Roda de Samba no teatro? Martinho da Vila ganha musical como tributo - Revista Esquinas

Roda de Samba no teatro? Martinho da Vila ganha musical como tributo

Por Fernanda Nakazoni Gonsalves, Camilly Vieira da Silva e Giulia Helena Soares Dardé : novembro 26, 2024

Espetáculo agora ruma ao Rio de Janeiro, com estreia marcada para o dia 10 de janeiro. Foto: Giulia Helena Soares Dardé/ESQUINAS

Martinho: Coração de Rei entrega espetáculo carnavalesco, mas sem fugir de temas sérios da vida do compositor

Recomendamos a leitura ao som de Disritmia e Madalena do Jucú, nossas composições favoritas do próprio Martinho.

Unidos e Misturados

“O teatro é o mundo dentro do mundo”. Essa é uma das primeiras frases a ser recitada na peça, sendo introduzida pela cena de um contador de histórias que caracteriza a ancestralidade africana de Martinho: Coração de Rei. A peça, desde o início, estabelece uma relação metalinguística entre teatro e arte, sempre se comunicando com o público e quebrando a quarta parede.

Comentários como “Esse é um famoso recurso do teatro”, realizado pelo personagem que representa Noel Rosa, interpretado por Dante Paccola, é um dos muitos momentos em que os personagens falam diretamente com o público, com muito humor, gancho de atenção e carisma.

Quando sonhamos o teatro, sonhamos um mundo melhor

Em todas as cenas musicais, é notável o entrosamento e emoção da plateia. Crianças levantam e começam a dançar, mantos da Vila Isabel se destacam e um coro se inicia e se junta aos atores quando cantam.

Esse encanto provocado pelo espetáculo, também parte do carisma palpável de todos os atores e dançarinos em cena, tanto em relação ao público quanto entre eles. Almoços, itinerários culturais, conversas confidentes e brincadeiras fortalecem o vínculo entre o elenco e torna tudo mais leve e natural. “Acaba que o elenco torna-se o seu ciclo atual de convivência e amizade durante o período de temporada. Muitas delas se mantêm por muito tempo e outras se acabam com o fim da temporada”, compartilha Fernanda Godoy, que interpreta Cléo Ferreira, esposa atual de Martinho, e também participa do grupo de bailarinos.

Na Minha Veia

Além da óbvia história de vida de Martinho, sendo contada como um enredo carnavalesco, também temos a releitura da lenda de Ayan, orixá do tambor, que representa o cantor. Essa representação é pontual ao construir o roteiro da história de Martinho, já que África, ancestralidade e religião são peças fundamentais de sua essência.

Um elemento de extrema importância em sua construção como homem, é sua admiração e amor pela mãe, Teresa de Jesus, por quem até escreveu um livro, chamado Memórias Póstumas de Teresa de Jesus. Ela aparece em diversas cenas do espetáculo como um espírito, sempre o acompanhando nos momentos mais decisivos de sua vida e até em sermões, quando a personagem da mãe aparece repreendendo Martinho pela letra de Casa de Bamba.

Todo mundo bebe, Martinho?!

Todas as suas faces: o militar, o jogador de futebol, o cantor e o compositor, que são representados por quatro Martinhos, encenam juntos à mãe e cantam Pra Mãe Tereza, onde falas são repetidas por cada um em um jogo cênico, juntando todos em um Martinho da Vila.

Acender As Velas

Os militares vão acabar com tudo

O espetáculo é marcado por uma linha do tempo – as vezes não muito linear – que é utilizada como recurso dramatúrgico ao contar a história de Martinho. Diante disso, é necessário sublinhar o período político o qual grande parte do musical é desenvolvido. Martinho exerceu a função de militar por anos, como citado por ele “tenho uma família para sustentar”, ao conhecer uma mulher, carinhosamente apelidada como Russa. A mulher em questão se auto declarava comunista, iniciando assim, uma brecha para o início do relato sobre o golpe militar sofrido no Brasil.

Grande parte do espetáculo é vivido através das sombras do militarismo, acopladas com suas recessões, censuras e golpes. O compositor relata a dificuldade que sofreu ao manter amizades com pessoas de esquerda, tendo em vista que serviu as Forças Armadas durante treze anos. Um fator de grande impacto na história apresentada, é de que Martinho mesmo se mantendo nesse universo por uma necessidade financeira, não abriu mão de sua música, tampouco de suas ideologias.

Claramente, o teatro é político. Tudo que nos é apresentado é transformador, de certo modo. E apesar do protesto promovido ao período do regime militar de 64, o militarismo faz parte da história do homenageado. Ou seja, não poderia ser deixado de fora. Além de ser crucial para o desenrolar do enredo, como por exemplo, as invasões nas escolas de samba ou a censura de diversas de suas composições, números musicais de suma importância – não apenas para a beleza do espetáculo, mas para o impacto de quem o assiste – servem como escada para desenvolvermos como público, a noção da grandeza que é Martinho da Vila, além do que jamais deverá ser experienciado novamente no âmago de nossa sociedade.

Além da censura do período militar, Martinho nem sempre era aceito por suas músicas e as vivências que nelas colocava. E como nunca abandonou sua luta e seus ideais, respondeu a Samba de Crioulo Doido com o álbum Nem Todo Crioulo É Doido, rebatendo o racismo idealizado que a sociedade branca pregava na época.

Uma das cenas mais impactantes que acompanham essa turbulência e resistência na vida do cantor, é quando Alan Rocha, que interpreta o Martinho adulto, proclama:

Como se fala de brasil sem falar de indígena, sem falar de negro?

Coisa de Pele

Em Martinho: Coração de Rei, o palco é majoritariamente negro, dada a história e origem de Martinho, mostrando a essência do samba, da herança africana, da religião e de sua base de apoio.

“É um espetáculo que inspira muitos atores que como eu viram poucos atores negros protagonizando histórias. O trabalho do elenco, o enredo do espetáculo, a beleza dele tem mexido emocionalmente com o público e inspirados novos atores a se jogarem em suas experiências artísticas”, relata Alan Rocha.

Também são escalados alguns dançarinos e atores brancos para representar papeis específicos: Lícia Maria Caniné (Russa), Flávio Cavalcante, Cléo Ferreira e Noel, que demonstra insegurança em uma cena ao se juntar à causa racial por ser branco. Mas Helena Theodoro, intelectual especialista em cultura negra interpretada por Maria Antônia Ibraim, o assegura de sua importância como aliado, para dar voz e fortalecer a causa.

Essa é uma das muitas cenas onde o roteiro do teatro sofre “intervenções externas”, que passam a impressão de não se tratar de um espetáculo teatral, saindo um pouco da rota da história de Martinho e tornando a peça extraordinária.

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Canta Canta, Minha Gente

Martinho sempre foi um compositor nato, mas sua história e desenvoltura como cantor, aconteceu por um belo e gracioso acaso. As músicas que compunha, na verdade, não eram para ser cantadas por ele mesmo. Escrevia suas canções visando-as na voz de sua então amada Anália, que a título de curiosidade, é interpretada pela neta da real Anália Mendonça.

O compositor entra no mundo da canção, quando sua companheira decide que não irá mais gravar as músicas. Martinho se vê em um calabouço, onde precisa decidir se assume sua vocação como cantor, ou deixa de lançar suas músicas que eram tão importantes para a representatividade negra na época. Após muita insistência de amigos, gravadores e até da própria Anália, nasce Martinho da Vila cantor, que canta e encanta com sua poderosa e inconfundível voz.

Um destaque a ser feito é da voz de Alan Rocha, que espanta pela tamanha semelhança à voz de Martinho. É impossível não se arrepiar e vidrar os olhos em sua atuação e canto. A interpretação de Disritmia pode ser citada como um dos muitos momentos marcantes.

“Eu penso que o fato de também ser músico, gostar de samba e ter escutado muitos esses cantores há bastante tempo facilitaram o processo. Penso em tentar trazer a essência às personagens e no caso do Martinho muita gente já dizia que eu tinha o timbre que lembrava ele.”, comenta Alan ao ser questionado sobre a semelhança vocal de Martinho.

Mulheres

Além da estrada que o levou a virar uma lenda da música brasileira, Martinho foi marcado pela diversidade do amor, que o apresentou à paternidade com Anália, à política com Russa e à paixão e inspiração de Cléo.

Além de Anália e Russa, amores que passaram pela vida de Martinho, Cléo, interpretada por Fernanda Godoy, dá um show de romantismo e química enquanto canta “Pra Poder Te Amar” junto a Alan Rocha.

A atriz relata que as cenas românticas e a química do casal nascem da parceria e respeito, criando uma relação confortável que dá espaço às cenas românticas naturais. “Eu nunca havia trabalhado com Alan Rocha, não sabia como seria e a química é uma coisa que ou você tem ou você não tem. Neste caso foi bem natural, para minha surpresa”.

Alan complementa que as interações e brincadeiras fora do espetáculo também ajudam essa naturalidade. “Eu e Fernanda, que interpreta a Cléo, criamos muitas brincadeiras e conversamos bastante para que nossa verdade ficasse em cena. Pois a Cléo é a atual esposa e esse amor precisava ficar muito presente no palco”.

Um país, cujo trabalho artístico é extraído com tamanha dificuldade e descaso, em Martinho: Coração de Rei, somos arrebatados pelo conjunto de músicas, danças, cores, história e além de tudo, sua grandeza. O trabalho poético e inspirador trouxe a África e o samba ao público paulista e irá avançar para a capital carioca, terra de Martinho, no Teatro Riachuelo, de 10 de Janeiro a 23 de Fevereiro.

Editado por Luca Uras

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