O que as próximas gerações dirão sobre as imagens da covid-19 no Brasil? Fotojornalistas abordam a importância e as dificuldades de documentar a pandemia
É fim de tarde e o pôr do sol beija as águas pretas do Rio Negro. Ao fundo, um barquinho se aproxima da margem. A embarcação está cada vez mais perto e o estranhamento também aumenta. Há duas pessoas na parte da frente do barco. Ambas vestidas com trajes brancos, da cabeça aos pés. Além disso, carregam um caixão. Uma mulher morreu. fotojornalistas
Felipe Dana, de 35 anos, acompanhou de perto a SOS Funeral, um serviço da prefeitura de Manaus que oferece atendimento funerário para quem não tem dinheiro para arcar com esses custos.
Segundo Felipe, pela primeira vez, a equipe foi chamada após uma morte em uma cidade ribeirinha, próxima à capital amazonense. O problema é que só era possível chegar de barco. Uma idosa, com suspeita de covid-19, havia falecido em casa. A família ficou com medo de alguém se infectar durante o trajeto até a capital e pediu para que esse serviço retirasse seu corpo.“Foi naquele momento que eu percebi que a covid tinha chegado em todos os lugares”, relata.
Tragédia anunciada
Felipe é um dos muitos fotógrafos documentais que fizeram a cobertura do colapso amazonense. Diante da necessidade de noticiar o caos que o estado viveu, esses profissionais foram para a linha de frente e narraram a pandemia através de suas imagens, trazendo olhares particulares e expondo suas próprias fragilidades.
“A primeira reação que eu tenho é a seguinte: se existe uma notícia relevante no local que eu estou, independente do que esteja acontecendo, o meu reflexo é sempre contar essa história através do meu trabalho, contar histórias que eu acho que são importantes de serem contadas”, explica o fotojornalista.
A crise no Amazonas foi uma tragédia anunciada. Em 2016, a Operação Maus Caminhos investigou um grande esquema de corrupção envolvendo o sistema de saúde amazonense.
O Ministério Público Federal estima que o grupo tenha desviado mais de R$ 260 milhões de verbas públicas da Saúde do estado. Entre os envolvidos estão o ex-governador José Melo (PROS) e o atual senador e presidente da CPI da covid-19, Omar Aziz (PSD).
Fotojornalistas e documentação
Raphael Alves, 37 anos, nascido e criado em Manaus, documenta a pandemia na capital manauara desde março de 2020, quando os primeiros casos foram confirmados na cidade.
Foi nesse período que o fotógrafo iniciou o projeto Insulae. Seu objetivo era documentar a sensação de isolamento em suas diversas formas.
As Ínsulas — do latim Insulae — eram as formas de habitação destinadas à população pobre na Roma Antiga. Elas tinham estrutura frágil, e os moradores viviam constantemente em condições de risco.
“O Amazonas é historicamente isolado do resto do Brasil. O fato de não ter estrada, o fato de viver no meio da floresta e ser uma das capitais menos arborizadas do País, o fato de a gente viver em uma das maiores bacias hidrográficas do mundo e não ter saneamento básico e ainda faltar água. A gente estava destinado ao colapso, assim como essas insulaes”, compara Raphael.
Fotojornalistas no combate à desinformação
Um dos principais compromissos do fotojornalismo é levar às pessoas o que elas não podem ver. O caos na capital do maior estado do País, representado por mortes em casa, câmaras frigoríficas em hospitais, valas coletivas e a crise do oxigênio trouxe à tona a importância desses profissionais como narradores da história.
Ivana Debértolis é fundadora e editora do Everyday Brasil. O projeto faz parte do Everyday Projects, uma comunidade global de fotojornalistas que nasceu na África (Everyday Africa) em 2012 e utiliza a fotografia como ferramenta para desconstruir clichês e expandir o conhecimento sobre as culturas locais.
Para ela, o fotojornalismo no Brasil também desempenhou um papel importante no combate à desinformação sobre a pandemia.
“O que não falta no País é história para ser contada e fotógrafos para contá-las da melhor maneira. No momento em que temos um monte de gente pensando que o vírus não mata, que não precisa usar máscara, é importante que essas imagens proliferem e que, com alguma sorte, façam as pessoas refletirem”, afirma.
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Desgaste psicológico
Fotografar a pandemia significa estar em contato com a dor e a morte o tempo inteiro, e Raphael sabe bem disso.
No dia 29 de setembro de 2020, ele levou uma equipe estrangeira de fotojornalistas para fotografar a paisagem em um cemitério na capital amazonense. Na época, não haviam tantos enterros em comparação com o primeiro pico da doença no início da pandemia.
“De repente, chegou um enterro de covid. Quando eles chegaram, eu percebi que o motorista da funerária estava sem nenhum equipamento de proteção, nem máscara, aí eu falei ‘Cara, você tá sem equipamento’, ele olhou para mim e falou: ‘Ah, essa doença aí não existe não’”.
No dia anterior ao desse episódio, Iris Gonçalves Alves havia morrido, aos 54 anos, vítima da covid-19. A sepultura foi cavada a mão e o caixão foi coberto. Seu filho, que não quis se identificar, se ajoelhou e chorou.
“Acho que ele ficou ali uns 30 minutos, não sei dizer ao certo, mas tudo estava em silêncio. Eu acho que nunca vou esquecer aquilo. Quando saí de lá, parecia que eu tinha levado uma surra”, lembra Raphael.
Para Felipe, o desgaste psicológico é resultado de uma cobertura desafiadora. O fotojornalista está exposto o tempo todo a um perigo invisível.
“Quando eu faço uma cobertura de guerra ou de conflitos armados, por exemplo, eu estou me expondo a um risco alto, mas geralmente são coisas que você consegue ver. Nem sempre você pode prever, mas você consegue pelo menos planejar e minimizar esse risco. Na pandemia, você está lutando contra algo invisível e ao mesmo tempo tem que fotografar isso. É um trabalho muito difícil”, afirma. fotojornalistas
A potência da narrativa visual
Para a jornalista e teórica da imagem Simonetta Persichetti, 61 anos, a eficiência da fotografia documental se dá quando a imagem atrai a atenção do leitor e provoca reflexão.
“Se você não tem uma imagem que me chama pro diálogo, que me mobiliza, eu não crio afeto, então por que eu vou olhar?” O desafio é fugir do clichê, e, para Simonetta, “o problema do clichê é que ele se torna confortável, então eu nem olho mais pra ele”.
Segundo ela, não há espaço para a fotografia documental como simples adorno, já que a imagem é grande portadora de notícia.
“Nos anos 1970, durante a ditadura, quem falava era a imagem, não o texto. Os censores censuravam textos, mas eram ignorantes em relação à imagem. Eles não percebiam a força narrativa e narradora dela e eu acho que nós estamos revivendo esse momento, em que a força da narrativa da imagem é absolutamente potente e necessária”, conclui Simonetta.