Jornalista Valmir Salaro e famílias envolvidas expõem desdobramentos do caso Escola Base, escândalo de abuso sexual infantil em uma escola em SP
“As pessoas veem a minha carreira como uma carreira de sucesso. Eu não me considero um repórter de sucesso”. Entre furos e prestígios, é com essa declaração, logo nos primeiros minutos do documentário “Escola Base – Um Repórter Enfrenta o Passado”, que Valmir Salaro,68, se permite retornar ao momento mais impactante de sua trajetória de 42 anos no jornalismo.
Centralizada no jornalista, que foi primeiro comunicador a divulgar o caso Escola Base, a produção original Globoplay estreia nesta quinta-feira (10). Vista como um dos maiores erros da imprensa brasileira, a repercussão do episódio trouxe acusações infundadas, sensacionalismos e violência.
“Esse é um documentário que nasce histórico.”
– Caio Cavechini, diretor da produção, durante a pré-estreia desta quarta-feira (9).
Era sábado, 26 de março de 1994. A redação da TV Globo recebe a denúncia de duas mães contra uma escola localizada na Rua Oliveira Peixoto, número 209, no bairro da Aclimação, Zona Sul de São Paulo. Os donos da Escola de Educação Infantil Base, Icushiro Shimada e Maria Aparecida Shimada, a professora Paula Milhim Alvarenga e Maurício Monteiro Alvarenga, motorista da Kombi escolar da escolinha, eram acusados de abusar sexualmente e realizar orgias com estudantes menores de quatro anos.
Após as denúncias, os acusados foram “enterrados socialmente” e a Escola Base foi depredada.
“Essa página na nossa vida dificilmente vai ser apagada.”
– Maria Aparecida Shimada à apresentadora Hebe Camargo, em julho de 1994.
Escola Base e o jornalismo brasileiro
Antes da exibição do documentário para jornalistas e estudantes, Rafael Armbrust, produtor e editor da Globo, conta para ESQUINAS sua experiência dentro do projeto. “Acho que o filme é a grande oportunidade de discutir o que aconteceu na época, o contexto do jornalismo, como a TV estava se abrindo, e é interessante fazer isso com Valmir, considerado o primeiro repórter a dar a notícia em larga escala, no Jornal Nacional. Então, ele ter esse peso e remexer nessa história é uma oportunidade de ouro, apesar de ser um desafio muito difícil de falar sobre.”
Segundo o editor, a parte mais complexa do desenvolvimento de “Escola Base – Um repórter enfrenta o passado” foi o contato com as pessoas envolvidas no caso, incluindo as famílias injustiçadas. Ricardo Villela, diretor de jornalismo da Globo, também destaca a coragem de Valmir Salaro em expor como ele lida com esse peso.
“Esse documentário não é sobre um erro e sim sobre uma culpa”, afirma Alan Graça Ferreira, repórter e um dos idealizadores da produção. Ele comenta que sempre pensou no projeto como um tributo ao jornalismo e aos seus profissionais que, antes de tudo, não são heróis, mas seres humanos.
Alan também destaca que o jornalista não é o dono da verdade, mas ele tem a obrigação de persegui-la e que o documentário busca, através da forma como Valmir lida com sua culpa, aproximar as pessoas do jornalismo e dos jornalistas. “Creio que nada melhor do que destacar a humanidade que nos molda como profissionais.”
Paula Milhim, dona e professora da Escola Base, aceitou participar do projeto e compareceu à pré-estreia do documentário. “Eu espero que isso seja uma lição para nunca mais vocês fazerem isso com a gente!”, exclama.
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Além de um documentário
Eliane Scardovelli, também diretora da produção, cita que a história apresentada no filme é um pouco diferente da estudada nas faculdades. Segundo ela, nesses ambientes, os tópicos são apresentados com um certo distanciamento, por vezes, até mesmo histórico. “Estando ao lado do repórter que deu a primeira notícia, a gente entende que a história é muito mais complexa”, comenta.
A diretora ainda destaca que o documentário homenageia os antigos donos da Escola Base já falecidos. “Eu acho que esse filme também presta uma homenagem para Maria Aparecida Shimada e Icushiro Shimada, que são gigantes.”
‘’Escola Base: um repórter enfrenta o passado” foge da proposta convencional de documentários, pois, ao mesmo tempo que busca apurar e investigar fatos do passado, e nesse sentido, contar uma história ao espectador, é também um pedido de desculpa, por parte da grande mídia, mas principalmente por parte de Valmir Salaro, protagonista do filme, que já há muito tempo carrega uma culpa, que em nenhum momento ele deixa de transparecer no longa.
Salaro conta que foi um grande desafio para ele, como jornalista e pessoa, reviver os seus erros: “Revisitar (o caso) foi muito sofrido, mas é um sofrimento que já me acompanha há muito tempo, desde quando eu descobri que a história que a polícia contava, e que as mães (de alunos da Escola Base) contavam não era verdadeira.”
Para o renomado jornalista e escritor Caco Barcellos, “Escola Base – Um repórter enfrenta o passado” aborda a relevância do jornalismo investigativo. “O [jornalismo] declaratório, que domina hoje a imprensa brasileira, é baseado em entrevista, em fala. No investigativo, luz própria, você tem que provar que cada palavra dita na entrevista é verdadeira, daí a importância de a gente refletir sobre isso.”
Valmir comenta que a mensagem que o caso traz à nova geração de jornalistas é levantar a discussão de até que ponto o profissional pode acreditar nas fontes, “mesmo sendo uma autoridade judicial, policial, ou um laudo do Instituto Médico Legal, que é uma prova cabal que ninguém discute”. Afinal, diz ele, “o furo é importante, ele é o sal da nossa profissão, mas acho que a gente precisa ter uma informação extremamente checada, verdadeira, ouvindo todos os lados para poder publicar. Foi o que não aconteceu no caso da Escola Base”.
O documentário humaniza a história trazendo as perspectivas atuais dos envolvidos no caso. Depois de quase 30 anos, Maurício Alvarenga, Paula Milhim e Ricardo Shimada – filho de Aparecida e Icushiro Shimada – conversaram com Valmir Salaro e puderam, finalmente, expor seus sentimentos. As cenas finais com o jornalista prometem reflexão do público sobre o perdão, descrito como uma ordem de Deus para Ricardo, que lançará o livro “O Filho da Injustiça”, com prefácio de Valmir, em 2023.