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Por Breno Zonta, Yulia Serra, Beatriz Araújo e Larissa Rosa Edição #59

"É como se eu não prestasse"

Relatos de quem saiu da prisão e enfrenta diariamente barreiras na tentativa de reinserção social

Vozes desprezadas pelo sistema, cidadãos com um passado que os condena e um presente que pode não oferecer novos caminhos, são prisioneiros de uma sociedade incoerente. “Existe uma tabela de preços para a moralidade do ser humano”, critica o ex-detento Antônio*, que vivenciou as injustiças, incongruências e negligências do sistema prisional brasileiro.

Sete de setembro, um final de tarde chuvoso, duas realidades opostas se chocam na avenida paulista. Em nosso primeiro contato, Antônio* se dispôs a se locomover até onde fosse melhor para nós. O escadão da Gazeta foi o lugar escolhido. Usando roupas largas, barba branca e boné que cobre a ausência de fios de cabelo, ele se apressa em nos explicar o grande vão entre seus dentes da frente: “Foi em uma briga”. Ao sentarmos para conversar, o homem questiona: “vocês marcaram aqui porque não me conhecem e têm medo, não é?”.

Constrangidos diante da constatação de nossa escolha, tentamos negar sua afirmação.  Um “não” tímido e sem jeito foi o esforço que tivemos para contrariar a ideia que sabíamos ser verdade. De fato, o preconceito nos deixou com medo. Quando agendamos nosso encontro, tudo o que sabíamos sobre Antônio*, além de seu nome, era que havia sido preso. Não conhecíamos seu rosto e tampouco tínhamos ciência sobre qual infração o levara à prisão.

Preso aos dezoito anos por roubo, após cumprir a pena em regime fechado por quatro meses, hoje, aos 53 anos, Antônio* ainda encontra dificuldades para se reestabelecer na sociedade. Conta que entrou no crime por meio do uso de drogas e depois de ter saído da prisão continuou a cometê-los até seus 29 anos, quando o nascimento de seu único filho mudou o rumo de sua vida.

Pelo currículo formal, poderíamos dizer que Antônio* é um sujeito de Ensino Médio completo que vive atualmente sem nenhum emprego fixo. “As pessoas acham que bico é coisa de bandido”, reclama. Antônio* pode ser considerado um pensador, um falador e um revoltado também. Entre uma pergunta e outra achou os ganchos que precisava para tecer críticas ao judiciário, às Forças Armadas e aos meios midiáticos.

Reabilitação

Antônio* conta que, após sair da prisão, começou a ter consciência de seus direitos e chegou a conversar com aproximadamente 15 defensores públicos. Descobriu, a partir de então, a reabilitação criminal, prevista pelo artigo 93 do Código Penal, que garante ao ex-detento o sigilo a respeito de seu processo e condenação e retira os antecedentes criminais de sua ficha. O documento não é necessário caso o sujeito cometa uma nova infração e sua pena já tenha sido cumprida. Atestados ou certidões criminais não poderão ser fornecidos por autoridades policiais e auxiliares da Justiça. A conquista da reabilitação passou a ser um de seus maiores objetivos, que atribui o desemprego justamente à condição de ex-presidiário.

Recentemente, Antônio* passou por mais um processo criminal. Desta vez não era o réu. Ele processou o shopping onde trabalhou por alguns meses como fiscal depois que seus chefes tiveram acesso aos antecedentes criminais e passaram a deixá-lo em condições precárias de trabalho até, por fim, demiti-lo. “Eu passava as noites em um lugar afastado, tinha que andar uns 500 metros durante a madrugada se quisesse usar o banheiro”, relembra.

O resultado do processo, entretanto, o colocou de volta em seu lugar de réu: Antônio* foi condenado a indenizar o shopping: “discriminação é crime e isso não foi levado em consideração, mas sim o poder econômico daquele que estava sendo julgado”.

Além da dificuldade para conseguir um emprego formal e se manter nele, há o constrangimento a que foi submetido em abordagens policiais. Morador da periferia de Mauá, região metropolitana de São Paulo, relata as diversas vezes em que teve sua casa invadida sob a acusação de ser traficante e outras situações em que passou uma noites na delegacia até que descobrissem que ele não havia cometido nenhum crime. “Quando você tem passagem é diferente: você tem uma lepra social, vai ser sempre o cara podre, carimbado”, afirma.

Com o livro O que a bíblia realmente ensina no bolso, Antônio* conta que veio lendo durante a viagem de trem e diz que é fiel somente a Deus e ao seu filho de 23 anos. O ex-detento conta que gostaria que seu filho tivesse as oportunidades que ele não teve durante sua vida. E conta que gostaria de trazê-lo para passearem juntos na Paulista, enquanto encara, com certo encanto no olhar, o movimento da avenida. O medo e a insegurança cultivados durante todos esses anos em que foi tratado como um risco social, atrelados a uma baixa condição financeira, impede Antônio* de fazer alguns passeios banais ao lado do filho. “Eu me tornei prisioneiro, carcereiro, juiz e executor de mim mesmo”.

Diante das perguntas relacionadas às suas perspectivas para o futuro, ele é direto: “nenhuma”. O garoto de dezoito anos que queria entrar na Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx) para ser militar do exército — “não da PM”, enfatiza — , prestou vestibular para o curso de Direito na Pontíficia Universidade Católica (PUC) aos vinte e poucos anos, foi aprovado e não teve condições financeiras para se manter na faculdade. Hoje se mostra uma pessoa desiludida em relação aos próximos passos: “Vontade eu tenho, mas perspectiva não”.

Suzana*, de 22 anos, foi detida por guardar drogas de seu antigo companheiro e, por isso, cumpriu pena de dois anos / Foto: Beatriz Araújo

Mulheres encarceradas

Suzana*, de 22 anos, não estava disposta a conversar. Desconfiada sobre nossas intenções ao entrevistá-la, resistiu. Foi o irmão que a convenceu de que estava tudo bem em conceder a entrevista. Mesmo hesitante, nosso contato foi realizado em uma sala no local onde seu irmão trabalha.

Ela deixou explícito, logo de início, que não estava disposta a falar muito sobre sua vida. A postura de Suzana* era arredia e muitas vezes raivosa, como se enxergasse, à frente, uma válvula que poderia expor seus medos e anseios acumulados durante o período encarcerado.

Assim como centenas de outras mulheres no Brasil, Suzana* envolveu-se com um traficante e guardava as drogas produzidas por ele com a garantia de que sua participação se restringiria a essa função. No entanto, após uma revista policial no local onde moravam, houve uma troca de tiros, seu companheiro morreu e ela foi presa sob a acusação de tráfico de drogas. Suzana* foi enviada ao Presídio Feminino de Santana, maior complexo penitenciário feminino da Grande São Paulo, trazendo nas costas, além do trauma que vivera, uma pena de quatro anos para cumprir.

Dentro da prisão, se uniu a outras mulheres com histórias similares à sua, todas elas estavam ali por causa de seus companheiros. Ela conta de uma senhora que integrava o grupo de detentas do mesmo pavilhão e que, por ser mais velha, fazia o papel de mãe para muitas ali, inclusive para ela. A jovem lembra dos dias de visitação serem os mais complicados devido à revista vexatória a qual eram submetidos os familiares ao chegarem e as próprias presidiárias ao se despedirem.

De acordo com o levantamento da reportagem A população carcerária feminina não para de crescer, da edição de agosto de 2015 da Revista TPM, mulheres enquadradas no crime de tráfico de drogas representam 63% do encarceramento feminino no país — sendo a pena aplicada a quem comete este delito a de crime hediondo, com reclusão de cinco a 15 anos, em regime fechado. “A maioria das mulheres presas hoje por tráfico no Brasil ocupam papéis insignificantes no crime. Geralmente, elas guardam a droga de outra pessoa em casa e acabam sendo levadas nas batidas policiais”, diz o defensor público Bruno Shimizu.

A ex-detenta explica que, desde o primeiro momento em que foi presa no complexo, já imaginava sua saída: “Desde a hora que eu entrei só almejava sair daquele lugar. Pensava em fazer minha mãe sentir orgulho de mim de novo”, lembra. Para isso, entrou na fila para trabalhar em alguma das oficinas de artesanato oferecidas no presídio e, após oito meses, conseguiu uma vaga para produzir chinelos. É dessa forma que as presas de Santana conseguem uma ocupação e, a partir desta atividade, têm a chance de diminuir a pena a qual foram condenadas. De acordo com o Artigo 126 da Lei de Execução Penal, há a diminuição de pena para o condenado conforme tempo de trabalho ou de estudo.  Segundo o 1º parágrafo da norma, para cada três dias trabalhados, com jornada de seis a oito horas, é abatido um dia da pena. Foi assim que ela conseguiu diminuir a sua e, em dois anos, voltar para casa.

Suzana* sabia que sua vida fora das grades não seria fácil. Por sentir vergonha de si mesma, não mantem contato com sua mãe e, assim, foi morar com o irmão e a cunhada. Mesmo vivendo com a família, sente preconceito pelo seu passado. A cunhada, por exemplo, não permite que ela cuide da sobrinha por muito tempo. “Eu me sinto suja. É como se eu não prestasse mais. Como se eu não tivesse mais valor. As pessoas não me dão estima e pensam que não tem problema fingir que está tudo bem. A gente percebe”. Ela completa “Não quero que tenham pena de mim. Eu sei o que fiz, mas já paguei. Só quero ter uma vida normal”, desabafa.

Ela conta que foi à procura de emprego após ser solta e que chegou a fazer bicos entregando panfletos em faróis, mas foi dispensada assim que seu passado foi descoberto.

Os sonhos de Suzana* são conseguir morar sozinha, limpar o nome, dar orgulho à mãe e fazer enfermagem. “Acho que ainda tenho o direito de sonhar”, afirma.

O psicólogo Moisés Felipe, que trabalha com ex-detentos, afirma a importância de gerar oportunidades a essas pessoas: “Se trato os ex-presidiários como coitados, eu os coloco em um lugar de exclusão e, assim, sou preconceituoso, não enxergando quem eles poderiam vir a ser”. É importante entender que privá-los de oportunidades apenas aumenta os riscos de uma volta ao crime. “Eles querem o pão, mas o nosso trabalho no Centro de Acolhida da ONG Coordenação Regional de Obras em Promoção Humana (CROPH) é despertar neles a ideia de que eles podem aprender a fazê-lo”.

David* e Suzana* provavelmente nunca se viram, mas dividem a mesma realidade e a de tantos outros brasileiros. Eles seguem pagando por uma pena que veio depois daquela que receberam no tribunal: serem restringidos pelos olhares daqueles que sabem de seus antecedentes, e que os impedem de concretizar o sonho de um futuro melhor.