No sudoeste asiático, Mianmar vive uma ditadura militar há 100 dias
Eram seis da manhã em Mianmar, mas na Califórnia ainda eram cinco da tarde quando o professor Kenneth Wong ficou sabendo de um golpe de Estado em seu país natal, no sudeste asiático. De sua casa em São Francisco, no norte do estado americano, Wong acompanhou ao vivo, em 1° de fevereiro deste ano, o exército de Mianmar tomar o poder do país, alegando fraude nas eleições presidenciais de 2020.
“Fiquei sabendo do ocorrido antes mesmo dos locais. Afinal, muitos ainda dormiam. Assisti tudo por lives no Facebook, em que vizinhos do palácio presidencial transmitiam a invasão do exército e a prisão dos políticos opositores”, conta.
Desde então, manifestantes contra a ditadura militar são mortos em plena luz do dia. Até então, 780 mortos e 4900 presos foram registrados, segundo dados da Associação de Assistência a Presos Políticos (AAPP). Entenda esse e outros conflitos antigos que abalam Mianmar.
Instabilidade democrática em Mianmar
A antiga Birmânia foi colônia inglesa até 1948. Logo em seguida, virou palco de um golpe que pôs um governo comunista no poder. O comando do país foi trocado em 1962, quando ocorreu o primeiro golpe militar instaurado pelo mesmo exército que seria, até os dias atuais, protagonista na política de Mianmar.
Werna Marques, especialista em Direito Internacional e professora da UFPB (Universidade Federal da Paraíba) explica a sequência de acontecimentos: “Países recém-independentes possuem muita dificuldade em garantir uma estabilidade em suas democracias. Isso se aplica a Mianmar e a muitos outros ao redor do mundo”.
Durante esse segundo regime, surgiu, em 1988, Aung San Suu Kyi — filha de um general morto durante a independência. Desde então, ela é a figura política mais importante da nação. Naquele período, os militares cederam à pressão popular e abriram o país para eleições gerais, mas exigiram 25% das cadeiras do Parlamento.
“O exército sai da cena principal. Porém, com esses 25%, mesmo na retaguarda, ainda garantem seus interesses. Nesse meio-tempo, Suu Kyi já estava consolidada como esperança e futuro de um povo que, há muito tempo, lutava pela democracia”, analisa Marques. A ativista birmanesa se elegeu presidente, no entanto, antes de assumir, foi presa acusada de ser “revolucionária”. Em 1991, na prisão, ela venceu o Prêmio Nobel da Paz.
Ela ficou presa e isolada até 2010, quando diante de pressões da Organização das Nações Unidas (ONU) e de Barack Obama, presidente dos Estados Unidos à época, conseguiu sair. Dois anos depois, foi eleita presidente, mas novamente impedida de assumir, dessa vez por uma lei que não permite que birmaneses casados com estrangeiros assumam o cargo. Suu Kyi se tornou Conselheira de Estado, mas na prática governava o país.
Antigo-novo golpe em Mianmar
Após eleições gerais em 2020, que tiveram como resultado mais uma vitória do partido de Aung San Suu Kyi, a Liga Nacional pela Democracia (LND), Mianmar dava o maior passo de sua história rumo à liberdade. Em 1° de fevereiro de 2021, no entanto, os militares aplicaram outro golpe de Estado no país. Tomaram o poder, fecharam Parlamento e Senado alegando fraude na votação e prenderam opositores.
Entre eles, estava, novamente, Aung San Suu Kyi. Não se sabe muito sobre a situação da ex-Conselheira de Estado, mas ela se encontra em prisão domiciliar na capital Naipydo, e sem contato com o mundo externo.
Logo em 1° de fevereiro, os militares declararam um “estado de emergência” que duraria 1 ano, no máximo. Eles afirmaram também que uma nova eleição seria feita em breve e que o poder seria entregue ao partido vencedor. Para Marques e Wong, não se pode confiar na palavra dos militares. “Da última vez que o Exército prometeu ficar apenas por certo tempo, em 1962, prolongou seu governo até os anos 1990”, lembra a professora.
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Manifestações e repressão
Manifestantes se reúnem em diversos cantos do país para protestar contra a ditadura instaurada em Mianmar. Os atos são respondidos com violência por parte dos militares. 27 de março foi o dia mais sangrento desde o golpe. Os soldados abriram fogo contra protestos em cidades como Yangon — a maior do país –, e Mandalay, o que resultou em 114 mortos, incluindo crianças.
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A Associação de Assistência a Presos Políticos (AAPP), que atualiza diariamente os números desde o golpe, já contabiliza mais de 780 mortos e 4900 presos. Há relatos de marcas de tortura em alguns dos corpos que as famílias das vítimas conseguem recuperar. A organização frisa que esses são números documentados apenas por eles, e que a contagem “provavelmente está muito maior do que o que vem a público”.
Um símbolo se destaca entre os que tomam as ruas para protestar: a saudação dos três dedos. Popularizado em 2014 na Tailândia, quando manifestantes se reuniram indignados contra o poder supremo da monarquia do país, o gesto foi retirado da série de livros Jogos Vorazes, que viraria trilogia no cinema.
Como é comum nas ditaduras, a repressão se estende à censura da imprensa e da população em geral. Os birmaneses também sofrem, diariamente, com cortes e bloqueios na internet. E, quando possuem algum acesso, têm seus passos rastreados pelo governo. O professor Wong afirma que os locais vivem uma especíe de “autocensura”, evitando interagir por redes sociais conhecidas para evitar problemas. “Hoje, eu não me comunico mais com meus amigos e familiares de lá pelo Facebook Messenger, como era comum antes. Utilizamos o Signal [aplicativo de mensagens], que é criptografado e, consequentemente, mais difícil de ser rastreado”.
Repercussão internacional
Em contextos como o vivido em Mianmar, vem à tona o debate sobre uma possível intervenção externa no país. “A situação de Mianmar se assemelha bastante à da Venezuela, em que há uma pressão para que organismos internacionais se movimentem. Mas a ONU, por exemplo, historicamente evita intervir diretamente no governo de outros países, atuando apenas em questões humanitárias”, afirma a especialista em direito internacional. “O que pode ser feito é o lançamento de notas de repúdio, algo que infelizmente sabemos que não surte o efeito desejado”, completa.
Wong, no entanto, vê a interferência como necessária. “Essa discussão não deveria nem estar para debate, uma vez que o próprio povo pede por isso. Nas fotos dos protestos, os manifestantes carregam cartazes escritos ‘R2P’, ou seja, a população quer que a ONU intervenha diretamente através de uma coalizão pacificadora”.
A sigla R2P a que o birmanês se refere significa Responsibility to Protect, ou, em português, “responsabilidade de proteger”. Esse é um compromisso político assinado por todos os países-membros da ONU e que “busca acabar com as piores formas de violência e perseguição, procurando ajustar a realidade enfrentada por populações em risco de genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade”, como afirma o próprio site da organização.
Ao redor do mundo, protestos são organizados para promover uma conscientização global sobre a situação de Mianmar. “Eu e vários outros birmaneses participamos de protestos aqui em São Francisco. É importante para que esse assunto seja espalhado mundo afora e que, por consequência, seja debatido no Congresso e Senado americano”, afirma o birmanês. “Pressionamos os políticos para que atitudes sejam tomadas diante de tudo isso. Joe Biden [presidente dos Estados Unidos], por exemplo, já aplicou algumas sanções. Não é o ideal, mas já é algo”, opina.
Como o golpe foi aplicado com alegações infundadas de fraude eleitoral, o assunto também repercute expondo a possibilidade de o mecanismo ser replicado em outros países. Segundo Marques, esse artifício é utilizado em várias nações com o objetivo de ludibriar a população, como recentemente foi promovido pelo ex-presidente Donald Trump nas eleições norte-americanas de 2020. “É o que é conhecido como lawfare, um fenômeno jurídico em que são buscadas questões legais para deslegitimar uma eleição. Isso tudo deixa os eleitores muito confusos e provoca uma instabilidade”, analisa a professora. “Eles se utilizam de uma falsa retórica que, em certo contexto, até parece verdade, mas não é. De tanto ser repetido, a população aceita como fato”, conclui.