Negócios fúnebres movimentam a economia do País enquanto tentam desmistificar antigos tabus
O Sindicato dos Cemitérios e Crematórios Particulares do Brasil (Sincep) afirma que o setor do “mercado da morte”, como é conhecido no Brasil, além de ser um negócio bilionário, gera mais de 50 mil empregos diretos. Apesar isso, falar de morte ainda é um tabu. Da crendice de que sapato e roupa que passaram pelo cemitério não devem entrar em casa à ideia de que dá má sorte, o tema é um assunto delicado. A lista de eufemismos para lidar com o fim da vida vai longe. Você já deve ter ouvido por aí “partir desta para uma melhor”, “abotoar o paletó”, “vestir o pijama de madeira”, “cumprir sua missão”, “bater as botas”, “esticar as canelas” e até mesmo “Deus levou”.
Historicamente, o comércio relacionado ao pós-morte surgiu nos Estados Unidos na metade do século 19, onde é chamado de death care. É nesse momento que nascem as primeiras associações de profissionais do ramo fúnebre. A National Funeral Directors Associations, por exemplo, foi fundada em 1882 e hoje atende mais de 20 mil indivíduos em 11 mil funerárias espalhadas por 50 países. Estudos como os do historiador francês Philippe Ariès e do sociólogo alemão Norbert Elias apontam que, a partir da era moderno e da criação desse novo sentido social para o óbito, o tema se transformou em um não-assunto. Mas o luto – e principalmente o funeral – funcionam como ritos de passagem.
“Preparar-se para a morte já é uma premissa de mau presságio”, afirma o historiador Sidnei Santos, que fez pesquisas relacionadas ao tema. Ele diz que o ambiente profissional, que envolve floristas, legistas, necromaquiadores, coveiros, jardineiros, seguros funerários, cemitérios e crematórios, entre muitos outros, é evitado e tratado como se fosse um submundo. “Mas são trabalhos necessários e dignos”, defende.
Renata Schouer teve que driblar o próprio preconceito para entrar no ramo. Ela diz que só foi trabalhar com isso após o falecimento do tio de seu marido. Hoje, Schouer é diretora da Associação Nacional de Necrópsia e da Eternal Cursos (Ananec), instituições que aplicam aulas de taxidermia, tanatopraxia, necromaquiagem, psicologia do luto, auxiliar de legista, entre outras. A duração dos cursos profissionalizantes varia de acordo com o conteúdo ministrado em sala e laboratório, podendo durar de quatro dias (necromaquiagem e agente funerário, por exemplo) a dez meses (auxiliar de necrópsia). As aulas práticas são terceirizadas pelo Instituto Médico Legal e pelo Serviço de Verificação de Óbito.
O fim de alguns pode ser o “recomeço” de outros. Gisela Adissi, presidente do Sincep e da Associação de Cemitérios e Crematórios do Brasil (Acembra), entrou no mercado da morte por ser um negócio de família. Seu pai era proprietário de um restaurante que estava falindo e, após herdar o cemitério de uma tia, viu no ramo uma oportunidade para prosperar. Graduada em Administração, Adissi também enfrentou o próprio preconceito para lidar com a economia funerária. “Eu praticamente nasci no cemitério, mas falar sobre o tema é sempre um tabu, a gente enfrenta discriminação”, afirma.
A administradora comenta que o ramo é tão complicado quanto qualquer outro. “Não é porque as pessoas vão ao restaurante que ele dá certo. Não é porque as pessoas morrem que os cemitérios são lucrativos”, compara. Manter um cemitério ou um crematório exige boa administração, trabalhadores qualificados, planejamento e atendimento diferenciado para cada público, já que a perda de um ente querido é um momento delicado.
Na capital paulista, foram realizados 30.641 sepultamentos, 7.306 cremações de corpos e 1.372 remoções de ossadas entre janeiro e outubro de 2019, segundo o Serviço Funerário do Município de São Paulo. Para dar conta desses números, novas empresas e tecnologias são criadas. Esse mercado, que já foi estável e parado por muito tempo, agora encontra novos investidores, produtos certificados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), iniciativas de empresas de tecnologia – como os cemitérios e ossuários verticais da Evolution Vilatec – e softwares de automação dos serviços.
A Ziigo é uma dessas empresas. Em novembro de 2019, completou quatro meses de funcionamento pleno, fruto de uma sociedade entre cinco colegas, alguns já do ramo. Ela oferece um serviço integralmente online, além de possibilitar a compra de jazigos e covas pela web. A conversa é realizada, inicialmente, via chatbot e, depois, um funcionário da empresa entra em contato com os órgãos responsáveis pelo sepultamento e casas de velório. “A questão dos planos de assistência funerária já é algo consolidado, porém são poucas as iniciativas que trabalham focadas no digital e no processo de conscientização a respeito da importância desse serviço”, explica Fabiano Loures, um dos cofundadores da Ziigo.
Nativo do ambiente digital, o WebLuto é um e-commerce de produtos e serviços desse negócio. Ele agrega mais de 150 empresas do mercado funerário em um único site, facilitando as buscas por cemitérios, crematórios, funerárias, floriculturas e exumação de corpos. Siderlei Gonçalves trabalha no segmento há 20 anos e comenta que “passou a vida toda presenciando a dificuldade das pessoas de contratar, obter informações e encontrar mão-de-obra qualificada nesse ramo”. Entre os parceiros do WebLuto estão a Acembra e o Sincep, e a projeção de Gonçalves é ter cinco mil empresas dentro do site nos próximos dois anos.
A expansão do setor não é de agora. Entre os anos de 2003 e 2012, de acordo com dados de 2015 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a área obteve crescimento de receita líquida de 430,6% – apesar da estabilidade na taxa de óbitos no País. “Para alcançar tal expressividade econômica, o setor teve de passar por várias mudanças, mas o diferencial foi acompanhar novas estratégias capitalistas”, afirma a cientista social Lilian Silva Pinto, pesquisadora do tema e autora da dissertação Tem que pagar pra nascer, tem que pagar pra viver, tem que pagar pra morrer: mercado funerário e distinção social.
Lutos mal vividos podem gerar transtornos de ansiedade e até depressão. “Se eu for para uma camada mais profunda dos aspectos da morte, muitas doenças modernas têm relação com isso. Por exemplo, os acumuladores podem ter vivido um luto complicado, perderam tanto na vida que não podem perder mais nada”, argumenta Gisela Adissi. O funeral, em sua visão, tem um papel importante nesse processo. Em termos práticos, é um ganho para a sociedade. A presidente do Sincep e da Acembra é também uma das sete fundadoras do projeto Vamos falar sobre o luto?, que incentiva as pessoas a enfrentarem suas perdas.
A dificuldade de lidar com mortes todos os dias e a falta de reconhecimento não são um impedimento para quem vive no ramo. “Este mercado está mais relacionado à vida do que à morte”, afirma o pesquisador Sidnei Santos. A diretora da Ananec, por sua vez, acredita que o conforto e a atenção dados aos familiares após um falecimento valem o trabalho, enquanto Adissi, ironicamente, enxerga como ponto forte de sua profissão os ensinamentos que leva sobre a vida. No fim das contas, vida e morte são dois lados da mesma moeda.