Dia Internacional para qual Mulher? - Revista Esquinas

Dia Internacional para qual Mulher?

Por Maria Fernanda Pires Quitério, Giovana Navarro de Grande, Luiza Kellmann Bertani e Maria Eduarda Padovani Mahrouk Sanches : março 21, 2025

"É um dia como qualquer outro", desabafa Adelaide de Estorvo. Foto: Anya Juárez Tenorio/Pexels

“Tenho pouca disposição para disputar espaços onde tenho de convencer sobre a legitimidade da minha diferença”, declara mulher trans

Há 48 anos, o Dia Internacional da Mulher é comemorado no dia 8 de março e, desde então, se tornou um ponto de reflexão para os problemas sociais que englobam o ‘ser mulher’.

A data simbólica propõe a celebração das conquistas das mulheres pela luta de gênero por igualdade e direitos. Na prática, pelo conhecimento em massa e pela capitalização do dia,- e do mês de março- hoje, não evoca mais mudanças significativas e é lidado com mais “indiferença”.

Contudo, para uma parcela da sociedade, a celebração deste dia é uma conquista significativa. Para mulheres trans e travestis, fazer parte de espaços como esse também tem uma grande importância.

A vivência da mulher trans e travesti em uma sociedade patriarcal, que marginaliza a diversidade de gênero, é estar em constante resistência. Contra desafios de ser uma mulher, mas também, contra a falta de legitimação da liberdade de identidade. E principalmente pela luta por direitos do ser humano  assim como constam os artigos 2°, 3°, 6° e 7° da Declaração dos Direitos Humanos, evidenciando uma desumanização para transgêneros.

Luta por espaços

Para a etimologia, o prefixo “trans”, do latim, significa “além de” ou “o outro lado”. Seguindo esse raciocínio, um indivíduo que se descobre transgênero ultrapassa qualquer limite físico ou mental que o impeça de ser quem realmente é.

Essa barreira, no entanto, não é apenas o gênero o qual o indivíduo foi designado ao nascer, mas também é o preconceito, a violência e a exclusão social. Sem dúvida, para transsexuais, são muitos os desafios a serem enfrentados, visto que a luta LGBTQIAPN+ pela diversidade sexual e de gênero ainda persiste contra o ódio propagado.

Porém, para essas mulheres a luta por espaço é ainda maior. Visto que a luta não é só contra a homofobia, mas também contra o machismo. Mas o crescimento de causas ativistas e o maior enfoque de pautas sociais na política e na mídia dão à resistência uma nova esperança.

O que a comunidade transfeminina vivencia hoje?

Ser uma mulher trans em qualquer lugar do mundo é um desafio. Afinal, são mulheres que lutam não só contra o machismo, mas contra a homofobia. No Brasil, o cenário é ainda mais complicado. Segundo a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), o país, pelo 16º ano consecutivo, continua sendo o que mais mata pessoas trans no mundo, com crimes extremamente violentos e, em sua maioria, cometidos contra mulheres. No último ano houve uma redução de 16% no número de mortes, e ainda assim foram mais de 100 vítimas no país.

Além disso, há uma dificuldade evidente em se inserir no mercado de trabalho e em conquistar grandes cargos. A primeira contratação de uma mulher trans no Senado Federal ocorreu apenas em 2024, por exemplo, revelando uma precariedade em relação a políticas de diversidade tanto em Órgãos Federais quanto em empresas privadas. Samantha Terena, ativista trans feminina e índigena, comenta sobre esse tipo de violência.

“Às vezes há estudo e formação, mas não temos permanência dessas pessoas porque acabam sendo agredidas psicologicamente. É uma exclusão de direitos, é violência física e psicológica”.

Na questão social, a exclusão também é notada. Inúmeros são os relatos de pessoas trans que têm seus nomes sociais tratados com indiferença, seja em universidades, em hospitais, em empresas ou em qualquer outro ambiente. O nome social deve ser respeitado, uma vez que sua função é se referir a uma pessoa da forma de preferência e do modo que ela se identifica e, por esse motivo, deve ser protegido da mesma forma que o nome de registro.

“Hoje, há muita violência contra nomes, não temos dignidade de sermos chamadas de “ela”, muitas vezes nos identificam como ‘o travesti’. Somos mulheres plurais e merecemos respeito. Acima de tudo, somos pessoas.” Terena adiciona.

Dia da Mulher na voz da comunidade: vivências e significados

O Dia da Mulher e seu mês de comemoração, para além de seu valor histórico, reflete as lutas cotidianas da pluralidade. Para cada diversidade há vozes para contar algo particular. Os relatos de mulheres refletem como a data é atravessada por demandas específicas de pertencimento e sororidade.

Lucci Laporta, assistente social e ativista transfeminista no coletivo Juntas, começou a participar da organização do 8 de março em Brasília em 2016, após ter sido incentivada por companheiras lésbicas cis, “que queriam diversificar as mulheres presentes na organização do ato”, afirmou ela.

“Minha relação com 8M foi, desde o início, de acolhimento pelas que gostariam da minha presença ali, bem como de disputa – para que se tornasse um espaço cada vez mais interseccional. Significa, então, mais um dos vários espaços de disputa de consciências, de esforço para que eu deixe de ser a única”.

Adelaide de Estorvo, 34, desabafou sobre sua indiferença com a data e destacou que, mesmo com sua consciência acerca da importância dela, a banalização se tornou um fator indignante: “O Dia Internacional das Mulheres não significa nada para mim. Geralmente, é um dia como qualquer outro”

Apesar de muitas mulheres trans considerarem o dia das mulheres uma data importante para a visibilidade da comunidade, é interessante ressaltar uma outra perspectiva. Para Adelaide de Estorvo, 34, essa não é uma data relevante para a sua luta, ela comenta:

“Acho patético o modo como celebramos essa efeméride. Toda a sua usina de telemensagens e gifs coloridos com brilhos e flores não implica desconhecer que o dia ainda é mobilizado por vários grupos, que as ruas ainda não são tomadas por manifestações legítimas de reivindicação de direitos básicos”.

Já para a estudante transfeminina de Biomedicina, na USP (Universidade de São Paulo), Ayla Dantas, é um dia que a faz se sentir validada e pertencente à uma causa coletiva:

“Eu acho que é um dia que, principalmente quando recebo mensagens de outras pessoas, me faz sentir mais validada de certa forma. Esse é um dia importante para todas as mulheres, para a luta, para as conquistas e para os desafios que ainda existem para todas as mulheres: trans, bissexuais, brancas, negras…”.

De modo geral, existem diversas maneiras de representar essas mulheres no 8 de Março e no cotidiano. No entanto, o protagonismo de mulheres trans que lutam constantemente contra o machismo, a violência e o preconceito é uma das principais chaves para uma maior representatividade da comunidade transfeminina.

A estudante universitária explica que o ponto principal é a presença de mulheres trans em destaque, como a Erika Hilton, que está “sempre em alta nas mídias com uma voz política ativa representando a luta das mulheres trans”, o que a faz se sentir representada.

Laporta também pontua que é importante falar em representatividade, em protagonismo,e  em quem serão as priorizadas pelo feminismo e pelas organizações de esquerda para representar toda essa agenda de discussões.

“Quando consolidamos mulheres “não universais” como representantes de todas nós e porta-vozes de uma agenda anti-sistêmica, aí falamos em representatividade substantiva” explica.

Resistência transfeminina através das gerações.

Segundo a universitária Ayla Dantas, as conquistas da comunidade trans são evidentes principalmente por que nos últimos anos, em especial a partir dos anos 2000,” a discussão começou a ter mais visibilidade”, e que apesar do início do movimento LGBTQIAP+ ter como principais agentes mulheres trans, elas só ganharam esse destaque recentemente.

O nome social, por exemplo, foi uma conquista trans feminina em 1996, quando a ativista Indianarae Siqueira apresentou a proposta na Conferência Municipal de Saúde em Santos. Alguns anos depois,o uso do nome social no SUS, no ENEM e em escolas também se tornou possível.

Além disso, a estudante comenta sobre outros aspectos difíceis em relação aos tratamentos hormonais e cirurgias de transição de gênero.

“ Hoje em dia já é limitado, antigamente era muito mais. Além da inclusão social, que atualmente é muito mais fácil do que há 5 ou 10 anos atrás, ainda que ainda existam muitos problemas a serem resolvidos”.

Segundo a ANTRA,(Associação Nacional de Travestis e Transexuais no Brasil), o acesso a procedimentos hormonais, a cirurgias de transição e o acompanhamento multiprofissional foi instituído apenas em 2008, entretanto, foi um passo muito importante para o progresso da luta por direitos.

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E o que todas nós compartilhamos?

Ainda que de forma complexa, individual e diversa, todas partilhamos o ‘ser mulher’. Mesmo que existam diferentes necessidades, a pauta feminista, em teoria, luta por um mesmo ideal, a igualdade de gênero.

Ayla destaca que compartilhamos desafios como o feminicídio, a misoginia e o assédio, principalmente quando relacionado à sexualização. Ela também cita que “o Brasil é, ao mesmo tempo, o país que mais mata mulheres trans e um dos que mais consome pornografia com mulheres transgênero. Além de que, assim como mulheres cis, muitas travestis recorrem à prostituição”.

Já Samantha Terena, 35, indígena e ativista transfeminina também oferece seu ponto de vista em relação às suas vivências diante da causa feminista.

“Acho que todas as lutas são importantes. Principalmente, porque temos que provar nossa identidade. Não existimos, sobrevivemos. A gente sonha pelo dia em que a gente possa, de fato, viver como ser humano.”

É importante frisar que, ainda que mulheres da comunidade transfeminina e mulheres cis possuam dificuldades em comum, esses desafios se apresentam em níveis distintos. Por exemplo, no mercado de trabalho: mesmo que todas lutem por melhores posições e salários dignos, mulheres trans lidam com outros fatores agravantes.

Uma pesquisa feita pela FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) revela que, em 2020, apenas 13,9% das mulheres trans e travestis possuíam empregos formais em São Paulo, o que não só expressa uma diferença gritante em relação aos homens transgênero (59,4%), mas em relação às mulheres cis.

Além disso, uma pesquisa realizada pela Antra, em relação ao mesmo ano e tópico, apresentou que apenas 4% das mulheres transfemininas se encontravam em empregos formais em todo o Brasil.

Olhando para o presente, pensando no futuro: reflexões e expectativas

Desde os primeiros movimentos em prol dos direitos trabalhistas no começo do século XX até as questões atuais que envolvem igualdade de gênero, interseccionalidade e justiça social, o 8 de Março representa a memória coletiva de lutas e vitórias.

Sua importância simbólica está, portanto, na capacidade de refletir sobre o passado, mantendo a atenção nas dificuldades atuais e nas esperanças subsequentes. Por isso, é contundente exibir algumas manifestações e reflexões quanto aos desejos e expectativas de futuro das causas supracitadas.

Lucci apontou que espera que o movimento feminista transcenda a representatividade simbólica e alcance uma representatividade substantiva. Ela chama a atenção para a necessidade de priorizar, também, as vozes daquelas que foram marginalizadas até mesmo dentro do feminismo tradicional.

“O 8M precisa dar conta de disputar a sociedade como um todo. É por isso também que se trata de uma data e de manifestações generalistas. Mulheres são e devem ser a vanguarda das lutas ecossociais.”

Para Dandá Costa, cantora e compositora, o conhecimento para as causas de mulheres trans e travestis devem ser repassados, bem como todos aqueles que adotam de algum privilégio social devem buscar pela história dessa vantagem;

“Eu acho que a cisgeneridade tem que estudar a sua história. A história da violência que ela vem exercendo, assim como a branquidade tem que estudar a história da violência racial que ela veio construindo secularmente”; “precisamos nos reposicionar no lugar de fala”.

A luta de mulheres cis, trans, travestis, negras, brancas, pardas, indígenas e todas as mulheres em suas mais diversas existências e resistências ainda está presente em nosso cotidiano. Por isso cabe a nós nos solidarizarmos com essa diversidade existente entre a comunidade feminina e transfeminina, para que cada vez mais possamos celebrar por mais conquistas, e acabar com cenários de injustiças, vulnerabilidades e violência.

Esperamos poder celebrar pela igualdade, equidade e respeito entre nós mulheres. Essa esperança futura é compartilhada pela entrevistada Danielly Affonso Silva, 54 anos, técnica em enfermagem, que deseja que as pessoas sejam mais recíprocas, “respeitar o ser humano e não agir de forma bruta ou preconceituosa”

Editado por Bruna Blanco

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