FAVELA-RAIZ: Exposição fixa no Museu das Favelas tem participação de rapper Kayode - Revista Esquinas

FAVELA-RAIZ: Exposição fixa no Museu das Favelas tem participação de rapper Kayode

Por Julia Bomfim e Vitor Redondo : maio 16, 2024

Exposição FAVELA-RAIZ. Foto: Reprodução/Museu das Favelas

Localizada no Campos Elíseos, em casarão reapropriado, a exposição FAVELA-RAIZ traz a herança e a ancestralidade da arte preta e periférica

O Museu das Favelas, inaugurado em 2022, reside no casarão tombado Palácio dos Campos Elíseos, nos arredores da praça Princesa Isabel. O contraste entre a temática sub-urbana e a opulência do casarão bicentenário é parte integral da missão do museu. A programação para o mês de maio traz três diferentes exposições: as itinerantes “Favela em Fluxo” e “Rap em Quadrinhos” e a fixa “Favela-Raiz”.

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Entrada principal do Museu das Favelas.
Foto: Julia Bomfim/ESQUINAS

O espaço é um equipamento da Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas de São Paulo gerido pela organização social de cultura IDG (Instituto de Desenvolvimento e Gestão). O Museu nasce de um processo colaborativo com pessoas que vivenciam o cotidiano das favelas. Ele é um ambiente de pesquisa, preservação, produção e comunicação das memórias e potências criativas das favelas brasileiras.

Aberto a todos os públicos, tem como premissa máxima um trabalho de reparação social por meio do protagonismo das pessoas de favela na gestão e criação de rupturas de narrativas. O projeto parte da construção coletiva e compartilhada a ser constituída por meio do relacionamento com as favelas de São Paulo e do Brasil.

A instituição busca ampliar o olhar para além de uma imagem cristalizada do que é a favela e do que é um museu. Constrói uma visão que inclui as vivências que partem de periferias, ocupações, assentamentos, regiões quilombolas, ribeirinhas, entre outras; espaços que compartilham histórias de segregação e resistência. Um conjunto feito por pessoas periféricas, focado em quem é da periferia.

O Museu das Favelas tem a missão de aproximar a população da favela à arte, além de expor seus artistas para o mundo, já que muitos não conseguem exibir suas obras em lugar algum. A curadora do museu, Natália Cunha, nos conta que o principal veículo para encontrar os artistas é por meio das redes sociais.

“Estamos sempre de olho nas redes sociais, porque é onde os artistas estão. É onde eles conseguem mostrar o que tem. Inclusive, em nosso acervo, o design é feito por um artista, o Dicionário Capao, que descobrimos através da conta dele do Instagram”, conta a curadora.

As obras do artista estão presentes em toda a biblioteca do museu, cuidada pelo bibliotecário e educador social, Sidnei Rodrigues de Andrade. Atualmente, o espaço abriga o maior acervo de escritores periféricos do Brasil. Infelizmente, por enquanto, os livros ainda não estão disponíveis para empréstimo, apenas para leitura no espaço.

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Conjunto de obras que integram o dicionário da favela.
Foto: Dicionário Capão/Reprodução

Já a exposição Favela-Raiz é uma ocupação-manifesto divida em três atos.

O primeiro é repleto de esculturas tecidas em crochê, produzidas por Lidia Lisbôa. Cada obra foi bordada à mão e contou com colaboração de Ana Paula do Nascimento Souza, Bety Poquechoque Quispe, Jeovanna Rosario Huanca Loza, João Goulart da Silva, Juniara Albuquerque, Laura Choque Mamani, Verônika Verão dos Santos e Zulema Calizaya Choque. Os materiais usados na produção são pequenas faixas de tecidos que cuidadosamente vão se unindo a cada ponto dado pelo artesão. É possível notar que as obras formam gírias da periferia.

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Obras tecidas em crochê na exposição FAVELA-RAIZ.
Foto: Julia Bomfim/ESQUINAS

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Visão de baixo da escultura principal tecida em crochê na exposição FAVELA-RAIZ.
Foto: Julia Bomfim/ESQUINAS

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Escultura principal tecida em crochê na exposição FAVELA-RAIZ.
Foto: Julia Bomfim/ESQUINAS

A segunda parte é constituída por uma instalação audiovisual sensorial, por Topográficas e Coletivo Coletores, que permite uma visão periférica do cotidiano e da história da favela. Com vários enquadramentos, cortes e locutores, as cenas se interligam e dão a sensação de como deve ser a vida na periferia.

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Instalação audiovisual sensorial na exposição FAVELA-RAIZ.
Foto: Julia Bomfim/ESQUINAS

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Instalação audiovisual sensorial na exposição FAVELA-RAIZ.
Foto: Julia Bomfim/ESQUINAS

Já a terceira são os espelhos, uma instalação sonora produzida pelo rapper Kayode e o convidado Jailson de Sousa. A obra nos permite olhar além do que é refletido.

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O rapper Kayode (Joker).
Foto: Reprodução/Instagram do rapper Kayode

O rapper Felipe Kayode nasceu e foi criado no bairro da Vila Morse, entre o Jardim Colombo e a Paraisópolis, na Zona Sul de São Paulo. O artista nunca imaginou que a música o levaria tão longe, como diz em sua própria canção “Pedra da Memória”, que leva esse nome por conta do documentário homônimo, produzido pelo Maracá Cultura Brasileira.

O clipe de “Podcast/Pedra da Memória”, do álbum Flow da Pele (2022), foi indicado ao Grammy Latino em 2023 na categoria de “Melhor Vídeo Musical – Versão Curta”. Kayode conta para ESQUINAS como foi receber o convite do Museu:

“Esse convite foi algo inusitado, eu fiquei muito feliz, porque ele nasceu a partir de um vídeo que lançamos, como conteúdo promocional do lançamento de Flow da Pele. Era um vídeo de divulgação que tinha uma locução que explicava os motivos de eu lançar o Flow da Pele, então o pessoal do museu viu e gostou muito desse trabalho. Foi uma honra, porque eu nem sabia que existia um museu das favelas, foi algo que fizemos questão de apoiar, fomos à inauguração e nos apresentamos.”

Já na produção da exposição, a inspiração para Espelhos veio de casa, com lições de sua mãe. “Eu posso mentir para todo mundo, menos para mim mesmo.” No espelho, maquiado, fantasiado ou não, ele vai se ver, independente de como os outros o percebem. Não tem como disfarçar.

“E essa foi a ideia que ela me passou quando eu era criança e eu acredito que era o que precisava ser dito, em um ano pós pandemia, durante eleições, copa do mundo, fake news. Uma parada que ninguém acreditava mais em nada e nem em si mesmo. Eu via as pessoas querendo posar no instagram e mal na vida, todo mundo fingindo ser o que não é”, diz o rapper.

Kayode teve as primeiras referências de música a partir da família, com seus irmãos que eram muito ligados no samba e pagode. Também foi muito influenciado pela mãe, que dava aula de danças afro nos seus raros tempos livres, já que por conta do trabalho pesado de doméstica, a jornada era muitas vezes estendida.

Aos 8 anos conheceu o álbum  “Sobrevivendo ao inferno” dos Racionais MCs, apresentado por sua mãe. Dali surgiu um amor ao rap e à música da parte do menino. Já com o tempo, em meio a quebrada, os amigos e as rodas de freestyle, Kayode notou que tinha uma certa aptidão com as palavras, a música e a rima. O que era um passatempo, começou a ser uma carreira.

Com o nome “Joker”, ele iniciou no funk. Na periferia, o nome não foi muito bem aderido por conta da pronúncia, além de ser associado ao personagem fictício da DC Comics, o que atrapalhava o artista na divulgação de seus trabalhos.

“Com a maturidade eu vi essa fita, não fazia muito sentido eu usar um nome gringo que não me representava. Então, adotei meu nome de batismo mesmo que é ‘Kayode’. Também fui entendendo a questão da ancestralidade, identidade, negritude, o valor que tinha o meu nome, o porquê da minha mãe ter escolhido esse nome”, conta o artista.

Com seu desenvolvimento na cena, Kayode não se enxergava mais no funk. O ritmo, na época, ainda era muito pautado na ostentação, o que limitava a mensagem que queria passar e a produção dos beats, atualmente sua assinatura artística; uma mistura e coesão dos elementos afro e latinos nos ritmos.

Hoje, trabalhando a cada dia para se consolidar no gênero como uma referência, Kayode lança a versão deluxe de Flow da Pele. Ele comenta que a visão a ser passada para a próxima geração é que a arte periférica precisa ser valorizada, não apenas como um formato de negócio para ganhar dinheiro. A arte é sobrevivência, ela é a expressão da voz e da identidade do povo que sempre teve sua história contada pelo opressor. “Somos pontes para que os próximos possam alcançar os nossos sonhos também, como o BK diz ‘eu sou o sonho da minha vó e da minha mãe também’.”

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Capa do álbum Flow da Pele DELUXE.
Foto: Reprodução/Instagram do rapper Kayode

Se você não conhece o passado, está fadado a repeti-lo. Na música, o ritmo move cada melodia, enquanto na sociedade a frequência do centro sempre será diferente da periferia. Mas qual o ritmo que te move? Segundo o artista o problema está aí, quando não sabemos que ritmo exalamos:

“A quebrada funciona em um ‘ritmo’ e a cidade em outro . O Nego Max me disse uma vez: ‘São Paulo é um ritmo tão frenético que você não tem tempo de se perceber’. Então  eu preciso entender o ritmo do outro para colocar o meu. É sobre isso, compreender  que as coisas estão sempre em movimento, e que você precisa entender o seu ritmo, porque sem ele, você não tem paz.”

Depois de dez anos na cena, e com muito a alcançar, Kayode já se sente grato por tudo que conquistou, e principalmente por poder levar sua mensagem cada vez mais longe através da música e de sua participação em “espelhos” no Museu das Favelas.

“A minha ideia sempre foi justamente essa, ocupar lugares que não parecem pertencer a gente, mas na verdade são nossos. Foi muito gratificante ver parceiros meus, da quebrada, que até então nunca tinha ido em um museu, um teatro, chegar lá e dizer ‘nossa que legal!’, ‘quem fez isso?’, ‘como funciona!?’”, conclui Kayode.

Editado por Ludmila Borba

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