O primeiro país do Oriente Médio a sediar a Copa do Mundo FIFA enfrenta preconceitos e tensões voltados à cultura islâmica
“A Copa já é o maior evento esportivo do mundo, mas estar presente em lugares onde ela nunca esteve traz maior legitimidade”, diz o internacionalista e professor José Antônio Lima, destacando um dos possíveis motivos que levaram a FIFA (Federação Internacional de Futebol) a escolher o Catar para sediar a Copa do Mundo de 2022.
Com aproximadamente três milhões de habitantes, sendo a maioria moradores da capital, Doha, o Catar conta com uma população majoritariamente estrangeira, o que explica sua diversidade cultural. Segundo o professor José Antônio, o contato dos torcedores estrangeiros vai ser com uma população que já tem pluralidade, mas ainda retentora de muitos costumes e tradições diferentes dos ocidentais.
Religião e cultura do país
Por ser uma população com grande diversidade cultural, o internacionalista explica que ela se apresenta de forma “bastante heterogênea”. Com religiões menos expressivas como cristianismo, hinduísmo e budismo, o islamismo se destaca de forma predominante. Desse modo, é possível encontrar mesquitas no Catar com certa facilidade.
Atrelado a isso, a religião se expressa em diversos aspectos da sociedade, como nas vestimentas, tanto dos homens quanto das mulheres. O islamismo não permite que os fiéis mostrem em público muitas partes do corpo – para os homens, a região entre o umbigo e o joelho; e, para as mulheres, o corpo inteiro, exceto o rosto e as mãos.
Por este motivo, as vestes não podem ter nenhuma transparência e nem serem justas. O hijab, por exemplo, é uma peça comumente usada pela população feminina do país, consiste em roupas semelhantes às túnicas masculinas e, na cabeça, um lenço que deixa só o rosto à mostra. Entre os homens, ainda, recomenda-se também que tenham barba, para distanciar-se da estética feminina e assemelhar-se aos antigos profetas.
A artesã Letícia de Paula (44), adepta ao islamismo há mais de 20 anos, conta que enfrentou episódios de discriminação ao utilizar as vestimentas características do islã em terras brasileiras. “As pessoas têm certo preconceito, mas acho isso muito compreensível, acho que eu também teria, porque é uma coisa muito nova na nossa sociedade. Eu costumava usar um lenço que é similar ao das iranianas, que é preto e vai até a altura dos joelhos. Não era burca, porque a burca vai até o pé e tampa o rosto”, comenta.
Letícia, que começou a ter contato com a religião islâmica após os atentados de 11 de setembro de 2001, fala que, ao contrário do que muitos pensam, a religião islâmica não exige que seus seguidores cumpram estritamente regras quanto ao uso de roupas, por exemplo. “No islã, o profeta disse para cumprirmos com o obrigatório da melhor forma possível. Ou seja, não falou para fazermos do jeito que foi ensinado, mas do jeito que a gente consegue. Há mulheres que não conseguem usar o lenço. Há homens que não conseguem usar a barba”, finaliza.
Os turistas, segundo José Antônio, podem usar trajes ocidentais, mas não é recomendável vestir roupas curtas, decotadas ou coladas ao corpo para evitar ofensas à religião local. Nas mesquitas, mulheres devem usar lenço em volta da cabeça e ombros.
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Outro ponto que tem gerado polêmica entre cidadãos do chamado “mundo livre” são as expressões de afeto praticadas por turistas que vão ao Catar. A homossexualidade e demais expressões LGBTQ+ são criminalizadas no país muçulmano, o que naturalmente traz receio aos membros dessa comunidade que desejam ir ao evento da FIFA neste ano. José Antônio ressalta a delicadeza dessa questão. “Essa troca de afetos pode ser fonte de ruído e causar problemas, inclusive para casais heterossexuais”, diz ao referenciar o fato de que a troca de carícias em geral, independentemente da sexualidade, não é recomendada.
Já a gastronomia catari se destaca por sua ampla variedade, mas muçulmanos são totalmente proibidos de adquirir ou consumir bebidas alcoólicas. Os estrangeiros, por sua vez, estão liberados tanto para o consumo quanto para a compra em restaurantes específicos e hotéis, principalmente, os de luxo. No entanto, os preços são altos. Uma cerveja long neck, por exemplo, pode chegar ao preço de 50 qatari riyal (algo em torno de R$ 45).
Inclusive, o professor destaca que “o noticiário mostra que você vai ter uma disponibilidade de comprar cerveja, imagino, nas chamadas ‘fan zones’, áreas dedicadas aos torcedores. Mas entrar no país com álcool é proibido. Também não é possível comprar álcool fora do hotel para consumir no lugar”.
Expressão do Catar no futebol
O futebol é um elemento muito popular na cultura do Oriente Médio, e por mais que a maioria da população do Catar venha do sul da Ásia, em países como Índia, Bangladesh e Paquistão, onde o futebol não é tão expressivo, a seleção do Catar ganhou a Copa da Ásia em 2019.
Para José Antônio, o fato se mostrou “uma vitória surpreendente e que acabou de alguma forma servindo para movimentar a população local e destacar que o Catar tem condições de disputar grandes campeonatos de futebol, como a Copa do Mundo, ainda que seja uma seleção com limitações”.
Além disso, o Catar também expressa sua presença no futebol ocidental já que o Fundo Soberano do Catar é dono do Paris Saint-Germain, um dos clubes de futebol mais conhecidos na Europa e no mundo, com atletas no elenco como Neymar Jr. e Lionel Messi.
Devido a fatores como esses, quanto a animação do povo local para sediar a Copa do Mundo de 2022, José Antônio supõe que “durante um torneio com as maiores estrelas do futebol, sendo algumas delas as maiores do esporte como um todo, deve atrair o interesse de boa parte da população”.
Catar e sua relação com o Ocidente
O internacionalista explica que por mais que existam diferenças culturais muito significativas entre o país islâmico e os ocidentais, não se trata de um encontro de duas civilizações que não se conhecem. “Pelo contrário, a população nativa do Catar está bastante acostumada com o convívio com estrangeiros”, diz.
Além disso, o Catar vem se abrindo politicamente para o restante do mundo desde sua independência, em 1995. Algo que impulsiona esse contato com potências como Europa e Estados Unidos é, como colocado por José Antônio, o fato do Catar ser um “país bastante rico em recursos naturais, principalmente gás, mas que está localizado entre duas potências regionais: Irã e Arábia Saudita”.
Os conflitos entre essas potências, coloca uma expectativa sobre o Catar apoiar a Arábia Saudita, por serem países árabes, diferentemente do Irã, entretanto a abertura do país ao Ocidente vem justamente “porque são nos países ocidentais onde o Catar busca ferramentas para garantir a sua independência diante de potências tão significativas quanto Arábia Saudita e Irã”, segundo o professor.
Visão Ocidental
Aos 21 anos, quando decidiu dedicar maior atenção ao islã, Letícia de Paula observou como o ensino dessa religião é muito omitido no sistema educacional brasileiro. “Ao menos na minha época, não estudávamos nada sobre o Oriente, absolutamente nada. Quando estudei, fiquei encantada com a forma como os muçulmanos cresceram na história, como conquistaram territórios de maneira muito inteligente, sem oprimir os povos, diferente do que o cristianismo fez”, acrescenta.
Aos 23 anos, ela se converteu à religião, passo também seguido por seu irmão e sua cunhada, que já estavam mais familiarizados ao Alcorão (livro sagrado do islã). Na família, apenas os três se tornaram muçulmanos. De acordo com a artesã, o islamismo a fez olhar para o coletivo de forma mais eficaz. “As regras e limitações do islã me fizeram ser uma pessoa melhor, ajudando a me libertar de coisas que me ligam demais a essa vida terrena”, explica.
O Ocidente e seus aliados frequentemente enxergam países de maioria muçulmana, como é o caso do Catar, de maneira um tanto quanto dura, como apontado por Letícia, que relatou forte estranhamento por parte de brasileiros perante seu uso de lenços religiosos. Segundo a brasileira, muitas mulheres que gostariam de usar os lenços não o fazem por insegurança. “O Brasil é um país interessante. Somos acolhedores ao mesmo tempo que há um ranço velado de preconceito. Algo que fica por baixo do pano mas você sempre sente o cheiro porque está ali”, diz.
Em uma Copa do Mundo marcada por multiplicidades culturais, José Antônio destaca a importância da imprensa para o combate à desinformação, já que a falta de informações ou as notícias falsas a respeito de outras culturas podem ser combustível para episódios como os vividos pela brasileira. “É fundamental que a mídia tente retratar as pessoas, independente de serem turistas, nativos do Catar ou residentes estrangeiros, da forma mais cristalina possível”, comenta.
Além disso, ele completa que, por se tratar de um evento em um local “não-ocidental”, é ideal que o Brasil como nação “busque eliminar o máximo possível o olhar orientalista, de que é uma região diferente, com dinâmicas diferentes, em que nada é parecido com o que acontece no Ocidente. Esse seria o papel fundamental da imprensa: mostrar e aproximar povos”.