Da favela aos edifícios, o que mudou na vida das famílias que foram beneficiadas pelo projeto habitacional
Há quase duas décadas, na época em que Paulo Maluf ainda era prefeito de São Paulo, a criação do projeto Cingapura teve muitas objeções, dentre elas as apresentadas no vídeo A cidade de São Paulo e o Projeto Cingapura, que criticou as propostas feitas, como o número insuficiente de apartamentos a serem entregues. Produzido pela Rede Rua de Comunicação em parceria com a Pastoral da Moradia, Central de Movimentos Populares e vereadores como Aldaíza Sposati, Arselino Tatto, José Mentor e Henrique Pacheco.
Ao descer na estação do metrô Carandiru, avistamos prédios com as cores laranja e branca, desbotadas pelo tempo. Após uma breve caminhada, alcançamos os portões azuis que limitam o espaço do conjunto. Dezenove anos depois e em número menor que o prometido, o Cingapura resiste.
Caminhando pelas ruas estreitas que compõem o interior do conjunto habitacional, conhecemos um pouco das vidas de seus habitantes. Com olhares curiosos e respostas curtas, poucos moradores aceitaram compartilhar suas histórias. “Todos aqui se conhecem”, comenta um homem de cerca de trinta anos, que não quis revelar seu nome.
Ao olharmos para cima, vemos algumas antenas que competem por espaço dentre a infinidade de camisetas, calças e bermudas. Cada bloco tem uma entrada específica, decorada à sua maneira, assim como muitas janelas que recebem a decoração de cortinas coloridas e flores.
Ainda receosos, os entrevistados preferiram manter seus nomes em sigilo, escolhendo responder perguntas sobre o Cingapura, e não sobre suas vidas. Ana* explicou que mora ali apenas por não ter para onde ir, já que a sujeira, o barulho e o uso de drogas são um tormento: “Antes, quando aqui era uma favela, os moradores respeitavam mais uns aos outros. Hoje em dia usam drogas na frente das crianças, sujam o chão e escutam funk alto domingo à noite. E se reclamar, ainda brigam!”. No entanto, a moradora explicou como a localização é um fator extremamente positivo, com a proximidade do Shopping Center Norte e da estação de metrô Portuguesa-Tietê.
Ana* nos convidou para conhecer sua casa. No hall do prédio, diante das escadas, comentou: “Aqui não tem elevador. Os idosos precisam subir essa escadaria todos os dias, assim como nós, carregando compras ou qualquer coisa que quiserem trazer para casa”. Durante a subida, notamos que as portas eram diferentes uma das outras, havendo, algumas eram de tábuas de madeira improvisadas na tentativa de manter a privacidade das famílias, outras ornamentadas e com olho mágico.
O apartamento de Ana*, localizado no quinto andar, é composto, como todos os outros, por uma sala, cozinha, dois quartos e um banheiro. Ela nos contou que recebeu aquele espaço totalmente vazio, sem pintura, apenas revestido com carpete. Além disso, relata como era complicado conviver com os cachorros de sua vizinha: “Aqui você pode ter quantos animais quiser, mas precisa de bom senso também, não é mesmo?”.
Os habitantes com quem conversamos demonstraram extrema gratidão pelo projeto e pelo ex-prefeito Paulo Maluf. No entanto, o que alguns acrescentaram foi que, com a mudança, tornou-se necessário o pagamento de contas e de uma taxa fixa de 57 reais, o chamado Termo de Permissão de Uso (TPU) para a Secretaria Municipal de Habitações, o que não acontecia anteriormente.
Alex*, morador do conjunto, que lavava seu carro em um dos estacionamentos, contou que para aquele lugar se tornar perfeito faltava educação entre os moradores. E que há pessoas sem condições de pagar outro aluguel levando mais de três famílias a ocupar o mesmo espaço. O morador lembra como achava que o fato de ter um endereço fixo o auxiliaria a encontrar um emprego, porém, depois de ter seu currículo descartado diversas vezes, acredita que habitar no conjunto acaba sendo um elemento desfavorável: “Não adianta tentar melhorar a imagem daqui, olha como está tudo desgastado! Não importa a fotografia que vocês tirem ou as palavras que vocês usem, o Cingapura vai continuar sendo visto de forma negativa”, conclui.
Direito à moradia
Uma das opositoras ao projeto de Paulo Maluf, Aldaíza Sposati, professora da Pontífica Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e ex-vereadora do Partido dos Trabalhadores (PT) explica o Cingapura ser tão criticado: “Maluf apresentou [o projeto] como se tivesse uma solução para a questão das favelas em São Paulo. Ele deu um número grandioso de conjuntos, fez uma forte propaganda que certamente era enganosa. Não havia condições concretas para efetivar aquele volume de habitações no tempo que ele prometia”.
Outra questão abordada pela professora é a continuidade na implementação de melhorias. Para Sposati, não há a infraestrutura necessária às famílias: “Me parece que houve o enfoque somente na construção. A ideia da manutenção do local, da continuidade, da adaptação e das relações ficou de lado”. A ex-vereadora acredita que a população deveria cobrar do Estado a qualidade anteriormente prometida.
Todavia, no senso comum se acredita que para quem nunca teve uma casa decente para morar, o oferecido à população se torna o suficiente: “Essa relação autoritária estabelece um ‘basta’, não admite que o outro queira qualidade”, critica Sposati.
Outra polêmica foi a presença de gás metano que ameaçou tirar os moradores de suas casas em 2011. Os habitantes que ficaram com medo de perder seu lar acusaram o Estado de querer se apropriar do terreno para construir apartamentos luxuosos, uma vez que a localização é central e privilegiada: “Tudo aqui em volta era lixão. Por que só querem tirar as pessoas do Cingapura? E o shopping Center Norte pode continuar funcionando?” indagou Ana*.
“Não vão nos tirar daqui. Já conseguimos contratar um advogado para nos defender” disse Alex*, com firmeza. Além disso, ele nos contou que todos os dias, funcionários da prefeitura medem o gás no local e que a quantidade de material encontrada não apresenta nenhum risco à segurança dos moradores.
Política segregacionista
A disposição dos prédios que compõem o Cingapura segue o padrão funcionalista e de produção em série: homogeneidade como fator barateador e o ordenamento em fileiras que visam à ventilação. Guilherme Wisnik, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP), mestre em História e doutor em Arquitetura e Urbanismo, afirma que o modelo era utilizado pelo socialismo, pois acreditava-se que, ao construir todos os prédios iguais, os indivíduos não se destacariam uns dos outros. Contudo, Wisnik afirma que essa forma de conceber a habitação popular acabou provando uma ideia muito menos igualitária e socialista. Visto que, na prática, tornaram-se lugares de segregação, não apenas pela estrutura e estética que revelam o caráter de moradia popular das construções, mas também por, normalmente, estarem em lugares afastados do centro da cidade. Neste sentido, o Cingapura Zaki Narchi é uma excessão. A produção em massa das edificações não vem acompanhada da manutenção e serviços básicos, como a segurança, que deveria ser provida pelo Estado, acarretando em consequências explicitadas pelo urbanista: “Acabam virando espaço de tráfico de drogas e prostituição. O que se percebe é uma inversão dos ideais modernistas com uma realidade de crime e segregação”, afirma.
Essa concepção de moradia popular pode ser interpretada como uma forma obsoleta e anacrônica. Em 1972, o enorme conjunto habitacional Pruitt-Igoe, nos Estados Unidos, em ótimas condições, foi demolido como símbolo do fim de uma política segregacionista. Esse fato histórico marca a passagem do modernismo para o pós-modernismo, segundo os pensadores Charles Jenks e Renato Ortiz, determinante para a estética arquitetônica que até então era marcada por formas geométricas, falta de ornamentações e repetições nas faixadas dos prédios. “Isto quer dizer que o mundo desenvolvido virou essa página em 1972 e nós não viramos até hoje. Estamos construindo Minha Casa, Minha Vida da mesma forma. E o Cingapura é um capítulo dessa história”.
*Os nomes indicados nesta reportagem foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados.