Três anos após ação militar no estado, residentes das comunidades apontam que os resultados obtidos foram muito distantes do prometido
“Em vez de modernizar, reformar ou mudar, a intervenção levou ao extremo políticas que o Rio de Janeiro já conhecia”. A conclusão pessimista é do relatório final do Observatório da Intervenção, iniciativa do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes (CESeC/Ucam) para acompanhar os desdobramentos da intervenção federal no Rio de Janeiro. Durante o período, houve um aumento de 33,6% nas mortes por intervenção de agentes do Estado. O número de chacinas também subiu significativamente: em 2018, foi 63,6% maior que o ano anterior, contabilizando 216 vítimas.
A reportagem ouviu quatro moradores de diferentes comunidades cariocas que comprovam a análise final. Mais: relatam como a ação supostamente contra a violência, decretada em fevereiro de 2018 pelo então presidente Michel Temer, ampliou as arbitrariedades cometidas por exército e polícia militar nas favelas.
Com duração prevista até o dia 31 de dezembro do mesmo ano, a ação tinha como objetivo “pôr termo a grave comprometimento da ordem pública no Estado do Rio de Janeiro”. Nomeado como interventor, o general do exército Walter Souza Braga Netto assumiu o papel de governador nas questões relacionadas à segurança pública. Durante os dez meses de intervenção, as forças armadas passaram a controlar todo o aparato policial, prisional e o corpo de bombeiros do Rio de Janeiro, assim como as políticas de segurança pública. Mesmo com a injeção de R$1,2 bilhões de verbas federais, a promessa da diminuição da violência não foi cumprida, e o resultado final foi longe do esperado.
“Tivemos, nesse período, o maior índice de mortes causadas por policiais desde 2008. Então, em questão de efetividade, é um grande problema, pois as pesquisas mostram um aumento da violência geral e da violência policial durante a intervenção. Foi um verdadeiro desastre”, afirma Edson Amaral, advogado criminalista e presidente da Comissão do Conselho de Segurança da OAB/RJ – 5ª Subseção. Até novembro de 2018, já tinham sido contabilizadas 1.444 vítimas feitas pelas forças policiais.
“O que dão pra gente é só bala, arma, polícia”
“Por mais que possa parecer chocante, quem é morador de favela acha extremamente natural a presença de militares”, relata Débora*, de 26 anos, moradora do Morro do Turano, na Zona Norte do Rio.
A jovem conta que a presença de forças armadas não foi uma novidade na comunidade em que vive. Mesmo antes da intervenção federal, o morro havia sido ocupado pelas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs).
“Desde as Olimpíadas até a Copa do Mundo, o Turano foi altamente militarizado por conta do território ao redor do Maracanã. Para a gente transitar pela rua, fazer a nossa rotina de sempre, precisávamos apresentar contracheque e comprovante de residência”, conta.
Mas, em 2018, o sentimento foi diferente, e ela pode notar rapidamente os impactos da ocupação do exército no seu dia a dia.
“Meu irmão tinha uma moto e acordou às quatro horas da manhã para ir trabalhar em Maricá. Nesse dia, tinham militares fazendo operação militar no morro, e foram esses militares que bateram na cara dele, jogaram a sua marmita no chão e o humilharam.”
No início da intervenção, viu sua vizinha orientando os filhos menores para que, nesse momento, ficassem mais tempo em casa, e pensou: “A política estava dando certo, deixem os favelados dentro de suas casas.”
Uma das promessas feitas durante a intervenção federal seria de que mudanças positivas seriam feitas nas comunidades. Primeiro, entrariam com a segurança, e depois viriam as políticas públicas para os moradores da periferia. Porém, Débora afirma que, na comunidade em que vive, essas mudanças não vieram.
“É um sentimento muito forjado pela mídia, porque ela fazia parecer que o Rio de Janeiro estava vivendo um período apocalíptico e o exército iria salvar a cidade de todos os males. Mas, com o passar do tempo, a gente foi percebendo que era diferente”
Assim, o que continua dentro do Turano é o pânico dos moradores por estarem sitiados por um poder coercitivo, “seja ele a polícia, o exército ou o tráfico de drogas”.
“O poder público não enxerga que a periferia é parte da cidade, somos um problema. Somos uma parte que enfeia, que suja, e que precisa ser eliminada da cidade. O que dão pra gente é só bala, arma, polícia. Não dão escola, creche, quadra para as crianças desenvolverem projetos sociais”, enfatiza.
Sobre o sentimento dos moradores em relação à figura das forças militares na comunidade, Débora usa a palavra “apavorado” para descrevê-lo. A sensação de impotência e vulnerabilidade se tornam superiores, e o resultado do encontro das polícias com os moradores é sempre imprevisível, apesar de sempre esperarem pelo pior.
“Mesmo que eu saiba que eu tenho meus direitos, eu também sei que no Rio de Janeiro eles dão um tiro na sua cabeça, escondem o corpo e já era, basta eles estarem afim. Esse é o sentimento”
Intervenção federal na Maré: “Eu ainda tenho esse impacto visual”
“Eu cresci aqui e nunca tinha enfrentado essa situação, de ver armas pesadas na rua durante o dia”, conta Ana Clara*, 22 anos, moradora do Complexo da Maré.
Ana conta que o primeiro impacto com a intervenção foi sentido logo no primeiro dia. A ocupação estava marcada para começar de sexta para sábado, e, nos finais de semana, acontecem os bailes e festas da comunidade, que logo foram cancelados por conta do medo que a população estava sentindo, afetando a renda de muitas famílias que dependiam disso para o seu sustento semanal e mensal. Mais do que apenas uma atividade de lazer, na Maré eles são uma forma de identidade: “É onde começa a comunidade, o nosso forte”.
Além do cancelamento dos bailes, Ana Clara conta sobre como o ir e vir dentro da comunidade foi afetado pela presença dos militares. Logo no início, foi imposto um toque de recolher, e esse foi um dos maiores choques sentidos pelos moradores. “A favela funciona 24 horas por dia e, a partir de um momento na ocupação, às 23h já não tinha mais ninguém na rua”, diz.
Fora a restrição de horário, o medo da violência, e de ser violentado, impediu que a jovem frequentasse lugares da favela que faziam parte do seu dia a dia.
“Eu tenho síndrome do pânico, e assim que o exército entrou eu fiquei uma semana sem conseguir sair na rua sozinha, sem conseguir ir para a escola. Eu me locomovo no morro pelos becos, e eu tinha medo de andar por lá, do que poderia acontecer, porque tinha chances de eu entrar lá de um jeito e talvez nem sair dali mais”, conta.
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Marcelo*, de 21 anos, conta que utilizava das redes sociais para saber se o trajeto para voltar para casa estava seguro no momento: “Abríamos o Whatsapp e apareciam notícias de operações da polícia em várias partes da comunidade, a gente ligava para a nossa família para ver se estavam todos bem e se era seguro voltar para casa naquela hora”.
Foi na Maré que aconteceram os casos mais famosos de violência e morte por policiais durante o período. Helicópteros, chamados de “caveirão voador”, estavam sendo utilizados como plataformas de tiro.
“As coisas só pioraram. Não respeitavam os moradores, aconteciam roubos, casos de dinheiro e itens que sumiram das casas dos moradores após as revistas da polícia. O Estado deu um alvará, deixaram fazer o que quisessem e não se importaram com a situação que estava acontecendo ali”, afirma Ana Clara.
Marcelo relembra, ainda, o dia em que quase se tornou mais um número para as estatísticas. Morador da comunidade desde pequeno, começou a vivenciar de perto as situações de violência em 2018, quando estava no Ensino Médio. Um dia, saiu de casa para ir para a escola e, assim que chegou no ponto, começou um tiroteio na rua de trás, que havia acabado de passar.
“Se nós tivéssemos demorado alguns minutos a mais, estaríamos no meio do fogo”.
A questão de violência em áreas próximas às instituições de ensino foi amplamente agravada durante a intervenção federal. Em 2018, uma pesquisa feita pelo Fogo Cruzado apontou que cerca de 170 instituições de ensino público na capital carioca estiveram próximas à linha de tiro em horário escolar. Esse número é 204% maior do que o registrado no ano anterior.
O Complexo da Maré é uma das comunidades mais afetadas pela violência e a guerra às drogas. Mesmo antes da ocupação militar, a presença do tráfico armado e a implantação das UPPs já eram graves ameaças à vida dos moradores. Durante a intervenção, 42 pessoas foram mortas por armas de fogo no local, e o ciclo contínuo de violência deixa sequelas ainda presentes dentro da comunidade.
“Eu ainda tenho esse impacto visual. De passar por baixo da Ponte do Pinheiro e conseguir visualizar o tanque do exército parado ali, com militares ao redor apontando suas armas para as vans, ônibus e pessoas, que eram paradas por qualquer motivo”, conta Ana Clara.
A jovem ainda não consegue entrar e passar por alguns lugares da comunidade até hoje, pelo medo de ser abordada da forma que era pelos militares dentro da favela. Essa é uma das muitas marcas deixadas pela violência que viveu durante esse período, mas ela relembra do sofrimento de amigos e vizinhos que também vivenciaram esse momento.
“Tenho amigos que não conseguem ver um tanque ou carros da polícia sem se urinarem, eles passaram por coisas piores que eu. Existem pessoas que tiveram as vidas literalmente marcadas, e temos desaparecidos que até hoje não sabemos onde está o corpo”, finaliza.
“Infelizmente, somos acostumados a viver dias assim”
“Eram dias intensos e até medonhos”, descreve Francisco*, de 23 anos, sobre os dias de intervenção federal na favela da Rocinha, a maior e mais famosa do Brasil.
Os impactos no seu dia a dia foram sentidos rapidamente. Estudante de Publicidade e Propaganda e trabalhando com telemarketing em uma empresa no centro da cidade, precisava enfrentar diariamente as checagens de identidade na entrada e saída da comunidade. Ainda, os tiroteios que aconteciam frequentemente durante o dia, em horário comercial, impediam a sua locomoção pelo morro, e era preciso faltar dias de aula e de trabalho.
“Houve um dia que, infelizmente, não consegui ir à faculdade e cheguei quatro horas atrasado no meu expediente, por conta de um confronto que durou o dia inteiro”
Francisco conta que o medo em relação às figuras militares sempre foi presentes na comunidade, mas que foi intensificado durante os dez meses de ocupação. Na Rocinha, soldados armados e tanques ficavam situados nas entradas da favela, trazendo a sensação de que “a qualquer momento, pode dar merda e acontecer uma guerra aqui”.
Mas, desesperançado, o estudante conta que cenas como essa não são incomuns, e já passam a fazer parte do cotidiano dos moradores: “Acredito que, por morar na favela, infelizmente, somos acostumados a viver dias assim”.
Intervenção Federal: “Em uma guerra se mata e se morre”
Com todos os quatro moradores entrevistados, o sentimento em relação à política do estado foi o mesmo: declarou-se uma guerra.
“O governo federal declarou abertamente uma guerra aos pobres, e em uma guerra se mata e se morre”, afirma Débora.
E, legalmente, eles não estão errados. A intervenção federal e a atuação das Forças Armadas dentro do território nacional constitui um grave debate dentro da esfera jurídica.
“O Exército não pode ser utilizado contra o cidadão. Ele é feito para ser utilizado contra inimigos, para proteger a segurança da nação. Esse lexo do inimigo é utilizado na guerra. Em uma democracia, não se pode ter a visão de que um cidadão seja um inimigo”, explica Edson Amaral.
A estratégia da militarização das periferias como política de segurança pública continua sendo utilizada, mesmo com sua efetividade amplamente questionada. Francisco relata que, com o final da intervenção, não sentiu grandes mudanças dentro da sua comunidade. “Apenas uma presença maior das polícias no morro, realizando subidas, ficando em algumas partes das estradas da Rocinha, e algumas checagens de pessoas subindo de carro e moto pela noite nos finais de semana”, conclui.