Força e graça: os bastidores do ballet como esporte - Revista Esquinas

Força e graça: os bastidores do ballet como esporte

Por Cecilia Marin, Gisela Lammers, Julia Pujar, Ligia Moraes e Rebecca Vergilio : janeiro 12, 2024

O ballet, segundo a bailarina Bárbara Dias, é a junção do belo com o esforço. Foto: Ivan Samkov, Pexels

O ballet é considerado uma dança cênica, ou seja, um encontro entre os movimentos harmoniosos da dança e o trabalho corporal intenso

Já de início, sua definição o coloca em um limbo: afinal, o ballet é arte ou esporte? 

Os argumentos para defini-lo como arte são numerosos: as apresentações são compostas por figurinos, cenários, música (muitas vezes clássica) e dança. Além disso, ele não está presente nas olimpíadas ou qualquer outra competição esportiva. Por outro lado, há como defender sua classificação como esporte, já que exige muito do corpo dos bailarinos, com a necessidade de treinos intensos, fisioterapias e acompanhamento corporal, além de competições, até mesmo em níveis internacionais. 

O ballet como esporte 

O desenvolvimento físico é o principal argumento usado pela bailarina Giovanna Leal para defender que o ballet, por mais que seja principalmente uma forma de arte, também é uma forma de atividade física. Com 19 anos, Giovanna é formada em ballet clássico, uma jornada que se iniciou profissionalmente com 12 anos, mais tarde do que a maioria das bailarinas, a obrigando a fazer o ballet básico, onde há o ensino de dois anos em apenas um.

Após seis anos, em 2022, ela se formou nesse estudo profissional e hoje, além de dar aulas de ballet para crianças, cursa fisioterapia no Ensino Einstein. “O ballet é uma das únicas artes que a gente pode falar que é considerada um esporte também. Durante todo o momento que você está dançando, você mexe mais de 70 músculos, é um esforço muscular muito grande. Existem técnicas certas, e se você mexer um músculo errado, ou em um ligamento, você pode acabar se machucando feio”, diz. 

Por sua experiência como estudante da área, mas também como bailarina, Giovanna reitera a importância da fisioterapia para essas profissionais. Ela conta que, por ter entrado muito tarde no ballet, não tinha um fortalecimento muscular necessário, a levando a desenvolver um problema no joelho, que gerou um problema no quadril e outras complicações. A solução foi recorrer à fisioterapia.

“A fisioterapia para o bailarino vem para auxiliar tanto no período que ele está machucado quanto na prevenção dele. São tratamentos diferentes que a gente faz. Esse é o meu propósito fazendo ‘fisio’. Quero me especializar no ballet para ajudar essas futuras bailarinas e bailarinos que vão vir pela frente”, afirma. 

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“O ballet é uma ferramenta para mim”, diz Giovanna.
Foto: Arquivo Pessoal

Quem também chama a atenção para o desenvolvimento físico é a bailarina Clara Toscano, de 20 anos. Formada em Ballet em 2017, Clara atua como professora na área e faz faculdade de artes cênicas na UNESP. Ela conta que dança desde pequena, por volta dos 5 anos, por iniciativa da mãe, e durante os oito anos de formação, passou por diversos espetáculos, principalmente aqueles que traziam princesas da franquia Disney, como “A Bela Adormecida”. 

A paixão pelos musicais continuou após a sua formação. Estrelou papéis em peças como Moana e Enrolados, e focou sua carreira no teatro musical. “O ballet é uma ferramenta para mim. O que eu mais quero é musical, eu sou muito mais cantora do que bailarina, mas eu preciso da técnica. É aí que entra o ballet”, Clara relata. 

Para se dedicar à faculdade, ao ballet como professora e ao musical que estrela, Clara precisou dar uma pausa no ballet, e conta que sente muita falta, principalmente pelo aspecto físico: “Eu parei e o meu corpo está fraco. Eu sinto dores onde nunca senti; de fazer um alongamento simples!”, desabafa. E é justamente com essa percepção que ela defende o ballet como sendo um esporte. 

“Bailarinas são super atletas dessa arte, têm a demanda física de atleta mesmo. Existe o trâmite de ‘ai, porque não está em olimpíadas’, mas existem muitas competições de ballet. Eu super diria que ballet é esporte sim, só não está nas Olimpíadas, mas tem uma própria do ballet”, complementa. 

A bailarina Bárbara Dias, de 20 anos, conhece bem o universo das competições de ballet. Estudante de Arquitetura e Urbanismo pela faculdade Belas Artes, Bárbara é formada em ballet clássico (com uma formação técnica, que a permite dar aulas hoje em dia) e já viajou o mundo competindo pelo esporte. 

Sua trajetória começou com apenas 2 anos, mas foi aos 10 que passou a se dedicar profissionalmente, quando participou de sua primeira competição em Paraty, no Rio de Janeiro. Ela também morou um mês em São Francisco, nos Estados Unidos, para estudar ballet. A partir de então, começou a viajar para participar de grandes festivais de ballet, em locais como Alemanha e Estados Unidos, por exemplo.

No Brasil, participou de importantes competições, como o Festival de Joinville, o maior da categoria. Ano passado, ao participar de um festival em Nova York, Bárbara assinou o seu primeiro contrato com uma companhia de ballet e foi para a Carolina do Sul.

“As competições são conhecidas nesse universo. Existem várias ao redor do mundo. De 3 a 4 meses antes tem os ensaios. A gente tem aula diariamente e esses ensaios são divididos, porque além das competições, há espetáculos durante o ano. Os ensaios acontecem depois da aula, a gente aquece o corpo nessa aula e aí tem o ensaio da coreografia, que é uma coreografia já pré definida. Aí a gente se apresenta nessas competições e somos julgadas. É um preparo muito intenso para 3 minutos de apresentação”, compartilha.

Clara, agora com uma experiência de bastidores, explica como funciona o processo para uma bailarina chegar até uma competição dentro de escolas: “Os festivais são anunciados e aí vai da escola se inscrever. Tem professor que tem trabalhos voltados para festivais, troféus, etc, que ‘vai para cima’. Alguns não têm essa pretensão.”

Ela também compartilha sua visão dos espetáculos, área que tem mais experiência por auxiliar na organização e por atuar. “A escola anuncia um tema e aí cada turma vai ser um elenco. A gente se junta um dia e fala ‘A turma da professora Clara tem essas opções, você acha legal?’. Para os personagens é mais específico. Tem que sentar a dona da escola, a diretora e alguns professores para ver se rola.”

Ainda sobre os espetáculos e competições, Clara destaca um ponto importante: o custo. “Para entrar tem taxa de inscrição. Teve um ano que foram quase R$400 para custear o teatro, além do figurino, que costuma ser ainda mais caro. E você continua pagando mensalidade do curso”, fala.

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Clara, em um dos espetáculos de que participou.
Foto: Arquivo Pessoal

Um esporte acessível ou elitista?  

São muitos os obstáculos para uma bailarina conseguir praticar esse esporte, mesmo sem pretensões de seguir profissionalmente na área, mas principalmente se quiser. Como Clara pontua, o ballet não é do tipo de esporte que pode ser praticado na rua, como o futebol, onde tudo que é necessário é uma bola e um grupo de pessoas. “É necessário um tipo específico de roupa, você tem que ir até o lugar: a escola de ballet, um ambiente elitizado. A menina pode ser muito boa, mas não é aceita para integrar a companhia se não conseguir arcar com os custos.”

As famílias desses atletas precisam desembolsar altos valores, já que as escolas não cobrem os custos adicionais. Bárbara pontua que, quando a bailarina está dentro de uma companhia, é a organização que arca com esses gastos, mas aquelas que conseguem um contrato nesses locais são a minoria. Assim, ela reconhece os desafios.

“O ballet é um esporte com certeza elitista. Estamos falando de figurinos, de taxas de espetáculo, de taxas de competições, sapatilhas de ponta… As sapatilhas de ponta são muito caras. Então você precisa de dinheiro para estar dentro do ballet. Para ser profissional, para se especializar. Tem gente que consegue, mas é difícil”, diz.

Uma alternativa para aqueles que querem praticar o esporte e não têm condições são os projetos sociais. Porém, Clara informa que o único custo que não é cobrado é o da matrícula das aulas, os demais, como roupas e viagens para competições, ainda precisam ser pagos por conta própria. 

O fato de os atletas precisarem pagar para praticar o esporte tem uma razão que aparece em diversos outros esportes no Brasil e é apontada por Giovanna: a falta de patrocínio no país.

“É elitista até por conta dos patrocinadores, que a gente não tem muito. Geralmente quem é patrocinador é alguém que já dançou ou que gosta muito da arte. Marcas para você comprar as vestimentas na maioria das vezes elas são bem caras, uma sapatilha de ponta não é algo que todo mundo tem acessibilidade, infelizmente”, sinaliza.  

Esse grande obstáculo impede que muitas bailarinas sigam carreira profissional. Bárbara, por exemplo, apesar de todas as competições que enfrentou, viagens que realizou, e até mesmo com um contrato em uma companhia, hoje leva o ballet como um hobbie. O mesmo aconteceu com Giovanna. “Esse esporte não é muito valorizado no Brasil, então eu busquei algo que eu conseguisse relacionar com a arte e que ao mesmo tempo eu gostasse muito. A ‘fisio’ me ajudou muito no processo do meu joelho, me despertou um interesse”, relata.

Por outro lado, Bárbara traz a discussão que essa desvalorização vem muito por parte do público também, que não tem o costume de consumir apresentações de ballet devido a uma cultura que coloca os espetáculos como algo exclusivo da elite da sociedade ou de pessoas mais velhas, como uma “cultura mais antiga”.

“A gente quer mostrar o espetáculo em si, a gente quer essa valorização. Eu acho que o que mais acontece é a falta de apoio de colocar em evidência, dar esse conhecimento. Você vai parar uma hora e meia da sua vida para assistir um espetáculo de ballet em um sábado à noite?”, questiona.

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Bárbara, em 2021.
Foto: Arquivo Pessoal

A bailarina levanta outro ponto, dessa vez inesperado: os bailarinos homens têm um acesso facilitado a esse esporte, por meio de bolsas e incentivos financeiros, já que são a minoria dentro do cenário. “Os meninos, por exemplo, não pagam aulas. Eles têm essa ‘vantagem’ dentro do ballet. Eles não pagam aulas, figurinos… mas nós mulheres, como somos muitas nesse mundo, precisamos pagar”, compartilha.

A visão masculina do ballet 

O ballet é dominado por mulheres, mas não só isso, ele é tido como um esporte exclusivamente feminino. Há um grande preconceito com os homens que se arriscam nesse universo: eles são taxados de homossexuais, excluídos de grupos e considerados “menos homens”. Muitos desistem do sonho por medo do julgamento, mas esse não foi o caso de Luís Henrique Alves. 

Luís Henrique, de 19 anos, hoje cursa gestão de recursos humanos e segue carreira na área, mas se formou em 2019 no estilo de ballet Cubano. Sua trajetória começou aos 7 anos, quando foi descoberto por uma técnica de ballet e convidado a fazer testes para uma companhia, onde ganhou uma bolsa de 100%. “Na época da escola, do fundamental I, tinha capoeira para os meninos e ballet para as meninas. Eu nunca gostei de fazer capoeira, sempre me interessei muito por dança”, relembra.

Os 10 anos no esporte não foram fáceis, não só pelos obstáculos de praticar algo que não é valorizado – o que o levou a “se aposentar”, como brinca, após a formatura -, mas também pelo preconceito enfrentado em diversos locais, principalmente na escola. “Quando eu dizia que fazia ballet, as pessoas davam risada, principalmente os meninos. Meus pais trabalhavam muito isso comigo. Porém, chegou uma fase da minha vida que eu deixei isso de lado,  as pessoas também se acostumaram com o fato de eu ser bailarino”, desabafa.

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Luís Henrique enfrentou preconceitos durante sua trajetória.
Foto: Arquivo Pessoal

Luís Henrique  precisou de um grande apoio nessa época. Seus pais sempre deram suporte para o seu sonho, principalmente nos momentos de bullying e inseguranças. O apoio continuou quando, aos 15 anos, ele se assumiu como um homem gay.

Na época, o bailarino recebeu comentários de pessoas ao seu redor falando que “já sabiam”, o que se relaciona com a visão que se tem do ballet. Luiz, inclusive, reforça que esse estigma nada tem a ver com a realidade e muito menos que praticar o esporte tenha relação com a sua orientação sexual. “O ballet não interferiu em nada, até porque eu tenho colegas homens que são bailarinos e são casados com mulheres. É um pouco de ignorância das pessoas em querer dizer que todo menino que dança ballet é gay. Claro, tem os que são, mas não são todos”, relata. 

O apoio que Luís Henrique recebeu de seus pais em dançar seria o ideal, mas, infelizmente, não é a realidade da maioria dos meninos que querem praticar ballet. Sendo professora de crianças, Giovanna já se deparou com diversos casos de meninos que queriam participar das aulas, mas que eram barrados pelos próprios pais. Nessas situações, até mesmo suas alunas tinham um certo olhar excludente.

“As meninas tinham esse receio, perguntavam ‘por que ele tá na nossa sala? Ele é menino,  menino não faz ballet’, e eu falava ‘menino faz ballet sim!’. Eu ia buscar vídeos de bailarinos  para mostrar para elas”, pontua. 

Luís Henrique ajuda na narrativa de Giovanna para suas alunas ao explicar o papel de bailarino em uma coreografia, que varia conforme o caso. “Quando você dança com uma outra menina isso se chama Pas de Deux, que é o passo de 2, é inevitável que a mulher tenha mais destaque. A gente joga a bailarina para cima, faz uma série de fatores. O homem assume o protagonismo quando está sozinho.”

Durante seus anos participando da companhia, ele relata que havia apenas ele e mais um rapaz em comparação a 200 meninas. Em sua visão, esse desequilíbrio acaba por, em alguns momentos, dar mais oportunidades para os homens. “É inevitável que a quantidade de homens seja menor, por isso que existem muitos preconceitos e estigmas.”

Giovanna conta que viu muitos homens desistirem do ballet por não aguentarem a pressão do preconceito daqueles ao seu redor, visão que Luís Henrique também tem. Ele conta de um colega que, além de bailarino, também era homossexual e seus pais não o apoiavam em ambos os sentidos. Com a falta de apoio e agressões de seus pais, o menino desistiu da dança. 

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O apoio dos pais foi crucial para Luís Henrique.
Foto: Arquivo Pessoal

Felizmente, o cenário parece mudar, como é perceptível pelo relato de Giovanna, que diz ver cada vez mais homens, principalmente jovens, entrarem para o esporte. 

Um esporte de preconceitos 

“As pessoas assistem muito a gente no palco, acham que é tudo lindo, tudo maravilhoso, mas não é bem assim. Tem os bastidores.”

A fala de Luís Henrique traz uma dura realidade do esporte. São diversos os fatores “dos bastidores” que se tornam grandes desafios na vida dos bailarinos, principalmente daqueles que fogem do padrão cobrado do ballet: o corpo extremamente dentro do “ideal”. 

A cobrança excessiva pela magreza vem por o esporte ser, como Clara pontua, “um meio muito de aparência”. Por ser uma arte completamente visual, o que atrai aos olhos do espectador é, justamente, esse aspecto, seja dos cenários, dos figurinos e, infelizmente, dos corpos dos atletas. 

As questões corpóreas começam muitas vezes de maneira sutil, como é o caso de Clara, que até hoje em dia não sabe reconhecer se passou de fato por um transtorno alimentar decorrido da pressão do ballet. “Quando eu tinha 10 anos, eu tive questões de alimentação. Talvez tenha sido (distúrbio) e eu não estou conseguindo reconhecer. Mas com 12 anos eu já pensava ‘quero ser magra’”, diz.

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Clara revela que, ainda hoje, não sabe reconhecer se passou de fato por um transtorno alimentar.
Foto: Arquivo Pessoal

Os transtornos e a ansiedade relacionados a emagrecer tendem a piorar quando são pontuadas por outras pessoas. Clara conta que com 15 anos recebeu muitos comentários a elogiando por sua perda de peso – resultado de treinos intensos que geraram um imenso desgaste físico e psicológico -, que a fizeram se sentir na obrigação de se esforçar o dobro para manter seu físico. A pressão só piorava por ouvir nos bastidores comentários negativos do peso de colegas.

“Eu tinha ‘contatinho’ na época que eu não conversava até a minha rotina voltar e eu me sentir magra de novo. Eu também entrei em uma pira de ‘ai quero o abdômen desse jeito’, ao ponto de, no dia da peça, fazer abdominal na coxia. Qual o sentido? O meu abdômen não ia ficar mais trincado, sabe?”, desabafa.

Esse comportamento nocivo é muitas vezes incentivado por próprios profissionais do ballet, como foi o caso de um professor de Clara que, além de fazer uma grande pressão psicológica a bailarina e suas colegas de turma, chegou a dizer que ela “estava ficando fofinha”. 

Bárbara também enfrentou dilemas com seu corpo. Em 2020, durante uma viagem de seis meses para Portugal, a bailarina precisou morar sozinha com apenas 16 anos. Entre continuar estudando, cuidar de uma casa inteira sozinha e se dedicar as aulas de ballet, o estresse a tomou, a levando a desenvolver um transtorno alimentar que só piorava com a cobrança por um corpo perfeito.

“Antes de ir para Portugal, eu tinha feito uma dieta para emagrecer porque eu sabia que lá eles tinham requisitos maiores, mas quando eu cheguei lá, eles me pediram para emagrecer mais. Foi quando eu fiquei com essa pressão, desenvolvendo o transtorno alimentar”, relembra.

A questão do peso é um dos assuntos mais delicados do ballet. O bailarino tem o corpo como ferramenta de trabalho, precisa cuidar dele por meio de exercícios e, principalmente, uma alimentação saudável, que muitas vezes é prejudicada ao se colocar como único objetivo emagrecer. Por isso, Bárbara destaca a importância de um acompanhamento com uma nutricionista, algo que reforça para as suas alunas.

“É preciso ter cuidado na hora de falar para uma aluna que ela precisa emagrecer. Precisa pedir para ela fazer exames médicos, precisa saber se ela consegue emagrecer mais. Não é simplesmente ’emagreça’. E não é só por questão estética, é por questão funcional do seu corpo”, fala. 

Vale ressaltar que magreza não é sinônimo de ser saudável. Diferentes tipos de corpos possuem diferentes definições de saudáveis, como destaca Giovanna, que relata ter se sentido insegura justamente por ter um tipo de corpo diferente da maioria das bailarinas, mesmo que ainda seja magra. “O ballet me trouxe inseguranças com o corpo. O meu tipo físico é outro, não é daquelas pessoas totalmente magras. Tem um músculo, tem um quadril maior e o ballet, na maioria das vezes, não vê isso”, diz. 

Mesmo assim, ainda é difícil encontrar bailarinos que fujam dos padrões estabelecidos, seja de peso quanto de raça. Ainda na questão corpórea, Bárbara enfrentou o preconceito e a exclusão na pele ao competir fora do país por ter um corpo fora do padrão internacional, que enxerga uma silhueta mais curvilínea, como a das brasileiras, inadequada.

“As bailarinas brasileiras têm uma média de altura menor, ‘têm coxa, têm bumbum’… É um biotipo brasileiro, diferente do de uma francesa, por exemplo. Então começam a te olhar, te julgar… é desconfortável. Não falam, mas você sabe.”

Fortalecimento mental e físico  

As questões de preconceito e preocupação extrema com o corpo são duas das diversas com que os bailarinos precisam lidar diariamente. Assim como exige um físico fortalecido, o esporte também pede por um psicológico muito bem preparado, algo que é constantemente negligenciado. Por conta disso, um ponto levantado por Clara se faz muito presente:

“Toda bailarina com quem se conversa vai falar ‘quase desisti do ballet em determinado momento da minha vida.”

As razões são diversas. Como já relatado, muita das vezes é por conta de desvalorização, falta de oportunidade e falta de apoio. Porém, também há os casos em que o atleta não consegue aguentar o dano mental causado por ser exposto a certas situações. Foi o caso de Luís Henrique, que deixou de lado o ballet por conta dos diversos episódios de assédio e humilhação que passou.

Além dos episódios que os atletas acabam por sofrer nesse cenário, ainda há os desafios do ballet em si. Por exigir uma grande concentração, disciplina e principalmente tempo do atleta, seja para as aulas, treinos ou viagens, eles acabam por negligenciar outras partes de suas vidas. É o que aconteceu com Bárbara. A bailarina teve que abrir mão de momentos com amigos e família, de viagens escolares e a lazer para focar em sua vida profissional. 

A vida profissional em si traz consigo diversas provações psicológicas. O ballet é um ambiente de extrema competitividade, seja nas apresentações em si quanto entre bailarinas. Giovanna passou por momentos difíceis devido a essa questão, uma vez que por ter entrado “atrasada” no esporte, se sentia inferior as colegas de classe, principalmente ao começar a ser excluída. “Algumas meninas falavam ‘dessa vez vamos fazer só a gente. Você pode participar numa próxima, tudo bem, né?’”

O julgamento também é um fator capaz de abalar profundamente a mentalidade desses atletas, já que vem por parte tanto da sua própria equipe quanto dos jurados das competições e até mesmo do público das apresentações. “O julgamento existe na nossa área um pouco mais intenso por você estar em uma competição e estarem te julgando, se tá certo ou errado, se vão te querer na companhia ou não. É como no futebol, quando tem um olheiro no jogo. A gente sabe que tem um olheiro e estamos apresentando para ele”, exemplifica Bárbara.

A cobrança pela perfeição acaba se tornando uma das maiores vilãs na vida desses profissionais. Como já dito, o ballet é um meio de aparências, onde tudo precisa ser perfeito, e não é fácil lidar com isso, principalmente quando há tantos fatores a se preocupar.

Giovanna compartilha que época de exames e ensaios para apresentações ou competições são as mais cruéis. A cobrança própria e externa torna-se excessiva, exigindo muito do psicológico dos alunos, mas também do físico. “Na hora dos ensaios você fala: ‘nossa, eu não posso errar essa coreografia’, e no dia que você vai para o palco você já está totalmente instável mentalmente. É aquela coisa de ‘eu não posso esquecer um passo, se eu errar o tempo da música não vai dar’”, desabafa.

A instabilidade física e mental se misturam em histórias como a da Bárbara. Em novembro de 2021, ela precisou operar o tornozelo após romper todos os ligamentos da área enquanto dançava. A recuperação levou três meses, o pós foi extremamente desgastante e tudo piorou quando, ao forçar seu físico ao extremo, acabou se machucando durante um treino.

“Para mim foi pior do que o transtorno alimentar, porque eu tive que ficar parada não por opção, mas obrigatoriamente. Eu fiquei um mês sem tocar o pé no chão e dois meses fazendo só fisioterapia parada. Mas o que me ajudou a voltar mais rápido foi ‘eu tenho o ballet, eu preciso voltar’. Engraçado, né?”, compartilha.

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“Em 2013, eu tinha 10 anos e já cheia de dor (risos)”, revela Bárbara Dias.
Foto: Arquivo Pessoal

Assim como todo atleta, os bailarinos precisam de um preparo físico intenso, já que o exercício exige muito de seus corpos. Porém, diferente da maioria dos esportes, a preocupação não é ganhar músculos e sim defini-los, tornando a rotina ainda mais puxada. 

Os bailarinos entrevistados compartilharam suas rotinas de exercícios, tanto atuais quanto antigas, e todas elas têm algo em comum: treinos todos os dias da semana, aulas de condicionamento físico, de controle de respiração, pilates, fisioterapia… Sem contar os longos e intensos ensaios e aulas. 

Todos os entrevistados compartilham mais um ponto em comum. Eles revelam que em nenhuma das escolas ou companhias pelas quais passaram ofereceram acompanhamento psicológico, algo, como visto, essencial. 

Bárbara acabou frequentando uma terapeuta pelo tempo em que estava nos EUA. De acordo com ela, houve a indicação da escola para ela procurar por uma profissional, mas sem o custeamento das sessões. 

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Um ambiente tóxico?

Com todos esses fatores, a conclusão a se chegar parece óbvia: o ballet cria um ambiente tóxico. Mas, para os quatro bailarinos, as coisas não são tão simples assim. 

Bárbara concorda com a afirmação, assim como Clara. Esta destaca comportamentos como eleger preferidos e se dedicar apenas a eles, os corrigindo e dando atenção, enquanto exclui os demais, como algo comum e completamente nocivo para os envolvidos. 

Já para Luís Henrique, o ambiente em si não é tóxico, mas o comportamento das pessoas o torna. A questão da competitividade, da comparação… São todos fatores que, se dominarem a cabeça do atleta, transforma todo o seu entorno em algo desagradável. 

Giovanna concorda com o bailarino, mas destaca que tudo irá depender da mente, de como o atleta irá levar as dificuldades que passará pelo caminho, se irá absorver ou só levar como mais uma crítica. Agora que dá aulas, sua principal preocupação é incentivar as futuras bailarinas a falarem, a não guardarem todos os incômodos para si. Ensinar que a dança pode ser algo leve, sem tantas cobranças e, assim, evitar a criação de mais ambientes tóxicos. 

Existem diversos pilares no ballet. Disciplina, responsabilidade, dedicação, mente, concentração, constância, rotina e técnica são apenas alguns deles, mas o principal é a paixão pela dança, pelo esporte. Apenas com ela os atletas são capazes de superar os desafios, enfrentar os problemas e transformar o ambiente, que não precisa ser tóxico. 

“A dança é um refúgio. Ela pode ser o amor da sua vida, pode ser algo que vai dar uma complicada na sua cabeça, mas ela tem que ser sempre o seu porto seguro, para onde você pode escapar a qualquer momento.”

Editado por Mariana Ribeiro

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