“Você imagina que esses homens serão execrados, mas não é o que acontece": Atletas condenados saem impunes sem perder carreira no futebol - Revista Esquinas

“Você imagina que esses homens serão execrados, mas não é o que acontece”: Atletas condenados saem impunes sem perder carreira no futebol

Por Cesar Spina e Júlia Polo : julho 14, 2021

Foto: Emilio Garcia/Unsplash

Regiani Ritter comenta contratações de jogadores que cometeram crimes e continuam sendo exaltados no futebol

O que Robinho, Bruno, Marcinho e Jean têm em comum? Além da fama e dos títulos, todos, mesmo cometendo crimes, ainda gozam do privilégio da idolatria de torcedores e chegam até a ter seus atos criminosos minimizados. O fanatismo ultrapassa os valores morais e de civilidade? Para alguns clubes, a resposta é sim. Santos, Athletico Paranaense, Cerro Porteño e Araguacema são exemplos recentes de times que contrataram atletas condenados, deixando para trás a ética e visando apenas uma coisa: o fortalecimento de suas equipes.

A jornalista esportiva Regiani Ritter, primeira mulher a ocupar a posição de repórter de campo no Brasil, sentiu na pele as agressões do cenário misógino do futebol: “Do alto dos meus 74 anos, eu posso dizer que aprendi muito, não tudo, mas o suficiente para me fazer respeitar em um meio absolutamente machista.

“Mulher”, ela diz, “não pode errar. Se errassem, ouviriam o que eu ouvi”. “Regiani Ritter,  você me irrita. Você não entende nada de futebol”, foi o que disse Milton Neves a Ritter, quando ele não concordou com um comentário feito por ela. Apesar disso, a jornalista garante que são amigos.

Ainda assim, em sua época, o preconceito não era tão escancarado a ponto de clubes —  de pequena e grande relevância — contratarem atletas condenados por agressão, abuso sexual e homicídio doloso premeditado contra mulheres. Como disse Ritter, mulheres não podem errar, por menores que sejam suas falhas. Já os homens, por maiores que sejam seus erros, são, muitas vezes, defendidos.

Atletas condenados: Caso Robinho

Em outubro de 2020, o Santos anunciava a 4ª e mais polêmica passagem de Robinho pelo clube, apesar de ser a única sem qualquer título ou, até mesmo, jogos. Isso porque o clube foi fortemente criticado pela contratação, já que o atacante havia sido condenado em segunda instância por estupro na Itália.

No dia 22 de janeiro de 2013, quando ainda era atleta do Milan, Robinho foi comemorar seu aniversário com amigos próximos, em Milão, na boate Sio Café. Após muita farra, Robinho e outros cinco brasileiros foram acusados de abuso sexual. Quatro deles estão sendo julgados em um processo à parte, já Robinho e o amigo Ricardo Falco foram condenados em primeira e segunda instância, segundo o Código Penal Italiano.

A acusação foi feita por uma jovem de origem albanesa, com quem o jogador afirma que teve relação sexual consensual. “Naquele dia ela não conseguia fazer nada, nem mesmo ficar em pé, ela estava realmente fora de si”, disse Falco para Robinho durante ligação transcrita e divulgada pela defesa da vítima.

Quando resolveu repatriar um de seus maiores ídolos, o Peixe já sabia de sua condenação, que aconteceu em primeira instância em 2013, enquanto o atleta ainda jogava pelo Atlético Mineiro. Na ocasião, o presidente do Galo tratou o assunto como uma “questão pessoal”.

A contratação gerou muitos comentários, positivos e negativos. Enquanto uma parcela da torcida se animava com a volta do “Menino da Vila”, outra se revoltava com a situação e com a hipocrisia do clube que sempre se posicionou repudiando qualquer tipo de violência contra mulheres em ações em campo ou nas redes sociais. A mesma dualidade de opiniões ficou visível na imprensa. “Teve jornalista que teve a coragem de dizer que o que interessa é o que cara faz dentro de campo”, lembra Ritter.

Após ameaças, rescisões de patrocinadores e até mesmo cancelamentos de planos de sócios torcedores, o alvinegro praiano suspendeu o contrato com o atleta.

Atletas condenados: Caso Bruno

O goleiro Bruno Fernandes de Souza, 36 anos, ex-arqueiro do Flamengo, foi condenado a 22 anos e três meses de prisão pelos crimes de homicídio triplamente qualificado, sequestro e ocultação do cadáver da modelo Eliza Samudio, morta em 2010.

Eliza, que já tinha buscado medidas protetivas na justiça contra o atleta, viajou com o filho após promessas de que Bruno iria reconhecer a paternidade do menino e em busca dos bens prometidos por ele. Logo após isso, ela sumiu.

Segundo a polícia, ainda no carro que a levava para o sítio de Bruno, Eliza foi rendida por um menor que estava no porta-malas do veículo. O motivo era simples: ela queria o reconhecimento do filho, e Bruno, não.  “Foi uma morte absurda, cheia de requintes de tortura”, lembra Ritter.

O ex-Flamengo, considerado mandante do crime, teve sua pena reduzida em 18 meses em 2017. Em 2019, conseguiu a progressão para o regime semiaberto.

Em março deste ano, foi anunciada sua contratação pelo Atlético Carioca, time de São Gonçalo que disputa a série C do estadual do Rio. “Qualquer assunto relacionado ao atleta fora do âmbito esportivo, o clube não exerce influência sobre o profissional”, afirmou o presidente, mas o clube desistiu do jogador.

O time carioca não foi o único a contratar o goleiro após sua prisão. O criminoso também atuou pelo Boa Esporte, Poços de Caldas e Rio Branco, cujo mandatário enalteceu o jogador: “Nem Jesus agradou a todos”. Outros times chegaram a negociar com o atleta, mas desistiram devido a protestos da torcida. Desde abril, ele está no Araguacema, de Tocantins.

“Você percebe que os times que chegaram a contratar Bruno são só os menores, aqueles que você nunca ouviu falar. Mas aí eles serão comentados. Não importa se pelo bem ou pelo mal, eles querem ser famosos,” analisa Ritter.

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É falta grave

Atletas condenados: Caso Marcinho

No dia 30 de dezembro de 2020, por volta de 20h30, Maria Cristina José Soares e Alexandre Silva de Lima atravessavam a Avenida Lúcio Costa, na Zona Oeste do Rio, quando Marcinho, que na época jogava no Botafogo, sob efeito de bebida alcoólica, atropelou o casal de professores. O lateral direito fugiu do local sem prestar socorro aos dois, o que agravou ainda mais seu crime, sendo acusado não só de duplo homicídio culposo, mas também de omissão.

Ele disse ter fugido por receber constantes ameaças da torcida do Botafogo, seu ex-clube. As investigações comprovaram que o atleta estava dirigindo a 98km/h. Vídeos do circuito interno de câmeras de segurança do restaurante Rei do Bacalhau, na Zona Norte do Rio, mostram Marcinho ingerindo cinco chopes por volta de 11h30 e 13h30 do dia do atropelamento.

Em março deste ano, o Clube Athletico Paranaense anunciou a contratação do lateral direito Marcinho, que teve passagem pela seleção brasileira. A notícia repercutiu negativamente e a #ForaMarcinho subiu nas redes sociais.

Atletas condenados: Caso Jean

Em 18 de dezembro de 2019, quando ainda atuava como goleiro pelo São Paulo, Jean Paulo Fernandes Filho, 25 anos, foi detido nos Estados Unidos após ser acusado de agredir sua até então esposa, Milena Bemfica, com oito socos no rosto. Em vídeos publicados no Instagram, Milena, muito abalada, apareceu trancada no banheiro do hotel onde estava, denunciando a situação e clamando por ajuda.

Tendo a sua ficha registada pelo Departamento de Correções do Condado de Orange, na Flórida, Jean foi recluso no dia seguinte e preso por violência doméstica. O time paulista decidiu afastar o atleta, que logo foi emprestado ao Atlético Goianiense.

“Estou aqui para comunicar que o Atlético contratou o Jean, que vem com um problema familiar, uma questão que não apoiamos, mas entendemos que é um grande atleta. É uma grande oportunidade. Eu sou amigo do empresário dele e conseguimos efetivar essa contratação por entender que é um grande atleta e que todo ser humano merece ter oportunidade na vida”, disse o mandatário. “Todos temos problemas, todos nós erramos e o Atlético vai dar todo o respaldo para que ele possa conseguir retomar sua carreira, acredito muito no profissional”.

Após destaque na equipe goiana, o atleta foi especulado por times como Grêmio e Atlético Mineiro, mas seu destino foi o Cerro Porteño do Paraguai, que anunciou o empréstimo do goleiro por uma temporada.

Jean responde por mais de dois processos de agressão, além de um de pensão alimentícia, no valor de R$31 mil. “Eles esquecem que têm mães, esquecem que têm mulheres e esquecem que têm filhas. Esquecem de onde vieram. Isso é imperdoável. Não tem como perdoar o homem que esquece de onde ele veio e trata mulheres como objetos, que bate, que estupra”, diz a repórter.

Mas mesmo após esses atos, parte da torcida são-paulina ainda gostaria de ver o atleta vestindo a camisa vermelha, branca e preta e manifesta esse desejo nas redes sociais.

Atletas condenados: Crimes antigos

Se engana quem pensa que são recentes os casos de jogadores que cometeram crimes hediondos e que seguem suas trajetórias dentro do futebol normalmente. Antes mesmo de Robinho, Bruno, Marcinho e Jean pensarem em serem jogadores, já existiam outros que mantinham sua visibilidade e tinham seus delitos ignorados pela mídia e pela torcida.

Atual técnico do Atlético Mineiro, Cuca, ainda quando jogador, foi condenado a 15 meses de prisão por estuprar, junto de outros três atletas, uma vulnerável de 13 anos na Suíça, na década de 1980, enquanto ainda atuava pelo Grêmio. Como o Brasil não extradita seus cidadãos, a pena nunca foi cumprida e o crime caducou na Justiça.

Em 1995, dirigindo embriagado, Edmundo causou um acidente que levou à morte de três pessoas. Pelo crime, o agora ex-jogador permaneceu 18 horas preso em 2011, seis horas por cada morte. Em 13 de abril deste ano, 26 anos após o ocorrido, o STF resolveu manter a decisão de 2011 de  Joaquim Barbosa, ministro na época, de que as acusações de homicídio culposo e lesão corporal teriam prescrito.

Mesmo após o crime, o “Animal” — como era conhecido –, teve passagens por clubes como Corinthians, Vasco, Fiorentina e Cruzeiro. Depois de sua aposentadoria, continuou na mídia como comentarista na Band e na Fox News, onde ficou até o fim de 2020. Ele foi mais um que seguiu sua vida e carreira sem grandes punições.

“Não deveria ter perdão. Não deveriam ter panos quentes”, opina Regiani Ritter. “Você imagina que esses homens serão execrados pela mídia e pelos clubes, que serão verdadeiramente esquecidos no futebol, mas não é o que acontece”, lamenta.

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