Com mais de 30 anos de carreira, a atriz e palhaça mineira relata sua trajetória dentro dos teatros até chegar à construção da sua personagem Malagueta
Minas Gerais é plural, o estado da região Sudeste tem o queijo da serra, tutu de feijão, Tiradentes e Ouro Preto. Porém, para Raquel Pedras, de 42 anos, o mais importante é um fato menos comentado: o de polo de teatro e palhaçaria do Brasil. “O artista é o grito”. Mas não só isso. Para a atriz e palhaça de Belo Horizonte, ele também é a revolução pelo riso.
“Se você quer tirar a arte de um povo, você quer calar e fazer com que o povo não pense”, diz ela. Com mais de 30 anos atuando no teatro, Raquel Pedras entende que a proposta artística é também uma intervenção, uma forma de pensar.
O começo
“Oi, eu queria saber do curso de teatro. Eu ainda posso entrar?”. Foi assim que a artista deu os primeiros passos nas artes cênicas.
Aos 12 anos conheceu sua grande mestra: a dramaturga Cristina Tolentino, então professora do curso de artes cênicas do colégio Dom Silvério. Diretora de teatro desde 1982, fundou cursos, grupos, fundações dedicadas às artes e ministrava aulas dos núcleos de teatro infanto-juvenil no colégio.
Raquel ingressou no grupo e acompanhou os processos da professora. As roupas, em geral pretas, e a braveza característica eram apenas a camada superficial de uma “super diretora e professora”, como diz a aluna e fã. A postura era, na realidade, “uma confiança, uma aposta, pois ela achava que a gente dava conta, mesmo sendo um bando de meninos”.
Cristina viu o potencial de uma artista na menina tímida que a questionava sobre o curso na hora do recreio. “A Raquel, uma querida e talentosa artista e uma grande pessoa, já trazia naquela época, mesmo sem ainda saber, uma paixão pelo teatro que ela abraçaria para toda a vida”, relata a mestra.
Ela lembra que foi por conta disso que escolheu a menina-adolescente para representar o personagem “O BOBO” em Aurora da minha Vida, a primeira peça teatral de Raquel. “Ela abraçou e deu vida, colocando seu sopro vital em um personagem bem complexo, além de ser um personagem masculino”, observa.
Esse foi apenas o começo para a garota. “As Troianas”, uma peça que narra o final da guerra de Tróia, foi um dos primeiros espetáculos marcantes de Raquel Pedras, no qual viveu uma das viúvas. “É um negócio ‘Punk’ mesmo, é uma loucura. Quem não conhece tem que conhecer o que é tragédia grega”, descreve Raquel.
Ela lembra que Cristina estava defendendo uma tese que tinha a ver com a montagem. Por isso, o grupo de teatro que a jovem artista de 14 anos integrava saiu de Minas Gerais com destino à Universidade de São Paulo (ECA/USP) para apresentar a peça.
“Pegamos o metrô às seis horas da tarde em São Paulo. Uma menina ficou para fora porque estava lotado e nós estávamos carregando as lanças do cenário. Nunca vou esquecer na minha vida”, relembra a atriz.
Teatro 24 horas por dia
Depois dos cursos teatrais no colégio Dom Silvério e no Palácio das Artes, centro de formação, produção e difusão cultural, Raquel decidiu participar da primeira turma de Artes Cênicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). A decisão foi tomada enquanto ainda estava na fila da inscrição do vestibular: “Me deu essa ‘pituca’ e eu falei ‘vou me inscrever nesse negócio’”.
Sua rotina atendia às artes: faculdade durante a tarde e períodos finais do Palácio das Artes. “Eu estava no céu, respirava teatro 24 horas por dia e era tudo que eu queria na vida”, relembra.
Raquel, então com 19 anos, estava em formação como atriz, assim como o curso da UFMG. “Quem não foi da primeira turma, não sabe o que foi fazer Artes Cênicas naquele ano de 1999 com aquelas pessoas e professores”, conta sobre essa construção.
Nesse período universitário, a garota também teve aulas com a mestra que havia conhecido anos antes. “Acredito que o que escrevemos juntas jamais se apagará. Estão inscritas em nossas memórias e sensações”, observa Cristina Tolentino. Para ela, é uma alegria saber que contribuiu para a formação profissional e pessoal de Raquel. “Só orgulho”, completa a professora.
“A arte é libertadora, na medida em que está aberta a todas as possibilidades de expressão, experimentação e vivência. O fato de ter contato com o teatro desde minha adolescência me faz a atriz que sou hoje, e, certamente constrói, diariamente, o ser humano que sou“, relata Raquel Pedras.
Aos 42 anos, Raquel considera que todas suas experiências em grupos de teatro contribuíram para que ela se tornasse uma artista de múltiplas faces e, até mesmo, do avesso. Em 2002, a artista ingressou no grupo de teatro Armatrux, onde trabalha até hoje. O grupo foi formado em 1991 e, desde o começo, promove espetáculos que vão desde o musical e o infantil até o tradicional e a chamada palhaçaria.
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“A palhaça Malagueta sou eu”
Quando Raquel Pedras ingressou no Armatrux, um núcleo de pesquisa já estava em andamento: a Sociedade do Riso. A iniciativa atua em regiões de vulnerabilidade social, hospitais e lares de idosos. Em diferentes situações, o trabalho é apenas ouvir e fazer divertir.
Foi lá, em 2003, que uma de suas personagens mais marcantes começou a ganhar forma: a palhaça Malagueta. “O palhaço tem esse lugar de ser ‘eu do avesso’. Ela não vem de outro lugar, ela não é uma coisa que eu construí”, reflete Raquel. “A Malagueta sou eu. É o meu coração pulsando, a minha dor de barriga e é a minha tristeza também”.
“Rir realmente é o melhor remédio, é revolucionário, igual o Paulo Gustavo falava. Quando você está triste ou chateado e alguém te faz rir, é uma mudança de estado. E o palhaço tem esse poder muito bonito de poder encontrar e fazer as pessoas se encontrarem, se verem de outra forma”
Para Eduardo Machado, 46, os palhaços têm a ver com as próprias personalidades de quem o vive. O ator é amigo de Raquel e integrou o projeto até 2020.
“Como artista ela é multifacetada. Ela é uma grande artista e consegue abarcar todas muito bem. Um artista necessita de todas as questões, o lado emocional, físico e mental”, observa sobre a amiga.
Rodrigo Robleño, 54, vive o palhaço Viralata há mais de 20 anos e é também é amigo de Raquel. Segundo o ator, a Malagueta é o que o próprio nome derivado de um tipo de pimenta, diz: forte, potente e tem vivacidade.
“É o que ela me traz. Essa força de vontade de falar ‘eu quero fazer, eu quero estar’”, explica o ator. “Um potencial de alegria mesmo na tristeza e uma força mesmo na fraqueza”, complementa.
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Malagueta é Raquel e Raquel é Malagueta. A atriz entende que o palhaço é construído de dentro e explica: “de tão para dentro que vai, nasce o nariz vermelho. É a carne”.
Para ela, a exposição existente quando se está de palhaço, faz com que a máscara deixe de ser uma proteção e se torne o contrário. “Como você está tão exposto, o outro se expõe também em certa medida. Assim, nasce o encontro”, afirma.
“O palhaço coloca todo mundo no mesmo lugar. Não tem diferença se é o doutor ou se é um menino que vai fazer uma cirurgia. Coloca todos no mesmo lugar de atenção, de escuta, de riso, de despir um pouco da carga que carrega”
“Fazer arte é fazer política, não tem como não ser”
Em 18 de outubro de 2021, o Armatrux completou 30 anos. “A arte serve para quê? Um grupo que vive 30 anos prova que a arte não é supérflua e eu acho que isso é fazer política”, comenta Raquel. Para comemorar, a companhia realizou um especial na sede cultural, o C.A.S.A (Centro de Arte Suspensa e Armatrux), localizado no Vale do Sol em Nova Lima, cidade periférica de Belo Horizonte (MG). O evento marca também uma retomada das atividades presenciais.
Ao longo dos anos, o grupo moldou-se com as artistas. Eduardo Machado retirou-se do grupo recentemente, mas enfatiza que ainda possui uma relação de intimidade e de aprendizado mútuo.
Rodrigo Robleño acompanhou a trajetória do Armatrux desde o início. Teatro de rua, circos, viagens e trabalhos com palhaços sempre fizeram parte da história do grupo, que tem como principal pilar o companheirismo. “Tudo funciona como uma associação de sócios, cinco ou seis fazendo as atividades artísticas, de produção e administração. Para viver da arte temos que fazer um pouco de tudo”, explica Robleño.
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Hoje, Raquel Pedras trabalha acompanhada de Paula Manata, Tina Dias, Cristiano e Rogério Araújo. “O grupo é feito por nós. Então tem um pensamento coletivo, é trabalhar em rede. É trabalhar e pensar coletivamente. Isso é um exercício difícil, mas incrível”, relata.
Todos eles afirmam que o palhaço é humano. Olhando seus anos na arte, Raquel entende que a humanidade se reflete em todos os seus trabalhos. “Eu lido com essa história de sentimento, de emoção e encontro. É a humanidade”, finaliza.
“O palhaço em si, para mim, ele representa muito da liberdade dessa revolução que é a alegria. Eu acho que o palhaço guarda isso, essa potência que é ser alegre, essa potência que é ser humano mesmo e rir disso”