O ineficaz planejamento do modelo viário de São Paulo e as perspectivas para o futuro da mobilidade na capital
Cidades têm sistemas complexos e interdependentes cujos detalhes impactam, em diferentes escalas, o conjunto total. Nabil Bonduki, professor titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU) e ex-vereador de São Paulo durante a gestão Haddad, defende que a capital paulista tem um “modelo”. Se por um lado ele é planejado urbanisticamente, por outro, foi designado para atender à lógica do mercado. O resultado disso é uma cidade visivelmente desigual.
A mobilidade limitada, a negligência ambiental e os desníveis habitacionais são apenas alguns exemplos do desequilíbrio urbano paulistano. Outra característica desse modelo é a predominância de condomínios de prédios, o que leva à chamada verticalização da cidade e ao afastamento de pessoas com menor poder aquisitivo do Centro e locais de trabalho.
Bonduki também acredita que para uma cidade da proporção e densidade da capital paulista dar certo é necessário haver transporte público funcional. Mas desde o início da urbanização da metrópole, uma mobilidade integrada e eficaz é pouco pensada. O modelo adotado em São Paulo prioriza a circulação de automóveis particulares em rodovias e avenidas, principalmente devido ao Plano de Avenidas implantado em 1930 durante o governo de Prestes Maia.
No evento Catalisando Futuros Sustentáveis, que ocorreu no Parque do Ibirapuera em setembro de 2019, Daniel Todtmann, professor da Escola da Cidade e representante do Instituto de Arquitetos do Brasil na Câmara Técnica de Urbanização e Legislação Urbanística, afirmou que “a população negra e pobre é a que mais sofre com a mobilidade em São Paulo”. Todtmann acredita que isso confere um desnível de acessibilidade à distância geográfica entre as moradias dessas populações – geralmente postas às periferias – e os seus empregos, no Centro da cidade.
No mesmo evento, durante uma seção sobre Cidades com Desenvolvimento Orientado pelo Transporte, foram citados municípios na Coreia do Sul, Japão e China que exploram espaços urbanos com planejamento organizado pela mobilidade. Esse modelo encoraja a ocupação de áreas próximas a serviços de transporte público, de modo que se faça bom uso das terras perto deles. Assim, aproxima-se classes mais pobres de zonas centrais e altera-se a densidade, a diversidade e o design dos arredores dos pontos próximos às estações de transporte.
Enquanto a população das metrópoles asiáticas convive com o planejamento viário há décadas, as primeiras preocupações com o transporte público paulistano surgiram somente na década de 1970. O primeiro Plano Diretor de São Paulo foi aprovado em 1971, durante o Regime Militar no Brasil. Nessa época, as câmaras aprovavam muitas propostas do Executivo e, por isso, sua implementação não foi bem pensada. O plano foi anterior às leis que mudariam as políticas dos espaços urbanos, como a Lei Orgânica do Município de São Paulo de 1990, e o Estatuto da Cidade, de 2001, que infere “regular o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”.
Apenas em 2014 foi aprovado, durante a gestão de Fernando Haddad, o terceiro e mais completo Plano Diretor Estratégico (PDE), visando ordenar o desenvolvimento das funções sociais das urbes, assim como seu uso responsável e ecologicamente equilibrado, assegurando o bem-estar e a qualidade de vida na cidade. O PDE propõe um novo tipo de ocupação urbana, colocando cada vez mais o cidadão como o foco do espaço viário.
Letícia Sabino, idealizadora da organização Sampapé, ONG que incentiva a locomoção a pé, acredita que o deslocamento pela cidade muda a experiência dentro dela. “O deslocamento a pé é uma parte integral de toda mobilidade porque é o conector entre vários modos [de deslocamento]. É o mais democrático porque qualquer pessoa em qualquer condição pode fazê-lo”, afirma. Para Sabino, caminhar é se apropriar da cidade, e isso influencia diretamente o espaço urbano e a cultura. Em São Paulo, segundo a pesquisa Origem-Destino de 2017 realizada pelo Metrô, das 42 milhões de viagens diárias, 13,3 milhões delas foram feitas a pé, em maior ou menor distância.
As caminhadas criam costumes urbanos e favorecem a fermentação de uma cultura de rua. Na capital paulista, por exemplo, o café da manhã nas barraquinhas próximas às estações de transporte público que vendem sanduíches, bolos e cafés em garrafas térmicas faz parte da rotina de muitos cidadãos.
“A discussão de mobilidade é maior que apenas falar de transporte, porque em mobilidade é preciso também discutir a forma urbana”, explica Todtmann. Como Bonduki revela em seu livro A Luta pela Reforma Urbana no Brasil, a capital paulista cresceu verticalmente em uma área restrita ao Centro e ao Centro Expandido, onde ficam 70% dos empregos, ao mesmo tempo em que abriga apenas 20% dessas pessoas.
Miguel Jacob, gerente de políticas públicas da 99, empresa de prestação de serviços de táxi, comenta que a grande maioria dos usuários do aplicativo são ex-motoristas, o que mudou as prioridades de deslocamento da população paulistana. “Acreditamos na complementaridade do sistema público e privado como melhor resposta ao desafio da mobilidade urbana em grandes metrópoles, como São Paulo”, diz.
A cidade, devido ao Plano de Avenidas, também sofreu uma concretização – literalmente, cobrindo a cidade com concreto. Isso ocasionou a canalização de córregos, problemas de drenagem e de saneamento básico. Além disso, essa prática reduziu o número de parques e áreas verdes. “Um planejamento que cria grandes vias cria também grandes barreiras”, completa Sabino.
Os especialistas do urbanismo e do planejamento urbano, porém, são otimistas em relação ao desenvolvimento de São Paulo. Fernando Nogueira, coordenador da Mobilab+, laboratório de inovação que aproxima a Prefeitura a empreendedores e startups de urbanismo, apresenta a ideia de uma cidade inteligente, isto é, mais humana e que prioriza a população e suas necessidades. Bonduki concorda que “São Paulo tem jeito, mas precisa de administração e população consciente para mudar o modelo”.
A mobilidade urbana desenha a cidade, ligando os espaços dentro dela. A questão de São Paulo, porém, é que a preocupação com a locomoção se restringe a poucas áreas e não apresenta crescimento horizontal. Logo, o acesso da população de zonas periféricas, interioranas e vizinhas da capital aos espaços comerciais e centrais é restrito. A situação traz diversas consequências, já que quanto mais longe alguém morar dos locais de trabalho, mais tempo vai passar se locomovendo, gastando mais dinheiro com passagens e se privando dos momentos de ócio e lazer.