O tema “Democracia, futebol e trabalho: o Futebol na Modernidade” guiou a conversa entre os comentaristas e outros convidados do centro acadêmico
Na semana comemorativa do aniversário do centro acadêmico 22 de Agosto, da Faculdade de Direito PUC-SP, uma discussão sobre as nuances da relação entre futebol, jogadores, economia e política foi compartilhada com dezenas de alunos.
Como convidados para debater sobre os assuntos, a organização convocou o ex-jogador de futebol e, atualmente, comentarista do UOL, Walter Casagrande Júnior; o jornalista e, também, comentarista, Mauro Beting; além de contar com a presença do professor e vice-presidente da Academia Nacional de Direito Desportivo (ANDD), Paulo Sérgio Feuz, e Luiza Cardoso Parreiras, advogada e coordenadora do futebol feminino do América-MG.
O movimento das SAFs e a manutenção da cultura
A Sociedade Anônima do Futebol, a SAF, é um modelo em que a iniciativa privada se torna dona majoritária das ações de um clube, cujo modelo era de associação. O intuito dessa transformação é profissionalizar a maneira como os clubes são administrados financeiramente.
Casagrande iniciou o debate sobre esse novo modelo de administração com um alerta. Para ele, por mais que as empresas ajudem os clubes a sanarem suas dívidas, há um descaso com ex-jogadores e funcionários do clube. “Eu tenho uma preocupação com as SAFs: nós teremos que nos habituar a torcemos para uma empresa. E ela não pode salvar o time de futebol e deixar os funcionários sem receber, como ocorre no Cruzeiro”. Clique aqui e veja mais sobre a situação do Cruzeiro.
Casão ainda compara essa situação com a realidade da sociedade brasileira: “Na arquibancada, em todos os jogos tem homofobia, racismo, machismo, agressão à mulher. E as pessoas estão preocupadas com o resultado e a arbitragem”.
O jornalista Mauro Beting destaca que as SAFs são, hoje, uma evolução no futebol brasileiro. “Eu prefiro que chegue um americano aqui e ponha dinheiro no clube, do que os safados que se dizem torcedores, tiram dinheiro dos clubes e depois viram deputados”, explica ele.
Embora acredite que seja uma evolução positiva para o esporte, ele faz dois alertas: a necessidade de manter a identidade do clube e de evitar a gentrificação e elitização nos campos de futebol. “Você pode até comprar nosso time, mas não pode comprar nossa alma e nossa história”, conclui.
Focando em sua área, que é o futebol feminino, Luiza Parreiras lamenta que a modalidade não foi incluída na obrigatoriedade dos contratos da SAF. Isso ocorre muito por conta de sua instabilidade e por não gerar receitas aos clubes. Porém, como na Europa esse cenário já é diferente, ela defende que “os investidores que vêm dos grandes clubes europeus têm procurado os times brasileiros pensando no futebol feminino como algo que agrega valor ao investidor”.
Por fim, Feuz arredonda a discussão esclarecendo que, mesmo os clubes que não são Sociedades Anônimas necessitam gerar lucro. Logo, em sua visão, esse controle empresarial nos times pode ajudar a trazer investimentos e diminuir as dívidas. “Antigamente, os clubes eram a forma de lazer das pessoas e, com isso, cativou essa paixão. Assim, a transformação em SAF, que vai acontecer naturalmente, tem que ocorrer com equilíbrio e responsabilidade”, finaliza o professor.
Posicionamento político e a Lei Geral do Esporte
“O esporte é relacionado com a política desde quando existe os dois. Todo jogador nasce como cidadão brasileiro primeiro. E, atualmente, os atletas estão esquecendo que são cidadãos brasileiros”, inicia Casagrande, participante do movimento Democracia Corinthiana, em 1982.
Houve, há algumas semanas, uma onda de protestos de jogadores de futebol, alegando que não foram ouvidos sobre uma mudança na Lei Geral do Esporte. Sobre isso, Casão critica a falta de atitude dos atletas, sobretudo por se calarem quando não estão envolvidos na causa: “Quando atinge os direitos trabalhistas dos jogadores, eles põem a mão na boca e reclamam que ninguém os consultou. Mas, a sociedade consulta-os sobre a situação atual do nosso país e ninguém se manifesta.”
E, para o ex-jogador, essa falta de posicionamento distancia ainda mais esses atletas dos brasileiros, causando, por exemplo, desinteresse das pessoas com a Seleção. “O que nós vamos lembrar dos jogadores atuais se não ganharem o Hexa? Ganhando ou perdendo, essa mancha (de passividade) já está na história desses caras”, comenta.
Assim como o ex-jogador, Mauro argumenta que os jogadores brasileiros poucas vezes se manifestam. “O movimento do Bom Senso, lá em 2014, foi uma forma de manifestação. Porém, era formado por ex-atletas ou jogadores em fim de carreira, por isso que não deu muito certo”, exemplifica o comentarista.
Ao contrário do Bom Senso, a Democracia Corinthiana foi um movimento que ia “muito além dos muros do Parque São Jorge”, compara ele. O movimento que foi contra a ditadura tinha jogadores de todas as idades do Corinthians. E, além da representatividade política que possuía, ganhava títulos e encantava com o seu futebol.
Mas, embora defenda um maior envolvimento dos jogadores, Mauro Beting critica a postura, por exemplo, do Felipe Melo, que dedicou o gol ao amigo e, na época, candidato à presidência do Brasil, Jair Bolsonaro. “Usando a camisa do meu Palmeiras, ninguém vai falar dentro de campo de nenhum candidato, mesmo se fosse o meu”, esclarece.
A coordenadora do América-MG conta uma curiosidade dos bastidores do futebol: “Muitos clubes hoje, nos contratos com os jogadores, estão colocando cláusulas de responsabilidade em relação às falas e a imagem que o atleta traz para o clube”.
Entrando mais a fundo na parte legislativa, o professor Paulo Sérgio Leuz desaprova o fato da Lei Geral do Esporte cuidar de todas as modalidades esportivas. Ele ressalta que o futebol é muito mais desenvolvido do que outros esportes e estes precisam de mais ajuda governamental.
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Saída precoce de talentos nacionais para o futebol estrangeiro
Iniciando a conversa sobre o último tema proposto, Mauro Beting explica que um dos fatores desse movimento é a atual situação socioeconômica do nosso país. “É natural que, em um país tão injusto, as pessoas tenham o sonho de atuar fora, independente da área”, complementa ele. Mas, exemplifica que esse fenômeno ocorre, muitas vezes, cedo demais, como no caso de Vinicius Junior, que atuava nas categorias de base do Flamengo e com dois jogos no profissional, já estava vendido para o Real Madrid (ESP).
“Não tem o que fazer para evitar a importação do ‘pé-de-obra qualificado’. Nem tentar mudar a legislação ou impor algo”, conclui o comentarista.
Walter Casagrande comenta sobre uma mudança de mentalidade dos garotos: “Hoje, com 15 anos, os jovens querem ir jogar no Real Madrid e não pensam mais em jogar no time que torcem, como foi meu caso”. E esse desejo ocorre, segundo ele, para “resolver o problema familiar”.
Corinthiano e revelado nas categorias de base do clube, o ex-jogador estreou pelo time de coração aos 18 anos (1982) e, na época, nem pensava em jogar na seleção brasileira ou fora do país. “Hoje, é uma saída social muito maior do que antigamente, até porque a diferença de quanto ganhava não era tão grande”, completa ele.
O professor Paulo Sérgio apresenta ainda dois outros fatores para o escoamento precoce de talentos. “O futebol brasileiro forma jogadores em uma quantidade muito grande e se todo mundo desse certo, não teria time para comportar. Então, por não terem oportunidade, os jogadores saem cedo de seus clubes e acabam brilhando mais tarde na Europa”, discorre Paulo sobre o primeiro ponto.
O segundo fator, segundo o advogado, é o tráfico de pessoas que vão para fora do Brasil para jogar futebol. Elas são enganadas e acabam se tornando escravas. “Esse é o grande problema no mercado hoje, está cheio de enganadores e aproveitadores”, conclui ele.
Já Luiza Parreiras acredita que o futebol brasileiro ainda tem muito a perder pelos próximos anos: “Acho difícil a gente brigar, hoje, com as grandes ligas sobretudo pela questão financeira”