Como a pandemia interrompeu os planos e as expectativas daqueles que se preparavam para deixar a escola e seguir para a Universidade
“Todo mundo foi para casa achando que seria no máximo um mês, e agora estamos no oitavo mês e eu acho que cair na realidade aos poucos deixa você perdido”. Camila Ogata, 17, é estudante do terceiro ano do ensino médio do Colégio Anjo da Guarda São Rafael, escola particular de Taquaritinga, cidade a cerca de 350km da capital paulista.
Camila está entre os mais de 47 milhões de estudantes de escolas brasileiras que tiveram de sair das salas de aula ante a pandemia do coronavírus. Com as restrições impostas com o isolamento social, professores e alunos se viram frente a uma crise sem precedentes na história da educação: como compatibilizar a experiência de um ano letivo inteiro numa tela de computador?
Uma nova fase
Além de todas as dificuldades já sentidas de maneira generalizada, Camila é aluna do último ano do ensino médio, período decisivo para a conclusão dos estudos e que culmina na bateria de provas para ingresso no ensino superior. Nesse sentido, com o futuro dos próprios exames incerto, os planos e expectativas da aluna também tiveram que se adaptar à nova realidade. Se no começo do ano Camila planejava aproveitar as revisões na escola e focar nos vestibulares, a aluna viu seu aproveitamento cair ao decorrer dos meses. “Da questão da pandemia, a única coisa que eu espero é ir para São Paulo ano que vem”, narra. “Independentemente de passar na faculdade ou entrar no cursinho, estou ok com a ideia de entrar no cursinho, se necessário. Espero que a pandemia me permita isso até lá”.
E Camila não é a única que considera adiar o ingresso na universidade para 2022. De acordo com uma pesquisa divulgada em julho pela Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES), cerca de 39% dos estudantes já optaram pelo adiamento.
Outro fator que complica a equação, na opinião de especialistas da ABMES, é o desencontro dos calendários do ENEM e dos vestibulares das universidades particulares. Isso porque o Ministério da Educação anunciou a alteração das datas do ENEM, transferindo a aplicação das avaliações para o fim de novembro e os resultados para março de 2021. Todavia, a maior parte das universidades particulares manteve o calendário regular, com resultados divulgados antes do ENEM e, portanto, excluindo de seus editais a possibilidade de ingresso pelo exame, que é a porta de entrada exclusiva para programas como o ProUni (de bolsas) e o FIES (de financiamento estudantil).
Ainda segundo o estudo da ABMES, 76% dos entrevistados na pesquisa disseram ter interesse em fazer o ENEM exclusivamente para conseguir descontos ou bolsas de estudos numa universidade particular. Assim, o desencontro de calendários pode significar uma grande queda no número de ingressantes no ensino superior em 2021, ao passo que muitos contam com o ENEM para solicitar programas que os auxiliem a custear as mensalidades das particulares.
E essa realidade de evasão já é sentida nos cursinhos preparatórios. De acordo com Andreia Bertoleti, 22, professora de biologia e membro da direção do MedEnsina, cursinho popular oferecido por estudantes da Faculdade de Medicina da USP, dos 270 aprovados no início do ano, apenas 50 alunos têm acompanhado as aulas e lives ofertadas.
Veja mais em ESQUINAS
“Ah, mãe, tô vendo vídeo”: um depoimento sincero sobre educação remota
“É muito mais complicado conseguir seguir uma rotina de estudos quando você está em casa, principalmente para os nossos alunos. E você não tem uma obrigatoriedade como você tem numa faculdade, por exemplo – para sair [de uma graduação], você precisaria trancar o curso. No MedEnsina, não. Os nossos alunos só vão deixando de visualizar. Então não há uma evasão pronunciada, mas a gente percebe que são poucos os que interagem com a gente”, conta Andreia.
Questão coletiva
Para além da evasão e do cansaço por parte dos alunos, Andreia ainda narra a dura situação vivida pelos professores, que tiveram que adaptar o conteúdo às pressas e abdicar das práticas de sala de aula. Para Andreia, a falta do contato direto com os alunos é a grande perda da vivência do cursinho popular.
“O MedEnsina é uma extensão que faz muito bem para todo mundo que participa, e a gente perdeu a essência dele, de você conversar com o aluno. A parte que mais pegou [do ponto de vista dos professores] foi o emocional, até porque a gente sabe eles não estão conseguindo acompanhar. A gente fez um material que a gente queria dar presencialmente, pegar na mão e levá-los até onde eles têm que ir. O que ficou mesmo foi a decepção, a chateação por não poder dar o melhor para eles, e mesmo a gente dando o nosso melhor, não é o suficiente”, desabafa.
A falta do dia a dia do ambiente escolar também é sentida pelos professores e alunos da Escola Técnica (ETEC) Benedito Storani, em Jundiaí, localizada a cerca de 50km de São Paulo. A estudante Nicole Peromingo Ribeiro, 17, também no último ano do ensino médio, conta que recentemente um professor de filosofia teve uma crise de choro durante a aula. “Ele abriu o coração, disse que sentia saudades do contato”, narra a estudante. “Além de poucos alunos entrarem [nas aulas online], fica uma coisa muito impessoal, quase ninguém liga a câmera, quase ninguém aparece, quase sempre fica só ele lá. A gente tenta dar o nosso máximo, ficar com eles, abrir a câmera e tudo mais, mas às vezes tem a questão de privacidade, é meio fora de mão”, pondera.
Fim inesperado
O último ano do ensino médio é um importante rito de passagem na vida de um adolescente: é a despedida da rotina escolar, dos colegas que, muitas vezes, os acompanharam ao longo dos anos, e a preparação para a entrada na vida adulta. Ainda com a pressão dos vestibulares, o chamado “terceirão” é lembrado por muitos como um importante período de socialização. No entanto, ante a pandemia, a despedida do ensino médio será um pouco mais amarga para os concluintes de 2020.
“Me sinto péssima”, desabafa Nicole. “A gente passa três anos com essa galera, a gente cria muitos laços. A gente ficou sabendo que os cursos modulares [cursos técnicos] tiveram uma formatura delivery. Basicamente o aluno ia sozinho, pegava o certificado, dava a mão para o professor e ia embora. A gente está apavorado com essa possibilidade, conversamos com a diretoria e pedimos para ela deixar a colação para ano que vem, quando a gente puder fazer com todo mundo, porque seria bem mais triste do que a gente está agora.”
Se para as concluintes do ensino médio Camila e Nicole o ano não foi totalmente perdido e o cursinho em 2021 pode ser uma realidade palpável, a professora Andreia, do MedEnsina, vê que os maiores prejudicados com a pandemia foram os estudantes das escolas públicas. “Eu acho que a gente não conseguiu se adaptar da melhor forma possível. Pensando em todas as dificuldades que você pode encontrar na casa de um aluno de baixa renda, eu acho que, para as camadas vulneráveis, foi um ano perdido para a educação. Os nossos alunos, por exemplo, a gente conversa com eles e eles falam: ‘Poxa, logo no ano que eu parei para estudar acontece isso?’”, conclui a professora.
Encontrou algum erro? Avise-nos.