No centenário de nascimento de Clarice Lispector e João Cabral, a literatura de ambos segue muito necessária
“Qualquer coisa fora do tempo e do espaço – um pouco como nós vivemos”. Com essa frase, enviada em uma carta para Clarice Lispector, João Cabral de Melo Neto definiu Antologia, revista literária que pretendia conceber. Na correspondência, convidava Lispector para participar da publicação, a ser impressa na tipografia chamada O livro inconsútil, fundada por ele no final dos anos 1940, quando era vice-cônsul do Brasil em Barcelona.
Nessa prensa artesanal, foram feitos catorze livros. Ao descrever o processo de impressão de sua obra Psicologia da Composição, ele o comparou a uma máquina de fazer algodão-doce. “Você a olha no começo e só vê uma roda girando, depois, uma tênue nuvem de açúcar vai se concretizando em torno da roda e termina por ser algodão. A imagem me serve para dizer isso: que primeiro a roda: o trabalho de construção – o material (…) vem depois: é menos importante e só existe para que o outro não fique rodando no vazio”, escreveu.
Nascido no Recife, em 1920, Cabral publicou Pedra do Sono, sua obra de estreia, em 1942. Em uma época na qual Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles e Manuel Bandeira, expoentes das gerações anteriores do Modernismo, atingiam a maturidade técnica, ele valeu-se das vanguardas europeias para criar um estilo próprio. Mesmo com a influência surrealista inicial, Cabral desenvolveu uma escrita permeada por racionalidade e concisão. A poesia espanhola, baseada no rigor formal, com a qual teve contato quando era diplomata, intensificou sua admiração pelo poder de síntese de artistas como Le Corbusier e Mondrian. Também, afastado de sua cidade natal, pôde ver com mais clareza a situação do Nordeste do Brasil. Então, nasceram Cão sem plumas, O rio e Morte e Vida Severina.
“Me desculpe toda a estirada sem propósito. Por isso que evito o espontâneo e o fluente: porque o meu espontâneo é tão besta que dá vergonha”, escreveu Cabral no final da carta. Na ocasião, Lispector morava na Europa com o marido, o diplomata Maury Gurgel Valente. Chaya Lispector nasceu em 1920, na aldeia de Tchetchelnik, na Ucrânia, em meio ao processo de emigração dos pais, que viajavam para a América fugindo dos conflitos da recém-criada União Soviética. Chegando ao Brasil, com dois anos, ela recebeu um nome em português e se estabeleceu com a família em Maceió. Após três anos, mudaram-se para Recife.
Em 1939, a escritora ingressou na Faculdade Nacional de Direito, no Rio de Janeiro. Logo depois, começou a trabalhar como repórter na Agência Nacional e produziu contos como Triunfo, História interrompida e A fuga, todos sobre a complexidade das relações interpessoais. Lançado em 1943 e laureado com o Prêmio Graça Aranha, Perto do Coração Selvagem, seu primeiro romance, é centrado não nos fatos que compõem o enredo, mas na busca por novas formas de narrá-los. As palavras são usadas para atingir o âmago dos seres e objetos.
Sua linguagem, introspectiva e fragmentária, é repleta de experimentalismo. A narração psicológica, a falta de linearidade, o caráter intimista e o trabalho com as metáforas estariam em várias obras suas, como A Paixão Segundo G. H. e A Hora da Estrela, seu último romance. Ele conta a jornada de Macabéa, uma jovem nascida em Alagoas que emigra para o Rio de Janeiro em busca de melhores condições de vida. A obra foi recebida pela crítica como um sinal de comprometimento para com a complicada situação do Nordeste. Contudo, esse viés de escrita não chegou a ser aprofundado. Diferentemente de seu correspondente assíduo, que viveu até os 79 anos, Lispector faleceu aos 56, em 1977, vítima de câncer de ovário.
Lispector e Cabral, além de escritores da Geração Modernista de 1945, tinham em comum a tentativa de desvendar o mundo por meio das palavras. O pernambucano que recitava cordéis para os trabalhadores locais. A ucraniana que veio ao Brasil lutando contra a guerra e a pobreza. O admirador de arte que perdeu parte da visão durante a velhice. A mulher que morreu um dia antes de completar 57 anos.
A reflexão suscitada pela literatura desses autores está ausente em uma sociedade marcada pela superficialidade e pelo nascente obscurantismo. A escrita, assim como a leitura, é um ato de perda e de encontro. Como Cabral registra em uma carta para Clarice, datada em 1949, “Seria você capaz de continuar escrevendo sem perder a cabeça? É alguém capaz de jogar poker sem dinheiro? Sem arriscar? Estou certo que não.”