Especialistas explicam ocorrência de pico de energia repentino antes da morte, evento que ainda não possui consenso dentro da medicina
“Eu vejo esse fenômeno como um milagre”, relata Maria Eduarda Monteiro de Carvalho, 24, estudante de medicina, que acompanhou a recuperação repentina de um ente querido já no leito de morte, pouco antes de sua partida. “Meu avô estava muito deprimido, não conversava, não comia, não era ele. Por um dia, ele voltou a ser a pessoa que eu conheci a vida inteira e pôde se despedir de todas as pessoas. Isso foi muito importante para mim.”
Essa recuperação, popularmente conhecida como melhora da morte, é definida por uma melhora inesperada e quase instantânea no estado de saúde de pessoas gravemente doentes no período que antecede seu falecimento. Não há quaisquer dúvidas que episódios desse tipo impressionam, afinal, nos orientamos por constantes: nomeamos os dias da semana, nos é estipulado um horário de trabalho, fazemos planos para o próximo fim de semana e planejamos nossas férias com antecedência. Nossa sociedade não deixa muito espaço para aquilo que foge do previsível e, diante disso, procura, na Ciência, alívio para a inquietação motivada pelo desconhecido. Os casos, entretanto, não são concebidos de maneira consensual nem em meio aos profissionais e estudiosos da medicina; o tema os intriga tanto quanto aos leigos.
Maria Eduarda teve contato próximo com a melhora da morte através de seu avô Sebastião. Em 2019, aos 89 anos, ele esbanjava saúde e lucidez. Sua neta revela que ninguém acreditava que ele tinha uma idade tão avançada. Contudo, apesar de sua aparente vitalidade, ao final desse mesmo ano, o idoso começou a apresentar dores ósseas e dificuldade para se locomover e se alimentar.
Depois de uma consulta com seu médico de confiança, Sebastião passou por uma bateria de exames e surgiu a hipótese do diagnóstico ser câncer de próstata. Seu urologista recomendou que a biópsia fosse realizada apenas quando o paciente melhorasse um pouco, mas isso não aconteceu. Ele piorou e a família resolveu não realizar o procedimento, por acreditarem que isso poderia submetê-lo a um sofrimento evitável.
Internação em tempos de covid
No início da pandemia de covid-19, em março de 2020, Maria Eduarda saiu de Alagoas, onde faz faculdade, e foi para sua casa em Bezerros, Pernambuco, para ficar perto de seu avô, que adoecia de maneira impetuosa. Em junho de 2020, mês do seu falecimento, Sebastião teve um quadro de pneumonia e, devido às suas condições de saúde, o tratamento domiciliar através de antibióticos não fazia mais efeito. Enquanto isso, a família vivia um embate: queriam levá-lo ao hospital para receber um atendimento mais adequado, mas o medo de expor uma pessoa tão fragilizada ao contágio do vírus que tanto vitimava a terceira idade já no primeiro semestre do ano era grande.
“Acho que foi o pior dia da minha vida. Resolvemos levá-lo ao médico e ele teve que ficar cinco dias no leito de um hospital de campanha para a realização do teste de covid-19. Nós já sabíamos que era pneumonia, mas eles tinham que descartar a possibilidade. Quando o resultado deu negativo, meu avô foi transferido para receber os cuidados necessários que sua doença requeria. E aí vieram os últimos 15 dias de vida dele”, conta Maria.
A família ficou profundamente abalada. Em virtude da pandemia, as visitas ao hospital passavam por um controle mais rígido, portanto, só era permitido um acompanhante por vez. Foi uma situação muito difícil para todos que o amavam e queriam estar por perto, mas quem mais sofreu foi a filha de Seu Sebastião. Segundo Maria Eduarda, ele era a pessoa que sua mãe mais amava.
Em sua última semana de vida, o idoso já estava muito debilitado e encontrava dificuldade para dormir e comer. Apesar de passar o dia todo medicado, a dor era tão insuportável que a morfina não era suficiente e não mais o aliviava. Segundo a pernambucana, “parecia que ele não estava mais lá.”
A melhora da morte
Até que um dia, quando as esperanças já rareavam, o fenômeno aconteceu e Sebastião pareceu voltar para si revigorado. Em uma de suas visitas frequentes, Maria Eduarda se deparou com o avô sentado na cama, como não fazia há muito tempo. O idoso pediu que lhe trouxessem uma vitamina de abacate. Ao longo de seus 89 anos, Sebastião costumava tomar dois copos da bebida, que era sua favorita, pela manhã. Ele estava recordando os velhos hábitos. Depois de saborear aquilo que lhe era tão familiar, sentiu vontade de ligar para vários amigos e parentes. Demonstrava interesse em conversar e queria compartilhar a alegria de sua melhora repentina. A todo momento, dizia que voltaria para casa.
“Eu estava feliz. Já conhecia a melhora da morte, mas não a identifiquei naquele momento. Para mim, ele ficaria bem. Já minha mãe estava muito abalada e eu não entendia o porquê de sua tristeza. Mesmo que ela tivesse me explicado que aquilo não era normal e que se tratava da melhora da morte, eu permaneci relutante. Não queria acreditar”, expõe a estudante.
Entretanto, infelizmente, a mãe de Maria Eduarda estava certa. No dia seguinte, o paciente teve uma drástica piora. Não reconhecia ninguém, só ficava deitado e até chegou a perder a visão. Três dias após sua recuperação repentina, ele partiu.
A neta, desolada, buscou explicações através de sua religião, o espiritismo. “Dizem que isso normalmente acontece quando a família está muito ligada e não quer deixar a pessoa partir. Só que esse sentimento acaba atrapalhando o processo de desligamento do corpo. Aí, acontece a melhora da morte, que é como se fosse uma descarga de energia que faz a pessoa se restabelecer subitamente. Nisso, a família relaxa e o processo pode ser concluído.”
Recuperação antes da morte não tem consenso entre os médicos
Embora o debate seja bastante complexo, a medicina possui algumas explicações para essa melhora que antecede as últimas batidas do coração. A infectologista formada pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, Evanthia Vetos Mimicos, 60, relata que, na prática clínica, observa-se alguns exames laboratoriais que costumam ter uma melhora aparente e o paciente pode dar essa sensação de melhora clínica e uma maior lucidez. A médica recorda que um professor da faculdade costumava dizer que a morte era o estresse máximo do corpo físico e, portanto, liberava a última quantidade de energia que tinha para os momentos finais.
Em relação a como lidar com esses casos, ela explica que, na medicina, a morte é vista como a maior adversária e deve ser adiada a todo custo, mas isso vem mudando com os avanços da medicina paliativa, que enxerga o fim da vida como um processo que precisa acontecer da forma mais natural e confortável possível para o paciente. Sobre essa especialidade, a infectologista reforça: “É empenhada em promover o bem estar físico e emocional dos doentes e seus familiares nesse momento delicado de perda e dor. Levando conforto, consolo e minimizando o sofrimento físico do corpo.”
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A vulnerabilidade de um recomeço
A auxiliar de enfermagem Bruna Rodrigues dos Santos, 26, também já presenciou a melhora da morte em seu trabalho. Muitas pessoas, principalmente familiares, acreditam que essa recuperação rápida demonstra que o paciente de fato está ficando bem, mas Bruna esclarece que, em uma melhora real, o mais comum é que seja verificado um progresso gradual através de exames laboratoriais.
A melhora da morte: um adeus às famílias
A profissional explica isso em relação a sua área de maior conhecimento, a infectologia: “Normalmente, os sinais vitais estabilizam, a pessoa que está em coma pode até esboçar alguma reação ou interação, porque as infecções perdem força no organismo e isso caracteriza a melhora. Mas quando, de uma hora pra outra, a bactéria ‘vai embora’ ou em duas doses do antibiótico já está tudo resolvido, devemos desconfiar. Não é normal isso acontecer. Geralmente, só é possível notar uma melhora depois de três ou quatro dias que a pessoa já está sob medicamento.”
Bruna afirma que o mais importante nessa situação é ter a sensibilidade e o cuidado de lidar com os familiares do paciente a fim de passar o máximo conforto, já que é muito provável que não estejam esperando o óbito depois dessa evolução no quadro clínico.
Assim como Sebastião, várias pessoas passaram por isso. Foi o caso do ator Paulo Gustavo, uma das milhares de vidas ceifadas pela covid-19, entre tantas outras que soubemos nesse período tão difícil, no qual somos obrigados a conviver com a morte diariamente, em nossas famílias, local de trabalho, círculo de amigos, conhecidos e por meio dos noticiários. Quem vivencia a melhora da morte tem a oportunidade de voltar, mesmo que só por alguns instantes, ao que era antes do quadro clínico se agravar intensamente. Seja para se despedir dos entes queridos ou para ter um último momento de prazer, ainda que em uma atividade que pareça simples para pessoas saudáveis.