O relato de uma pessoa não-binária no caminho da autoexpressão por meio da moda
Olhar-se no espelho. Uma ação que parece tão banal pode criar muitos questionamentos. Pelo menos foi o que aconteceu comigo. Por muito tempo, ao ficar na frente da minha imagem, eu mal conseguia me ver. As camisetas de super-heróis, bermudas e roupas masculinas só mostravam alguém com quem minha mente não concordava mais, se é que algum dia ela concordou. Atualmente, identifico-me satisfatoriamente como não-binário – pessoa que não se encaixa em estereótipos de um gênero definido –, e o jeito de me vestir reflete toda minha própria identidade.
A mudança começou em 2016, no primeiro ano do ensino médio. Após dizer que era pansexual para algumas amigas, encontrei-me em um dilema. Podia continuar me escondendo ou revelar – mesmo que não verbalmente – para mais pessoas. Escolhi a segunda opção. A moda foi onde eu rapidamente encontrei um refúgio. O sentimento se tornou diferente a partir daí. Depois de tanto tempo em uma vida na qual eu não me encaixava, ficou simples escolher looks com que eu me identificava. Com alguma ajuda da internet para buscar inspirações, eu estava indo em uma direção a facilitar a casual olhadela no espelho. Comecei com pequenos passos, calças cintura alta, chokers, anéis, colares e camisas mais chamativas – ou espalhafatosas para muitos.
No ano passado, comecei a me questionar sobre meu gênero. A ideia de um masculino ou um feminino tão fixa me deixava sufocado e aquela leve mudança nas roupas já não era o bastante. Foi uma época de uma grande reviravolta no meu armário, de metamorfose.
Lembro da primeira vez que provei algo da ala feminina, era uma jaqueta jeans, nada particularmente “feminino”, exceto sua localização naquela seção da loja. Foi estranho como algo tão pequeno e comum como uma etiqueta, especificamente a coleção planejada para outro gênero, fez-me sentir tão livre. Crescer no interior de São Paulo, na cidade de Vinhedo, e ter frequentado uma escola evangélica criaram em mim vários medos e uma certa homofobia internalizada. Mas no momento da compra, tudo isso não importou mais. Aquela jaqueta me mostrou a trivialidade das divisões por gênero na moda. Mas enquanto uma pessoa não-binária, aquela decisão foi um grande passo no caminho da autoexpressão.
Hoje minha identidade se expressa pelas roupas que uso. Incorporo aspectos que são considerados somente femininos pela sociedade hétero e cis, como esmalte e maquiagem, enraizados na androginia da comunidade queer. Mesmo que eu sofra com a homofobia diária (hoje me entendo como gay) de encaradas no Metrô e xingamentos sussurrados, tudo parece valer a pena quando, ao olhar no espelho, as perguntas que antigamente me chacoalhavam não surgem mais. Finalmente sei como é ser dono do meu armário.