Maior polo automotivo do País, o ABC paulista entra em uma fase conturbada com muitos desempregados e a saída de fábricas
A região respira a indústria automotiva. Todo o desenvolvimento dessa indústria foi feito em cima dela”. É assim que Edgar Brandão, secretário executivo do Consórcio Intermunicipal Grande ABC, órgão que representa as cidades da região, refere-se ao território que engloba Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul. O ABC já foi um dos atores mais importantes para a economia nacional e fundamental para o desenvolvimento de um dos principais segmentos da indústria brasileira. Entretanto, hoje a região vive um dos seus piores momentos, com grandes montadoras fechando suas portas e criando uma grave situação de desemprego.
São Caetano do Sul foi a primeira do ABC a receber uma fábrica de automóveis, a General Motors (GM), logo no início da década de 1930. Mas foi em São Bernardo do Campo que investimentos no setor começaram a ser levados a sério. Conhecida como a “Capital do Automóvel”, a cidade recebeu investimentos das pioneiras Willys-Overland e Mercedes-Benz, que ali se instalaram no final dos anos 1950.
O grande marco para a vida ali, contudo, foi a inauguração da fábrica brasileira da montadora alemã Volkswagen em 1959, durante o governo desenvolvimentista de Juscelino Kubitscheck. O terreno de 1,6 milhão de metros quadrados no quilômetro 22,5 da Rodovia Anchieta abrigou a fábrica, que iniciou a chamada ‘era de ouro’ da indústria automobilística do ABC. A Volks chegou a ser diretamente responsável por 23 mil empregos em meados da década de 1970.
Outro acontecimento muito importante foi a chegada da Ford à região. A empresa norte-americana comprou a Willys-Overland e suas fábricas, consolidando uma indústria emergente no cenário nacional. Atraindo milhares de trabalhadores, que acabaram por morar na região, esse foi um dos principais fatores para um aumento de 100% da população local em 20 anos, segundo a Prefeitura de São Bernardo, o que estimulou o fenômeno da conurbação, unificação da mancha urbana decorrente de seu crescimento geográfico.
As décadas de 1970 e 1980 foram marcadas por grandes desenvolvimentos regionais com a criação de uma malha industrial mais diversificada especialmente a moveleira. O ABC se alçou, então, ao status de motor da indústria paulista. Amarildo dos Santos Reis foi contratado nessa época. Torneiro mecânico, trabalhou por 27 anos na Ford. “Cheguei do Espírito Santo, em 1980, para trabalhar no ABC. Meu cunhado já trabalhava na empresa e conseguiu uma vaga para mim”, recorda.
No entanto, o que parecia um paraíso do empresariado nacional e internacional começou a ruir. Com os problemas financeiros ocasionados pelo equivocado Milagre Econômico Brasileiro do governo militar e com a ascensão de movimentos grevistas, muitos investidores começaram a retirar dinheiro da região. Nascia, no final de 1970, uma massa de trabalhadores que, ao reivindicarem melhores condições de trabalho, colocariam na ribalta o operário Luiz Inácio Lula da Silva e abririam caminho, mesmo sem saber, para o processo de Redemocratização do País ainda na primeira metade da década de 1980.
A partir da célebre Greve do BAC de 1979, além de outros avanços nas leis trabalhistas e mudanças políticas, várias fábricas começaram a levar parte de sua produção para outros estado. Em 2000, a Guerra Fiscal intensificou esse processo. Seduzidas pela devolução de 80% do Imposto Sobre a Circulação de Mercadorias (ICMS) por governos nordestinos, muitas empresas se realocaram para o polo industrial de Camaçari, na Bahia. Pelos mesmos motivos, também naquele período, a GM construiu uma nova fábrica em Gravataí, no sul do País.
Em 2018, a mesma General Motors ameaçou sair de São Caetano do Sul. Um possível fechamento criaria uma grande massa de desempregados, aproximadamente 8,5 mil, além de déficit nas contas do município. Ao se fechar uma fábrica, empregos diretos e indiretos também se encerram, principalmente na área de prestação de serviços e comércio.
“São 19 anos de GM. Se ela fechar, eu não sei para onde vou”, afirma Carlos Eduardo Pereira, 56 anos. Ele é funcionário do setor administrativo da empresa e sabe que o mercado está cada vez mais rarefeito, com poucas oportunidades. Brandão explica que o fechamento da fábrica só não aconteceu devido a um acordo entre a empresa e o Governo do Estado de São Paulo, no qual ficou estipulado o desconto de 25% do ICMS para a montadora. Ele alerta, porém, que essa é uma situação delicada e que não pode ser generalizada, pois “não se pode abrir mão de imposto. Isso só pode ser feito quando for comprovado que no futuro arrecadará pelo menos o mesmo valor”.
Adalberto Moreira, ex-presidente da Asbrasil, empresa que produzia componentes estampados para o segmento automobilístico, diz que “o prolongamento dessa crise afetou sensivelmente toda a cadeia produtiva, trazendo consequências irreversíveis para o setor, principalmente com a desindustrialização”.
Um dos maiores exemplos dessa atual redução da capacidade industrial foi o fechamento da fábrica da Ford em outubro de 2019, um dos símbolos da “Capital do Automóvel”, ocasionando a saída de 600 funcionários. Mais 750 já haviam sido demitidos em julho do mesmo ano em decorrência do fim da produção do modelo Fiesta no Brasil. Outros 1000 colaboradores deverão ser realocados em outras unidades da montadora.
O secretário do Consórcio Intermunicipal Grande ABC alega que essa é uma questão que não pode ser pensada apenas localmente, mas é um problema também da matriz mundial da empresa. Procurada por ESQUINAS, a Agência Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) respondeu que “como associação nacional, não falamos de regiões nem comentamos sobre questões específicas de apenas um associado”.
Mesmo com as conversas do Grupo Caoa para comprar a antiga planta industrial da Ford, a expectativa quanto ao futuro da região segue cercada de dúvidas. “Acredito que em um curto espaço de tempo estas empresas deixarão a região. Infelizmente, esses parques estão totalmente obsoletos, o que torna o custo muito alto para um mercado competitivo e em declínio”, afirma Moreira.
Mesmo sofrendo com a crise financeira que abala a nação desde 2015, o ABC continua a produzir e receber muito investimento. No início de 2019, a Anfavea anunciou que 455,3 mil veículos foram produzidos no País, uma alta de 5% em relação a 2018. Segundo o Consórcio Intermunicipal Grande ABC, a Mercedes-Benz, Scania e Volvo anunciaram investimentos para 2020 que chegam a 6 bilhões de reais. A Prefeitura de São Bernardo afirmou que os fabricantes de veículos automotores, reboques e carrocerias foram responsáveis pela ocupação de mais de 31 mil postos de trabalho no município, o que representou 12,4% do total.
Para expor a importância e força da região, ainda segundo o Consórcio, o PIB somado de sete municípios (Santo André, São Bernardo do Campo, Diadema, São Caetano do Sul, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra) seria o quarto do Brasil e o poder de compra dessa macrorregião (grande ABC), o terceiro maior do País, atrás apenas de São Paulo e Rio de Janeiro.
Mesmo sofrendo com a saída de empresas, a região do ABC ainda é muito importante tanto para a indústria automobilística nacional quanto para as finanças do País. A desestruturação das fábricas no local pode causar sérios danos para a economia regional e nacional, e afetar diretamente a qualidade de vida da população.