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Por Mattheus Goto e Thiago Bio Edição #66

Um "devasso" longe do paraíso

João Silvério Trevisan abriu caminhos para o movimento LGBTQI+ brasileiro e se tornou referência ao revelar parte da história “escondida”da homossexualidade no Brasil

Sala com pé-direito alto, pinturas nas paredes até o teto e um chão de taco escurecido pelo tempo. Uma porta envidraçada dá para uma biblioteca abarrotada de livros. Passam dos mil, pelas contas do dono, um homem de 75 anos que veste uma camisa azul presa dentro das calças de sarja cinza. É neste apartamento no Centro de São Paulo, próximo à Praça da República, que vive, há 18 anos, João Silvério Trevisan.

Ativista da comunidade LGBTQI+, foi um dos precursores do movimento no Brasil entre os anos 1960 e 1980. Com carreira no cinema, jornalismo, literatura e dramaturgia, os holofotes só acenderam para ele alguns anos após escrever Devassos no Paraíso, livro que se consagrou, entre controvérsias, como “a Bíblia gay” brasileira. A obra é um estudo sobre a homoafetividade no País desde os tempos da colônia, servindo como inspiração para pesquisas sobre gênero e sexualidade.

Segundo a Companhia das Letras, atual editora do título, foram impressos nove mil exemplares da quarta e mais recente edição do livro. “Devassos no Paraíso continua sendo atual. Foi publicado pela primeira vez em 1986 e, costumo dizer, já nasceu clássico”, comenta Daniela Duarte, editora da última edição. Quando o grupo decidiu republicar o livro em 2018, ele já estava fora de catálogo há alguns anos e era disputado nos sebos pela atualidade dos seus questionamentos e reflexões.

“O livro é uma referência para as novas gerações, que recebem um tremendo apoio com a leitura de relatos de histórias de outras pessoas que passaram por experiências semelhantes”, explica o historiador brasilianista James Green, professor de História do Brasil na Brown University, nos Estados Unidos. “É o melhor levantamento histórico do movimento e da vida LGBTQI+ no país”, pontua a cartunista Laerte Coutinho, que se sentiu honrada com o convite para ilustrar a capa da quarta edição.

Embora discorde da percepção geral de sua obra, Trevisan comenta que se sente satisfeito por, finalmente, ter encontrado interlocutores. “Não há nada em Devassos que diz o que a comunidade deve ser. Pelo contrário, é um livro provocador. Quando preciso, faço críticas à comunidade e ao movimento”, afirma. Ele, que era visto no século 20 como um autor reacionário, foi renegado tanto por membros da comunidade LGBTQI+ quanto pela ala intelectual, mas começou a ser aclamado por novas gerações de leitores. “Os jovens descobriram os seus direitos e resolveram lutar por eles. Nesse momento, foram atrás do Devassos”, analisa. As reações dos novos leitores ao verem Trevisan são muito contundentes. “Eles pedem autógrafo, querem me abraçar e tirar foto. Eu nunca tive isso”, relata.

“Até hoje sou um cara muito atormentado pela busca da minha própria verdade,[..] do sentido do meu mistério
Matheus Goto

Para essas gerações, o escritor é uma referência. “Ele abriu trilha e deu início aos discursos gays no Brasil”, comenta Pri Bertucci, fundador da Marcha do Orgulho Trans de São Paulo e do projeto e conferência internacional Ssex Bbox, que procura dar visibilidade às questões de gênero e sexualidade focando nas temáticas LGBTQI+. O ativista convidou Trevisan para um debate na primeira edição da conferência, em 2015. “Os jovens não podem esquecer de quem veio antes da gente”, alerta Bertucci. Ele conhecia as obras do escritor e seu trabalho no Lampião da Esquina, jornal homossexual brasileiro que circulou entre 1978 e 1981. O ativista não considera Devassos uma Bíblia LGBT, talvez uma Bíblia gay, mas assume a relevância das atualizações pelas quais as 726 páginas passaram desde a primeira publicação.

Livro “A idade de ouro do Brasil”
Reprodução

Na capa de Devassos no Paraíso, Laerte Coutinho resgata expressões atuais da vida LGBTQI+
Reprodução

Os 75 anos não impedem que Trevisan continue na ativa. “Tenho trabalhado como uma besta, querendo descansar e lutando pela sobrevivência”, assume. Seu trabalho mais recente, lançado em novembro de 2019, colocou nas prateleiras das livrarias a 13ª obra de sua carreira literária. Com narrações e descrições cinematográficas, o roteiro de um filme da década de 1980 que nunca saiu do papel se tornou A Idade de Ouro do Brasil. Suas 212 páginas trazem uma disputa de poder entre políticos e seis travestis, sob o cenário da São Paulo e do Brasil de 2009.

Trevisan nasceu em 1944, na cidade do interior paulista de Ribeirão Bonito. Sua família era tradicional e conservadora, mas sem raízes religiosas. Aos 10 anos, tomou a decisão de estudar em seminário. “Minha ida teve muito a ver com a necessidade de fugir da minha casa. Eu apanhava muito do meu pai”, recorda.

O trauma deixado pela figura paterna se coloca de forma recorrente em todo o seu relato à ESQUINAS e inspirou a escrita de Pai, Pai, livro lançado em 2017 dedicado a essa relação conturbada. Sobre sua ida ao seminário, ele pontua que seu progenitor “achou péssimo, o fim da picada”. Como o primogênito de quatro irmãos, tinha que responder às altas expectativas do pai. “Eu o decepcionara muito, porque ele queria um filho muito ‘macho’, coisa que eu não era e não tinha a menor vontade de ser”, diz. Essa relação turbulenta culminou na sua partida e durou até seus 20 anos de idade, quando retornou ao lar. “Nesse tempo, ele jamais me visitou, jamais mandou uma carta. Era como se tivesse cancelado a minha filiação”, relembra.

Mesmo sendo considerado um pecador para a religião, esse período foi fundamental para a sua relação com a própria sexualidade. Chegou a ter “grandes amores” com colegas do seminário. “Nunca houve propriamente um relacionamento que fosse sexual, até por ser proibido. Era uma coisa muito platônica, terrivelmente amorosa, sofridamente apaixonada”, expõe.

Só depois que saiu de lá contou para parte da família sobre sua sexualidade. “Nem deu tempo de revelar [para todos], mamãe faleceu com 50 anos. Com o meu pai, mesmo que eu quisesse, não havia nenhum clima, ele não estava minimamente interessado”, explica o escritor. Para seus irmãos, contou na década de 1970, aos 30 anos. “Alguns foram mais compreensivos, outros menos. Não era uma coisa que me afetava tanto”, desabafa.

O escritor era considerado reacionário ou pornográfico pela comunidade acadêmica

O irmão caçula Antoninho Trevisan, entretanto, afirma que não havia preconceito dentro de casa. “Para mim era muito natural, nunca parei para pensar nem passou pela minha cabeça. Ele continua sendo o intelectual que eu mais respeito na minha vida”, diz. Antoninho seguiu outro caminho: é empresário e tem uma escola de negócios, mas não perde um lançamento das obras do irmão, como aconteceu com A Idade de Ouro do Brasil.

O questionamento acerca do ser o acompanhou durante sua trajetória – e o acompanha até hoje. “Depois que saí do seminário, perdi todo o interesse em definir o divino, mas minha preocupação continuou. Até hoje sou um cara muito atormentado pela busca da minha própria verdade, da compreensão de quem sou eu, do sentido do meu mistério”, afirma.

Trevisan se arriscou no cinema, participando da concepção de seis filmes, curtas, médias e longas-metragens. Uma de suas obras – Orgia ou o Homem que Deu Cria (1971) – foi proibida pela censura da Ditadura Militar por mais de dez anos. Estava deprimido em função do contexto político brasileiro e sem perspectivas para tomar medidas mais drásticas. “Eu me sentia muito perdido perante, inclusive, a esquerda brasileira, que me parecia extremamente autoritária. Saí do seminário em articulação com um projeto antidogmático, por causa da experiência que tive na Igreja Católica”, afirma. Aproveitou a circunstância para sair do País, conhecer o mundo e encontrar o que lhe faltava no Brasil.

Das terras tupiniquins, partiu para Berkeley, na Califórnia, local de forte ação da contracultura e dos movimentos sociais norte-americanos. A cidade fervilhava com as lutas dos Panteras Negras, LGBTs (na época, limitados à simples classificação de homossexuais), feministas, socialistas e até mesmo ambientalistas. Segundo Trevisan, foi esse período fora que lhe trouxe um novo olhar quando retornou ao país natal, ao mesmo tempo que o afastou ainda mais da “esquerda ortodoxa e autoritária”.

Foi na cidade californiana, em 1974, que conheceu James Green, autor da obra História do Movimento LGBT no Brasil. “Ele era amigável, mas intenso, quase dramático sobre si e sua vida”, afirma o norte-americano. A dramaticidade, no sentido literal da palavra, traduzia-se até nas aspirações de Trevisan: seu sonho era fazer mímica. Ele estudou Arte da Expressão em São Francisco enquanto trabalhava como faxineiro e garçom para conseguir se sustentar. “Eu sonhava em ir para a Tchecoslováquia.  A mímica tcheca era considerada a mais avançada. Isso nunca se realizou, nunca tive dinheiro”, lamenta Trevisan.

Trevisan mora no Centro de São Paulo com o companheiro, dois cachorros e mais de mil livros em sua biblioteca
Mattheus Goto

Aos poucos, foi deixando de lado essa pretensão e se reencontrando com a literatura. Durante uma passagem pelo México, encantou-se pelos novos autores latino-americanos, como Jorge Luis Borges, Julio Cortázar e Mario Vargas Llosa. Por causa deBorges, rompeu um namoro com um professor da Universidad Nacional Autónoma de México. “Quando ele pediu para eu escolher entre ele ou o Borges, sem dúvida nenhuma fiquei com o Borges”, lembra entre risadas.

De volta ao Brasil, em 1986, decidiu escrever Devassos no Paraíso por um motivo específico: entender onde estava no Brasil. “Eu estava completamente perdido, mais do que quando fui para o exílio. Não sabia se era brasileiro, norte-americano ou mexicano. Não tinha integração em nenhum grupo, e os que eu conhecia não me interessavam. Eles me achavam esnobe, louco. Foi uma solidão imensa”, afirma.

Além de decidir contar uma história “escondida”, tomou a frente de outras iniciativas ao longo dos anos. Criou O Lampião da Esquina e o Somos: Grupo de Afirmação Homossexual, do qual Green também fez parte. “Existe um consenso entre acadêmicos de que O Lampião foi essencial para a fundação de atividades LGBTQI+ no final da década de 1970”, afirma Green. “Trevisan deve ser reconhecido e apreciado por ter lutado para fundar o primeiro grupo de ativistas LGBT no Brasil. Embora tenhamos diferenças políticas, em todos os meus escritos e apresentações públicas, reconheço sua importante contribuição ao movimento”, diz o historiador norte-americano.

Tão emblemático e com ideais nem sempre tão óbvios em sua cabeça, João Silvério Trevisan se enxerga como uma figura nebulosa. “O que me define como pessoa é que eu não sei o que eu sou, é viver atrás do meu próprio mistério”, explica. A velhice lhe trouxe a solidão, o que, como ele mesmo diz, é algo inevitável em qualquer tipo de projeto sexual, mas que se torna acirrado em uma circunstância de confinamento e exílio LGBT. Ele acredita, no entanto, que esse não é nem será motivo para deixar de resistir. “Um dos meus grandes consolos e objetivos é a possibilidade de amar”. Para ele, essa é uma luta que vale a pena peitar.