou cuidado. A cena parecia ser corriqueira. Conduzidas até a sala da delegada responsável pela DDM, o boletim de ocorrência é feito e, dessa forma, iniciado o processo legal. Celi Paulino Carlota, titular da 1ª DDM de São Paulo, explica que as Delegacias da Mulher têm preferencialmente profissionais do sexo feminino como responsáveis por esse primeiro atendimento. Apesar disso, existe uma grande quantidade de policiais homens nesses espaços. A delegada Jacqueline Valadares, encarregada pela 2ª DDM, afirma que isso não intimida as vítimas e não faz tanta diferença no atendimento, pois todos os policiais civis, de ambos os sexos, são orientados a como lidar com os casos de violência. Ela ainda garante que muitos homens conseguem deixá-las mais à vontade que algumas policias mulheres. No entanto, Celi Paulino ressalta que, apesar do treinamento que os profissionais recebem, muitos reproduzem machismos, o que resulta em um mau atendimento. Ela acredita que operadores do direito, como juízes e advogados, também precisam ser capacitados para essas situações. Mais do que o treinamento, é imprescindível que os profissionais aceitem e escutem a mulher, sem julgá-la, para que a encaminhem a uma equipe multidisciplinar, pela qual é oferecido o devido auxílio psicológico à ela e aos filhos. Neste momento, a ideia é que a vítima consiga romper a relação com O agressor, muitas vezes sendo inesperadamente este o próprio companheiro ou parente próximo.

Segundo dados de 2014 da Central de Atendimento à Mulher, mais de 80% das agressões contra mulheres são cometidas por homens com quem elas têm ou tiveram algum vínculo afetivo. Ana*, 27 anos, vítima de violência doméstica, encaixa-se nesse perfil. Aos 19, foi espancada todos os dias no período de uma semana por Pedro*, seu ex-namorado, dois anos mais velho. “Foram chutes e socos em uma sequência tão rápida que eu não conseguia me defender”, relata sobre a primeira agressão que aconteceu após mais uma briga corriqueira do casal.

“Sempre falei para mim mesma que nunca sofreria qualquer tipo de agressão vinda de um homem. Achava que sim, em certos casos o cara é um escroto, mas em partes, se acontecesse, a culpa era da menina que deixou. Mas não, não é bem assim. Quando me vi já estava no meio daquilo tudo, e o pior, é que o motivo da discussão foi esquecido.

Nós estávamos namorando havia dois anos, e estávamos quase morando juntos na casa dele. Certo dia ele quis sair com os amigos, ir ao bar da esquina. Como eu tinha aula no dia seguinte, fiquei dormindo.

Por volta das quatro da manhã acordo e vejo ele sentado ao meu lado com o meu celular nas mãos. Notou que eu estava acordada e começou com os xingamentos de baixo calão. Perguntei o que estava acontecendo e visivelmente ele estava totalmente embriagado, sabe-se lá que outras drogas havia consumido, mas uma certeza era que não havia nenhum motivo, ou qualquer infidelidade da minha parte, porque eu realmente gostava dele.

Quando me sentei, ele arremessou o celular longe, na vigésima vez que me chamou de puta e passou a me chacoalhar pelo braço, eu chorava e, para ele parar, dei um tapa na boca dele. Naquele breve silêncio, percebi que deveria apenas ter ido embora. Ele devolveu o tapa. Mas, existe uma diferença da mão masculina para a feminina. Não conseguindo me conter o empurrei, ele veio com a mão no meu pescoço e me jogou contra a cama, o chutei com todas as forças que tinha. Consegui me soltar e me virei de barriga para baixo em posição fetal, quando ele me deu três socos na nuca.

A tia dele, que morava na casa da frente, ouviu o estardalhaço e veio bater na porta. Nesta hora ele parou. Eu me levantei e corri para a porta. Ele me alcançou, me segurou pelos braços e continuou me xingando, dizia que eu ia ficar lá e que se fosse embora era para nunca mais voltar. Por fim, fui embora direto para a delegacia, onde ele foi sentenciado de acordo com os termos da Lei Maria da Penha. Depois de três semanas e muitos pedidos de desculpa, a gente voltou. Hoje não namoramos mais, mas continuamos a ficar de vez em quando.”

          Maria*, 21 anos, estudante e vítima de violência doméstica

A delegada Celi Paulino acredita que investimento em educação e cultura seja essencial para o empoderamento feminino, pois assim, mulheres como Ana* conseguiriam denunciar o agressor à polícia logo no primeiro empurrão. Infelizmente, esse não foi o caso. A violência contra ela intensificou-se, chegando de o agressor deixá-la presa no banheiro por dias. “Eram chutes de bota em uma mulher nua de 45 kg, eu quicava entre a louça da privada e a da pia” relembra. O ciclo de agressões foi rompido graças a Ana*, que fugiu de Pedro*, apesar de não conseguir  reconstruir sua vida. “Não houve denúncia e até hoje me sinto impotente”, lamenta. Ela quebrou o silêncio pela primeira vez durante esta reportagem, sua família e amigos mais próximos não sabem o que aconteceu durante aquela semana. Esse é um comportamento comum por parte das vítimas, segundo um estudo realizado pela Organização Mundial de Saúde (OMS): cerca de 20% das mulheres agredidas fisicamente pelo marido no Brasil permanecem em silêncio.

É preciso meter a colher, sim!

Pesquisa realizada pelo Data Senado em 2015  revela que, a cada dois minutos, cinco mulheres são agredidas no Brasil. Celi explica que apesar da excelência da Lei Maria da Penha no papel e no trâmite, esses números continuam altos. “Não se muda a mentalidade com lei”, declara. Dados do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) de 2013 revelam que entre a população, 54% conhecem uma vítima que já foi agredida por um parceiro e 56% conhecem um homem que já agrediu uma parceira. Logo, concluímos que a violência doméstica está presente no cotidiano da maior parte dos brasileiros e que não existe, portanto, um perfil para vítima ou agressor. Celi ressalta que é comum o pensamento errôneo de que apenas pessoas alcoolizadas ou drogadas agridem mulheres, quando, na verdade, as drogas psicoativas só agem como dispositivos que potencializam o agressor. “Existem homens de terno e gravata que batem em mulheres,’’ afirma.

Tales Furtado, de 29 anos, é psicólogo  e atende grupos de homens que já praticaram esse tipo de violência. Ele concorda que não há algo que diferencie os agressores, que homens comuns são os que a praticam, ‘‘Os frequentadores [do grupo] são uma amostra dos homens da sociedade. O que os difere é apenas um boletim de ocorrência nas costas. Grande parte deles chegam muito bravos e se sentindo injustiçados frente à Lei Maria da Penha. Acham que xingamento não é violência e que revidar fisicamente pode.’’

Além da violência física, existem mais quatro tipos de agressão doméstica: patrimonial, moral, psicológica e sexual. Segundo a delegada Jacqueline Valadares, os casos mais comuns são de violência física, sexual e moral. Júlia*, de 29 anos, mora com a família, onde ela e sua mãe sofrem, há cerca de um ano, agressões morais e verbais vindas de seu pai. Meses atrás, ao reagir aos xingamentos, foi violentada fisicamente. “Foi por reagir que eu apanhei, ele [o pai] extrapolou e bateu na minha cara”, conta. Assim como Ana*, ela não recorreu à Lei Maria da Penha, sancionada em 2006, que tem como principal objetivo proteger as mulheres contra crimes ocorridos no ambiente doméstico.

Jacqueline explica que a Lei Maria da Penha não prevê novos crimes, mas sim, modos de tratar os já existentes quando ocorrem no âmbito do lar. A rigidez também é uma característica da lei. Por exemplo, quando uma vítima faz um boletim de ocorrência relatando lesão corporal, esse processo será levado adiante independentemente da vontade da vítima. “Mesmo que essa mulher perdoe o autor, o Estado não perdoa”. O psicólogo acrescenta um motivo recorrente para as mulheres muitas vezes perdoarem seus agressores, “Elas, infelizmente, ainda dependem financeiramente dos homens, é o antigo ‘ruim com ele, pior sem ele’. Seu espaço sempre foi o privado, de cuidar da casa, dos filhos. E dos homens sempre foi o público, de trabalhar e viver na rua.”

A culpa não é da mulher

Em 9 de março de 2015 entrou em vigor a Lei do Feminicídio que classifica a violência doméstica e familiar como homicídio qualificado em razão do gênero feminino. A nova lei torna a punição pelo crime mais rigorosa, com pena de até trinta anos.

Um estudo realizado pela Agência Patrícia Galvão — ONG que atua na produção de notícias sobre os direitos das mulheres — divulgou que, no primeiro trimestre de 2015, de todas as denúncias feitas na Central de Atendimento a Mulher, o risco do feminicídio esteve presente em mais de 30% dos casos. Assim como a Lei do Feminicídio, para a Lei Maria da Penha ser aplicada, o crime deve ter sido cometido em razão do gênero feminino da vítima.

No entanto, mais do que leis, a mudança desse cenário depende também de reconhecer o machismo como algo estrutural, e não natural da sociedade. A mulher ainda é apresentada como ‘‘culpada’’ e não é estranho ouvir expressões como “O que a senhora fez para ele te bater?”.

Em 2013, o IPEA realizou uma pesquisa na qual 63% dos entrevistados concordaram total ou parcialmente que “casos de violência dentro de casa devem ser discutidos somente entre membros da família”. Essas formas de silenciamento impedem que se entenda, de uma vez por todas, que violência não deve existir nem mesmo entre quatro paredes.