Antropóloga Adriana Dias analisa avanço do neonazismo brasileiro e sua silenciosa relação com Bolsonaro
Em julho deste ano, o The Intercept Brasil publicou uma reportagem com a seguinte chamada: “Pesquisadora encontra carta de Bolsonaro publicada em sites neonazistas em 2004”. O documento, datado de 2004, foi recuperado pela antropóloga Adriana Dias, uma das maiores especialistas em neonazismo no Brasil.
Em entrevista ao CAVHCAST, programa do Centro Acadêmico Vladmir Herzog, Dias comentou a descoberta e seu impacto no cenário político brasileiro, já que o documento pode comprovar a ideia de que a base bolsonarista é neonazista.
A antropóloga conta que encontrou a carta por acaso, enquanto se preparava para um colóquio sobre extrema-direita. “Levei um susto. Em 2004, o Bolsonaro não estava na minha visão, nem na de ninguém além dos neonazistas”, diz.
O documento foi publicado em três sites neonazistas. Além dele, Dias encontrou, em um desses endereços, um banner que direcionava ao site de Bolsonaro. Segundo ela, a internet da época permitia que os administradores da página do então deputado identificassem que parte significativa do tráfego vinha de sites neonazistas. “A partir da descoberta dessa carta, olho todos os finais de entrevista desse governo por outra ótica. Ele tem de fato um vínculo [com os neonazistas] desde 2004”.
Nazismo e neonazismo
Dias explica que existe uma diferença entre nazismo e neonazismo. O primeiro “foi uma política de Estado, houve um regime que se incorporou ao Estado. O neonazismo é diferente. Surge no final da Segunda Guerra Mundial, mas, como não é um movimento estatal, está pluralizado, então se internaliza. [Os neonazistas] se reúnem de maneira oculta, não oficial, proibida. Ficam numa camada não superficial do discurso social, mas existem em todo o mundo”.
No Brasil, as primeiras células neonazistas ativas remontam ao início dos anos 2000. Dias afirma que aqui o neonazismo adquiriu características peculiares — por exemplo, a xenofobia (isto é, a aversão a estrangeiros) assume a forma de um ódio aos nordestinos.
EUA versus Brasil
Nos últimos anos, observa-se uma franca ascensão da direita ao redor do mundo todo. Nos Estados Unidos, isso se manifestou com a eleição de Donald Trump, em 2016, e no Brasil, com a de Jair Bolsonaro, dois anos depois. Para Dias, tal fenômeno está alicerçado no esgotamento da credibilidade da esquerda, sob o argumento de corrupção.
É nesse cenário que ganham força teorias da cospiração como a do “genocídio branco” — que assume que imigração, miscigenação, integração racial, entre outros, estariam massacrando a população branca e dando espaço a minorias sociais sabidamente oprimidas, como negros, judeus e grupos LGBTQI+.
A diferença entre Estados Unidos e Brasil nesse sentido é que lá o apoio neonazista a Trump sempre foi abertamente declarado. Aqui, por outro lado, embora muitos suspeitassem do suporte neonazista a Bolsonaro, até a descoberta feita por Dias, não havia provas concretas que ligassem o presidente ao grupo.
“Internacionalmente, muitos lugares já colocavam ele [Bolsonaro] como neonazista, isso não é uma grande surpresa para muita gente. Mas não podemos entrar nessa de ‘surpresa zero’, isso é um marco, é um documento histórico, temos algo concreto agora”, reforça a antropóloga, num apelo para que a sociedade — em suas palavras — “acorde”.
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O combate ao neonazismo
A antropóloga salienta a necessidade de uma mobilização para combater o nazismo, embora reconheça que uma reação mais vigorosa talvez ainda não tenha aparecido em razão do luto pelas mortes da pandemia. Essa mobilização, ela afirma, não deve partir apenas das minorias, mas da sociedade como um todo, já que, segundo Dias, “uma hora ele [Bolsonaro] vai achar um motivo para destruir a todos nós”.
Para ela, a população está, de certa forma, um tanto entorpecida. Segundo a antropóloga, um fator que dificulta a reação proporcional aos atos inaceitáveis do presidente é que eles ocorrem em demasia. “Cada hora acontece uma coisa absurda, aí ninguém consegue pensar. Precisamos dar uma pausa e tratar disso, não dá para ter um presidente com esses vínculos [neonazistas]”.
Dias explica que, muitas vezes, as autoridades enxergam as manifestações neonazistas como algo isolado e pontual, ligado principalmente a jovens. No entanto, a antropóloga reitera que se trata de “uma rede conjunta, que demanda um amplo trabalho para ser combatida”. “A gente precisa criminalizar o fascismo”, ela completa.
Neonazismo e comunismo: mesmo patamar?
Quando se fala em repudiar o neonazismo, muitos alegam que, então, o comunismo tampouco deveria ser aceito. Dias, por sua vez, esclarece que não é possível comparar as duas ideologias, pois se encontram em patamares distintos. “Os comunistas são pensadores, Hitler não foi um pensador. Você não pode comparar filósofos com pessoas que escreviam contra a humanidade, tem um hiato gigantesco aí. Você não pode obrigar as pessoas a não lerem pensadores, aí você vai estar criminalizando o pensamento”, explica.
Quando questionada sobre o livro de Hitler, Mein Kampf (Minha Luta), ela afirma se tratar de um livro de caráter panfletário, e não uma obra estruturada de pensamento. “Temos que tomar muito cuidado quando falamos dessas questões, porque não podemos dar palco para defensor de nazista. Nazismo não é um modelo de pensamento, é uma prática de devastação humana. Só pode ser tomado como prática de pensamento o que considera toda humanidade como humana”.
Desnazificação e memória
Dias relembra o caso da Alemanha, onde o nazismo e o Holocausto são relembrados nas escolas e em monumentos a fim de não jogar no esquecimento uma parte da história e não abrir espaço para repeti-la. Lá, além de um intenso processo de desnazificação, valoriza-se a memória como meio de reflexão e aprendizado em relação ao passado.
Ela reforça ainda a importância do diálogo como forma de prevenir extremismos: “Acho que quanto mais nos comunicarmos, quanto mais a educação evoluir e desenvolvermos empatia, mais vamos saber responder a genocidas. Gostaria que fôssemos [um país] cada vez mais diverso, porque com certeza muito menos perto de genocidas nós estaríamos”.
A antropóloga conclui com um pedido: “Peço agora que todas as pessoas que são a favor do pacifismo ajudem a baixar essa cerca de ódio para a gente poder conversar. Senão, as eleições de 2022 não vão ser só as mais violentas, mas podem ser sangrentas”.
Para assistir à entrevista na íntegra, acesse o link.