No centro de São Paulo, região da Boca do Lixo foi polo do cinema brasileiro e da liberdade criativa em meio à ditadura militar
“Nessas ruas, todos são donos da verdade cinematográfica.” A afirmação do diretor de cinema Ozualdo Candeias resume bem o que foi o quadrilátero que virou polo do cinema brasileiro entre as décadas de 1960 e 1980: a Boca do Lixo. Localizado entre os bairros da Luz, Santa Ifigênia e Campos Elíseos, o lugar que abrigou os maiores talentos da cinematografia do Brasil é hoje uma das regiões mais degradadas da cidade de São Paulo, a chamada cracolândia, notória pela presença de moradores de rua e dependentes químicos.
Boca do Lixo: nasce um ecossistema
A história do cinema da Boca do Lixo se inicia na década de 1920, quando chegam à região da Luz produtoras internacionais como Paramount, Fox e Columbia. A concentração de empresas do nicho no bairro se dava por conta da proximidade das ferrovias e rodoviárias através das quais os filmes eram transportados. Segundo Larissa Basilio, jornalista e autora do TCC Antropofagia Marginal, sobre a inventividade do cinema da Boca, “era só uma questão de logística”.
No mesmo momento, as duas maiores produtoras cinematográficas que atuavam no Brasil – Maristela e Vera Cruz – vieram a falir, deixando inúmeros membros da produção audiovisual brasileira desempregados. À época, São Paulo já formava uma cena independente de pessoas que frequentavam cineclubes na rua Sete de Abril, próxima do local. A partir disso, criou-se o polo cinematográfico da Boca do Lixo.
Larissa defende que formava-se ali um ecossistema do cinema: “Uma coisa muito interessante é que se você vir o quadrante da Boca, não é muito extenso. Na verdade, é bem pequeno, mas o lance é que ficavam lá porque era fácil achar uma pessoa que estava precisando de uma atriz, produtores e diretores que alugavam e trocavam material entre si.”
No entanto, essa mesma praticidade que levou o cinema à Boca do Lixo também era o que concentrava ali marginais e prostitutas. Retirados do bairro do Bom Retiro por violentas ações policiais do início da década de 1950, esses grupos marginalizados migraram para o bairro da Luz, onde passaram a conviver lado a lado com os principais rostos da história do cinema nacional.
O breve apogeu da Boca do Lixo
A partir daí, a região passa a atrair os que viriam a ser os maiores representantes do cinema brasileiro, criando uma arte inventiva e variada. Diversos gêneros foram explorados nesses anos de produção, sendo a liberdade criativa prioridade para os artistas, acima do lucro. Terror, cinema marginal, western feijoada, pornochanchada — na Boca, todos tinham vez.
Larissa pensa que o que faziam ali era antropofagia: “Se aproveitar do fato de que o Brasil está em uma frequência totalmente diferente da Europa e dos Estados Unidos e criar algo novo a partir deles.” Essa ideia de decolonizar a produção artística era ecoada pelo cinema da Boca do Lixo, que se utilizava de gêneros e influências do “primeiro mundo”, mas fazia uma arte brasileira, marginal e inventiva.
Cinema marginal: “o filme pode explodir a qualquer momento”
Para Larissa, o cinema marginal, um dos principais gêneros desenvolvidos na região, foi caracterizado por sua “linguagem muito diferente e única”, o que fez dele impune à censura da ditadura militar.
Em um momento crítico como o da ditadura e inserido na pobreza que assombra o Brasil até hoje, o movimento propunha uma nova forma de analisar o que vinha acontecendo ali. Segundo a jornalista, esses filmes tiveram o importante papel de gerar discussões sobre pobreza extrema, violência e repressão, mas de uma forma um tanto quanto velada.
Pornochanchada: subversão vestida de nudez
Ao lado do cinema marginal, a marca registrada da Boca do Lixo foram as brasileiríssimas pornochanchadas. Com todo o sucesso que fizeram, as comédias eróticas se tornaram o gênero mais rentável da Boca. A pornochanchada unia o cômico, o erótico e o crítico, subvertendo valores e satirizando a política na frente da ditadura, que não via nada.
De acordo com Larissa, “filme é matemática”. Isto é, “você precisa de dinheiro para fazer um filme e precisa que as pessoas o assistam para fazer o próximo”. A partir disso, se infiltraram as pequenas cenas eróticas que marcaram o cinema brasileiro da década de 1980.
“Tinha um apelo de ‘vamos fazer um filme meio pornochanchada’. Vários filmes do Carlos Reichenbach, por exemplo, têm mulheres nuas, isso é um fato, mas era comum ter uma menina lá lendo um livro em francês, recitando um poema super clássico e ouvindo música instrumental.”
Para a ditadura, o gênero servia como alienação do povo. Enquanto isso, por trás da roupagem de entretenimento vazio, diretores denunciavam a realidade e propunham uma arte subversiva.
O fim do “cinema fora da lei”
Foi com o fim dessa linguagem, ou melhor, com a entrada da pornografia, que veio a ruína da produção na Boca do Lixo.
Com o afrouxamento da ditadura, chega ao Brasil o cinema pornográfico americano, que passa a ter maior sucesso de bilheteria do que as produções nacionais. Somado a isso, veio a criação da estatal Embrafilme, que financiaria o cinema carioca, privilegiando-o em relação aos já decadentes filmes paulistanos.
Larissa acredita que o fim do cinema da Boca do Lixo tem como principal fator os entraves econômicos que o País viveu no fim da ditadura: “Não se pode esquecer que estamos falando de recessão econômica: produzir em si já é caro, então começa a se tornar inviável. São Paulo fica à mercê do que pode fazer por si mesma.”
Boca do Lixo como a conhecemos hoje
Assim, a região volta a ter como característica principal a degradação e o sucateamento. O descaso de órgãos públicos para com ela, em meio à crise pela qual o País passava no início dos anos 1990, fez com que o local, que até ali representava o maior polo cinematográfico do Brasil, virasse a cracolândia.
Jornalista e ativista da organização A Craco Resiste, Daniel Mello diz que os que sobraram ali foram “pessoas que não têm outro lugar na sociedade”: prostitutas, indivíduos com transtornos mentais, dependentes químicos e, principalmente, egressos do sistema prisional.
“Ali acaba sendo um grande aglutinador para essas pessoas. Chamam de ‘quarto de bagunça’, terreno baldio da cidade, onde você encaixa tudo o que você não consegue em outro lugar.”
Além disso, ele defende que o crack, como determinante da vivência na região, é uma questão mítica, que serve como forma de acobertar problemas estruturais do Estado. Segundo Daniel, antes dos anos 1990 sequer existia o que hoje se chama de crack, mas o local já era degradado.
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Apesar de breves tentativas de melhoria da qualidade de vida dos moradores da antiga Boca, a situação apenas piora. A partir de 2017, o descaso do governo se transformou em violência aberta e irrestrita, quando iniciaram ações higienistas que ocorrem até hoje, e que, segundo Daniel, são “baseadas na pancada.”
Para ele, a principal medida que deveria ser tomada pela prefeitura são programas de moradia. Mas, para melhorar as coisas de forma estrutural e parar de alimentar a cracolândia, seriam necessárias providências em relação ao encarceramento em massa e à legalização das drogas.
Daniel aponta que, na realidade, é uma questão de poder e capital: “Não é meramente ignorância. O discurso é o interesse, um que molda muito dinheiro.”