Teatro em tempos de pandemia: a arte do encontro na era do desencontro - Revista Esquinas

Teatro em tempos de pandemia: a arte do encontro na era do desencontro

Por Ana Clara Platini Lambert, Gabriela Ferrari Toquetti, Isabela Novelli Maciel, Maria Fernanda Souza Petrizzo e Monique Rocha Lima : fevereiro 19, 2021

Um elenco de profissionais discute o que está em cena durante a pandemia e qual o futuro do teatro

Procure um lugar para sentar. Confortável, de preferência. Apague as luzes. Ouça os primeiros acordes da música que antecede o espetáculo. Ouça atentamente as recomendações antes da peça começar. Apure os seus ouvidos para escutar os três sinais.

🔊 Se não puder nos ouvir, ligue para nós. Não tenha medo.

🔊 Desabilite a sua câmera e seu microfone. E não compartilhe a sua tela.

🔊 Coloque os fones de ouvido.

Abrem-se as cortinas, ou melhor, as câmeras. O espetáculo já vai começar. Ou melhor, a reunião!

E se a reunião não funcionar, entre no Spotify, escolha um espetáculo, prepare seus fones e divirta-se!

Que tipo de peça de teatro é essa? Sem palco, que parece filme, é ao vivo, mas não é presencial?

É isso que acontece quando se quer entreter, mas não se pode encontrar o público. Quando o teatro fechou, o que sobrou foi a call e o podcast.

Elenco

Ian Noppeney — ator, formado pela Teatro Escola Célia Helena, teve sua estreia no mundo do teatro no ano de 2014 com o grupo Teatro Cego e participa de uma companhia teatral chamada Grupo Pano. Além de atuar, ensina a arte teatral para crianças e adolescentes em colégios.

Luciana Canton — cineasta formada pela Universidade de São Paulo, diretora premiada de vários longas-metragem, também é diretora da peça teatral Pagu: Onde Começa a Voz, seu primeiro trabalho com o teatro, na companhia Cardinal Seis.

Aguida Aguiar — atriz, cursa artes cênicas na Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo e faz parte da companhia de teatro Cardinal Seis.

Ato 1: Passado

Nossa história começa com uma visão saudosista de um passado não tão distante. O teatro ainda era um lugar de encontro, de contato, mas principalmente de conversa. Essa arte milenar de imitação da realidade atravessou gerações seguindo essa fórmula produzida através do calor humano, da vibração das cordas vocais e da presença do público, pertinho do palco, que se preparava para assistir àquela contação de histórias.

De acordo com pesquisa realizada pela consultoria JLeiva, especializada em cultura, esporte e investimento social, somente na cidade de São Paulo, no ano de 2018, eram 1.638 peças de teatro acontecendo em 277 espaços diferentes pela cidade. Em média, 42 apresentações por dia, totalizando aproximadamente 15 mil por ano.

O teatro é uma arte. Mas entrar nesse meio e sobreviver nele é muito difícil. “A produção no teatro é muito amadora, no sentido de que é muito difícil você fazer teatro em São Paulo, no Brasil”, diz Ian Noppeney. “Tem tão pouco apoio e incentivo, que a coisa chega a ser amadora. Mas a galera gosta tanto de fazer, o pessoal faz porque ama mesmo. Então a gente dá um jeito.”

No início da carreira, todo ator sonha em viver para a arte de atuar, viver ao estilo Charles Chaplin de A Vida É um Palco, mas a realidade nem sempre permite fechar as cortinas e esperar, feliz comendo sua pipoca, até que o próximo grande ato aconteça. Ian falou um pouco sobre a realidade do ator no Brasil: “Na faculdade eu trabalhei numa companhia em que a gente recebia salário mensal por ensaio e apresentação. Eu achei que estava tudo bem, se for assim eu consigo me manter. Só que não é assim, essa não é a realidade”. Para continuar com a vida nos palcos muitos atores buscam alternativas para o seu sustento. “A maioria do grupo, como eu, também é professor. A gente sobrevive com esse salário de professor para poder fazer o que a gente de fato quer também, que é fazer teatro”.

Mas, como na vida real não temos nenhum narrador para nos dizer quais serão os próximos passos de nossas personagens, saímos em busca de alternativas para continuar com a arte de atuar. É isso mesmo! Esconda o diretor, avise todos os atores, chame a produção, é hora de improvisar! Respeitável público, segure os chapéus e as lágrimas, o teatro está prestes a mudar!

Ato 2: Presente

O segundo ato começa com a aparição de um vírus mortal. Relatos chegavam de longe com mensagens assustadoras. Contagioso, pelo que diziam. As pessoas não poderiam mais se aproximar, a doença não permitia tais regalias. Onde o teatro poderia entrar nessa nova época? A imagem fria das câmeras e o chiado dos microfones era tudo o que restava para reunir os atores e o público, era a maneira mais viável no tempo em que vivíamos.

O vírus causou destruição. Segundo as estimativas da Associação dos Produtores de Teatro (APTR), 350 peças foram interrompidas com o início da pandemia, e aproximadamente 12 mil profissionais pararam, somente nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. As soluções encontradas você vê a seguir.

Assistir a uma peça de “teatro” pelo Zoom era, no mínimo, não-convencional. Naquele momento em que faltam quinze minutos para começar a obra, você espera ouvir os três “alarmes”, estar confortavelmente sentado em uma poltrona, olhar para o palco já iluminado e aguardar ansiosamente para que alguma voz etérea proveniente de uma caixa de som diga que os celulares devem estar desligados. O paradoxo já começa por aí. O novo palco se tornou um celular ou um computador. Agora ninguém mais diria para mantê-los desligados, a poltrona na frente do palco de madeira seria o seu sofá, cama, puff fofão ou qualquer outro lugar da casa com conexão de internet e silencioso o suficiente para que você conseguisse escutar algo.

Os atores começavam a aparecer, um por um. Mas no palco, que era o seu celular apoiado precariamente em um copo d’água cheio ou o seu notebook lutando contra o fio do carregador esticado, eles surgiam no “modo galeria”. Quase uma dezena de telinhas apareciam umas ao lado das outras, e os protagonistas, com suas câmeras apoiadas em uma escada e com uma lanterna pendurada de alguma forma inexplicável, encenavam o roteiro ali mesmo. Era como um filme, mas parecia teatro. Do outro lado da tela, o público, que podia estar em qualquer canto do mundo, assistia como se fosse um vídeo. Mas, assim como em sua outra inspiração performática, os imprevistos ocorrem. Uma vez, uma mulher compartilhou a própria tela durante o espetáculo e ninguém entendeu nada quando, no meio do monólogo, a tela do Chrome surgiu e os atores desapareceram. A atriz Aguida Aguiar, uma vez, ficou sem internet e foi para a casa da amiga para poder se apresentar.


O “palco” digital causou polêmica. Alguns achavam que aqueles atores falando através de câmeras e utilizando ângulos tão incomuns do vídeo não poderiam chamar o que faziam de teatro. Outros diziam que a arte deveria se adaptar de acordo com os novos tempos. Luciana Canton, diretora de uma dessas obras híbridas tão incomuns, iria apresentar a peça que sua companhia de teatro planejava há dois anos, sobre a ativista brasileira Pagu. Os planos não deram certo, mas a luz no fim do túnel foi tentar a sorte com o teatro online, no Zoom. Cada ator na sua casa, com cenários e figurinos próprios, tentando reproduzir a ambientação dos anos 1930. “A pior coisa é você não poder olhar no olho das pessoas, cenas com mais emoções são mais difíceis de dirigir, pois falam de coisas íntimas. Nunca é a mesma coisa na internet, é mais frio”, comenta a cineasta.

Já no caso da galera do programa Passando o Pano, originalmente produzido para o rádio e disponível também no Spotify, não aconteceu nada. No lugar, o programa JAIR (Junta Anti Inteligente de Ritler) foi ao ar. Uma intervenção militar, claro. Com muitos convidados fuzilados. E luta contra os comunistas. No começo temos um funk: “malfadados destinados ao fracasso/foi o teatro que enfim nos abrigou/mas lá também não tivemos sucesso/ fomos para o rádio que foi o que sobrou”. Foi essa a alternativa que o Grupo Pano encontrou para a pandemia. Um programa de rádio (e podcast).

Tudo dependia das vozes, que surgiam da caixa de som ou daquele fone velho em que só um dos lados funciona. Era uma piada, que também era crítica. Sinceramente, não se sabia se era para rir ou para chorar.

Ian Noppeney, a voz por trás das obras do Grupo Pano, trabalhava em uma pequena companhia de teatro, que agora tinha um programa de rádio e podcast. Peças sonoras, curtas, ironizando o tempo em que vivíamos. Ele achava a situação tão estranha que se recusava a falar que aquilo era mesmo teatro: “A gente deixa bem claro que não é teatro, é um grupo de teatro fazendo um programa de rádio, porque teatro na pandemia simplesmente não existe, […] então teatro por Zoom, por si só, é um fracasso contraditório, para mim. Eu acho inviável”.

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As ideias de migração para o online surgiram de repente, assim como a doença. Para Luciana, que planejava a exibição de Pagu, “transcrever a peça não foi difícil, iríamos estrear na data de nascimento da Pagu e aí veio a pandemia e decidimos adaptá-la pelo Zoom. Foi uma loucura, mas em três semanas conseguimos ensaiar, fomos experimentando e adaptando com o decorrer das apresentações”.

Ela acredita que a energia do público continua, mesmo online. Já para Ian o encontro presencial é fundamental. “A gente falou: pode ser uma maneira legal da gente se manter ativo durante a quarentena, uma maneira diferente, de um jeito que a gente acredite. A gente deixa bem claro que não é teatro, é um grupo de teatro fazendo um programa de rádio, porque teatro na pandemia simplesmente não existe”, diz ele.

E quando questionado sobre a democratização da arte para Ian, ele rebateu com a pergunta: “Você não acha que se eu tirar uma foto da Monalisa no Louvre e te mandar por WhatsApp é democratizar o acesso à arte? Porque, assim, é a Monalisa, mas não é, porque é uma foto dela. Então o que você viu foi um vídeo de teatro, você não viu o teatro, porque a experiência consiste em você estar dentro de uma sala vendo de fato uma outra pessoa”.

A casa virou cenário e palco. O figurino é o que você usa normalmente para sair de casa (em tempos normais). “Eu tenho que ressignificar esse espaço de lar e conforto para a cena. Estudamos takes de cinema e adaptamos. Por exemplo, tinha uma atriz na companhia que colocava o notebook em cima da escada e uma lanterna para poder gravar de cima para baixo. Ela transformou o banheiro em cenário para a peça”, comenta Aguida Aguiar, atriz da peça sobre Pagu, enquanto Luciana conta que a parte legal desse processo é essa ressignificação do ambiente doméstico. “É quase um alívio. Estou conseguindo sair daqui de algum jeito.”

As previsões nunca estiveram a favor dos artistas, nem antes nem depois. De acordo com Ian, “antes da pandemia o teatro já estava numa pandemia. A arte e a cultura no Brasil estão em uma pandemia há muito tempo, só não estavam em quarentena”. O futuro, entretanto, pode trazer boas novas, se o devido valor for atribuído a esse profissional.

Ato 3: Futuro

Apesar de tudo, há sempre esperança. Afinal, depois da tempestade vem o arco-íris. O futuro ainda é imprevisível, mas as boas notícias sempre encontram o caminho até nós: os teatros vão lentamente ganhando sua tão esperada reabertura. Aos poucos, voltam os encontros, o contato, a conversa. Finalmente, poderemos sentir o calor humano após tantos dias frios. Será que algo de bom pode ter vindo desse período sombrio?

A resposta para essa pergunta pode ser um pouco controversa, já que aponta para diversos possíveis caminhos. Luciana mostrou-se contente com o resultado das peças online, que, à sua própria maneira, expandiram o espaço do teatro, pois trouxeram espectadores de vários cantos do mundo. “Nosso próximo projeto será online e presencial, assim todos podem assistir. Acho legal podermos mesclar essas plataformas”. Ainda assim, ela reconhece que nada supera o contato possibilitado pelo teatro tradicional: “A tecnologia é linda, mas eu sou mais do ser humano e seus encontros”.

Ian, por outro lado, não enxerga futuro nas peças online. Para ele, a beleza do teatro está no encontro e, sobretudo, na novidade. De acordo com ele, todas as peças são diferentes umas das outras e fazer apenas uma boa performance não é suficiente: todas as sessões devem ser igualmente agradáveis para o público — e é esse o principal diferencial entre o teatro e o cinema. “No filme é só rebobinar. Você rebobinou e depois [o filme] volta. No teatro não. Amanhã eu posso estar muito mal, mas tenho que fazer a peça, e é outro público, então ele merece um espetáculo tão bom quanto o de ontem. E aí semana que vem eu vou ter que fazer a mesma coisa e essa repetição eu acho revolucionária.”

Aguida fica um pouco dividida quanto a essa “nova modalidade” de teatro. Ela acredita que o que se está fazendo atualmente não é nem teatro nem cinema, trata-se de uma experiência completamente nova. Ela também tem dúvidas em relação à continuidade dos projetos online.

As cortinas se fecham, as telas se apagam e os microfones se calam. O único movimento é o dos pensamentos inquietos diante dos novos modos de se fazer teatro. O que é isso, afinal? O artista alemão Joseph Beuys responderia com uma pergunta: “Como explicar arte para uma lebre morta?” Afinal, “explicar a arte” só a afasta de suas origens humanas. Somos seres sociais que se viram obrigados a viver isolados, vivendo dias que não são nossos. Toda e qualquer tentativa de trazer a humanidade de volta, mesmo que seja por meio de frias máquinas, deve ser aplaudida.

Amado público, nossa história chegou ao fim. Levante e siga com a sua vida, mas não se esqueça desse momento que ficou eternizado em sua mente, o teatro vive em você também. AH! Não se esqueça dos aplausos e, se não gostou, também aceitamos tomates!